Enquanto alguns contenciosos levam anos a fio para atingir uma conclusão no Judiciário, a arbitragem apresenta-se como caminho mais curto e menos penoso para os que almejam uma resolução que tenha valor legal e fundamentação perita sobre determinado assunto.
A arbitragem é, além disso, um meio mais célere, conquanto mais custoso (pecuniariamente falando).
Ocorre, no entanto, que apesar dos benefícios, ela não está isenta de críticas.
Foi uma delas, a que aqui vamos narrar, uma das primeiras no Brasil.
A questão envolve um nome festejado, e não só nas letras jurídicas, como também da política. Aliás, é um caso que ficou gravado nas páginas da história, tamanha a paixão e eloquência de seu acusador, ninguém mais, ninguém menos, do que o Conselheiro Rui Barbosa.
Permita-se, leitor, um mergulho nesses imorredouros autos.
Estamos em 1912. O senhor Américo Werneck celebra com o governo das Minas Gerais um contrato de arrendamento da aprazível estância hidromineral de Lambari – situada no então município de Águas Virtuosas.
O contrato era firmado pelo prazo de 90 anos. Todavia, mal começou a vigorar e já surgiram "desinteligências entre as partes com relação a certos aspectos das obrigações reciprocamente assumidas".
De tal modo que não tardou para que o sr. Werneck propusesse a rescisão contratual perante o juízo seccional de Minas, alegando inadimplemento culposo por parte do governo e, afinal, reclamando perdas e danos que perfaziam o total de 6.450:000$ (seis mil quatrocentos e cinquenta contos de réis).
Instalado o conflito, autor e réu concordaram em valer-se de um juiz arbitral.
Instaurado o arbitramento, cujo compromisso determinava a rescisão amigável do contrato de arrendamento, o laudo respectivo - depois de sopesar as culpas de ambas as partes, e considerando, com relação às que foram imputadas a Minas, que os efeitos estendem a todo o tempo em que o contrato durou - condenou tanto o Estado a pagar ao sr. Werneck a importância por este postulada, como o sr. Werneck a pagar a Minas a quantia de dois contos de réis.
O governo mineiro não se conformou com a sentença de Carvalho de Mendonça e Edmundo Lins, e incumbiu Rui Barbosa de judicializar a questão.
Como havia prerrogativa de foro, o Conselheiro ingressou no Supremo Tribunal com a apelação de Minas Gerais. Trata-se de calhamaço volumoso com cento e vinte e cinco laudas.
No intuito de obter a nulidade da decisão arbitral, Rui Barbosa disparou não só contra a decisão, mas contra o instituto de arbitragem.
Salientou que "o juízo arbitral, em si, não é um meio eficaz de verificar e aplicar o direito" e que a "irrecorribilidade das suas decisões é uma 'suposição que não encontra base em nenhuma legislação do mundo' ".
Rui Barbosa pediu a nulidade sustentando que os árbitros haviam excedido os poderes a eles conferidos, uma vez que calcularam a indenização reclamada sobre o tempo integral de duração do contrato de arrendamento, sendo que a rescisão havia sido feita amigavelmente logo no terceiro ano do prazo convencionado :
"Temos, no caso, um contrato que, segundo os seus termos, havia de se estender a noventa anos. Aos três de existência, porém, foi rescindido."
"Mas rescindiu-se com a ressalva precisa e terminante de que pela sua rescisão nenhuma indenização haveriam as partes."
"Ora, qual é o prejuízo que a rescisão podia ocasionar a qualquer dos contratantes? Certo que o prejuízo resultante dos oitenta e sete anos do período contratual, de que a rescisão privou."
"Logo, a indenização a que um ou outro deles poderia ter direito, era a dos lucros previsíveis do contrato no curso desses oitenta anos, que ele ainda tinha de durar, e não durou, por se ter resilido."
"Portanto, o que a sentença arbitral concedeu ao ex-arrendatário, reconhecendo-lhe direito a perdas e danos contados sobre anos posteriores à rescisão contratual é, precisamente, essa indenização pela rescisão, que a cláusula quarta do compromisso arbitral literalmente vedava ao árbitro incluir no cômputo da reparação ali convencionada."
"Ora, se a indenização outra coisa não é que ressarcimento do mal causado a uma pessoa contra a sua vontade, na rescisão de um contrato, celebrado por mútuo consenso entre os contraentes, nada, por via de regra, nada pode haver que ressarcir ; pois, sendo a rescisão um novo contrato, revogatório do primeiro, uma deliberação recíproca entre duas vontades coincidentes, por ela não pode ocorrer culpa, não pode existir, logo, dano jurídico, e, conseguintemente, não pode caber indenização."
Tamanha a força persuasiva da "Águia de Haia", que até mesmo um de nós, com o distanciamento histórico que nos cabe, nos inclinaríamos a admitir que se consumou nessa disputa um erro.
Evidentemente, o abuso de poderes foi o principal, mas não o único argumento utilizado por Rui Barbosa.
Seguiu-se a consideração de que as arguições formuladas contra Minas envolviam, em sua quase totalidade, atos do prefeito da cidade de Água Virtuosas, e a este caberia qualquer culpa, não ao Estado.
Apesar das razões de apelação apresentadas por Rui Barbosa não terem convencido o Tribunal - que, por unanimidade, manteve a sentença apelada, considerando não ter havido qualquer abuso de poder - o instituto da arbitragem ficou mal visto pelas gentes da época.
Afinal, ele havia sido colocado em xeque por ninguém menos do que o notável Conselheiro.
Assim, a "Questão Lambary", como ficou conhecida a disputa entre o sr. Werneck e o Estado de Minas Gerais, não somente se tornou o pleito mais célebre em que Rui Barbosa atuou (e perdeu) como advogado, mas também um dos casos pioneiros de processo de arbitragem - que, diga-se de passagem, ganhou reconhecimento legal entre nós apenas em 1996, com a lei Federal 9.307.
Credita-se, na história, a esta passagem, o fato de a arbitragem ter demorado tanto tempo para ser positivada em nosso ordenamento jurídico.
- "Ruy Barbosa morreu zangado comigo"
Embora os dois homens do Direito se conhecessem desde tempos remotos, e tivessem nisso razões para se aproximarem na vida, o que aconteceu foi exatamente o contrário, a ponto de Rodrigo Octávio lastimar o fato de o imortal Rui ter partido para a morada eterna zangado com ele.
Em suas reminiscências, intitulada de "Minhas memórias dos outros", Rodrigo Octávio conta que
"Rui descendia da antiga família portuguesa dos Barbosa de Oliveira que se estabeleceu na Baía, no XVIII século; dessa família, Albino Barbosa de Oliveira, tio de seu pai, foi para São Paulo, e se estabeleceu em Campinas, onde constituiu família, que entreteve com a minha, desde meu nascimento, relações da maior cordialidade."
"Além dessas relações de família, Ruy Barbosa era comprovinciano, colega e amigo de meu Pai (...) sua senhora, dama de alta distinção, entretinha relações de visita com minha Mãe ; tudo assim parecia tendente a favorecer uma aproximação que, de minha parte, estimularia uma fervorosa admiração por seu talento e ação."
Mas o fato é que desde o princípio da carreira de Rodrigo Octávio os contatos com Rui Barbosa resultaram apenas em azedumes.
"A primeira vez que vi Ruy Barbosa e com ele falei, foi em 1882, logo após a morte de meu Pai. Eu era um menino.
"Ele foi ver os livros que meu pai deixara em suas modestas estantes, pensando adquirir alguns, notadamente o grande comentário de Demolombe ao Code Napoleon.
"Minha mãe preferiu, porém conservar esses livros para o filho, que também ia ser advogado, e os 30 volumes do Demolombe ainda se acham em minhas estantes."
Esse primeiro "desencontro" deu início a um acúmulo de mágoas que transbordariam, finalmente, na "Questão Lambary".
No processo, como já dito acima, o Supremo Tribunal Federal, em acórdão unânime, deu ganho de causa para o sr. Werneck. O julgado, entretanto, repercutiu estrondosamente no seio do governo mineiro.
Os jornais registravam os termos violentos com que se manifestara o secretário das finanças de Minas, que, aliás, era cunhado do presidente da República.
Não deu outra. Inconformado, Rui Barbosa opôs embargos ao julgado. Com grande esforço, Rodrigo Octávio apresentou, dentro do prazo legal - cinco dias -, sua impugnação em folhas datilografadas, compondo um total de 130 páginas.
Rui Barbosa, todavia, não obteve o mesmo êxito e pediu que o prazo fosse estendido. Quanto ao assunto, confessa Rodrigo Octávio :
"De minha parte eu teria pra com meu grande adversário toda a deferência, mas não sabia se o dono da causa, o Dr. Werneck, tão maltratado pelo Governo Mineiro, estaria disposto a concordar em que se desse ao formidável patrono do Estado todo o tempo que ele quisesse para lhe dar pancada e aprimorar a sova, tanto mais quando sabia que para seu patrono se havia recomendado o maior rigor."
A resposta do sr. Werneck foi negativa e Rui Barbosa, por isso, declinou o patrocínio da causa.
O ministro Pedro Lessa, relator do caso, tentando acalmar os ânimos, informou Rodrigo Octávio que o memorável Conselheiro Rui estava contrariado com o ocorrido, e perguntou se a questão não podia ganhar uma resolução.
Diante da intercessão do ministro, Rodrigo Octávio procurou novamente seu cliente, o sr. Werneck. Fazendo as ponderações corretas, desta vez tudo se arranjou.
E Rui retomou a causa, recebendo os autos com "o tempo que fosse necessário" para a realização de seu trabalho (coisas do provincianismo da época).
Tudo isso, entretanto, causou certa irritação e o agastamento com Rodrigo Octávio ficou evidente, sendo notícia fácil pela rua do Ouvidor.
Como se não bastasse, a coisa piorou ainda mais quando a causa foi novamente apresentada e submetida a julgamento.
Apesar dos embargos serem apresentados num volume de admirável e erudita argumentação, eles foram unanimemente desprezados, confirmando o julgado anterior.
Sem mais possibilidade de recurso, era mister intimar o Estado da decisão do Tribunal.
E o que era pra ser um expediente normal de processo transformou-se num verdadeiro mal entendido. Pelo menos é o que diz Rodrigo Octávio.
Com efeito, ele conta que havia feito o requerimento e entregado a um oficial de Justiça, com as melhores recomendações.
Mas "o bruto do oficial abordou Ruy Barbosa à porta de seu dileto cinema e, ali mesmo, em plena Avenida, chimpou-lhe a intimação."
"E Ruy nunca mais me perdoou do que ele acreditava ter sido obra minha."
Esta narrativa foi feita por Rodrigo Octávio quando chegava aos 70 anos de idade, em 1936.
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Lambari - MG
A partir de 1826, os poderes públicos do município começaram a manifestar interesse pela nascente. Entre 1830 e 1832, pela quantia de cem mil réis, a câmara municipal de Campanha desapropriou uma área de doze alqueires do terreno dos herdeiros de Antônio de Araújo Dantas, no local da nascente, para executar obras de proteção da fonte e construir algumas casas para uso dos doentes.
Até 16 de setembro de 1901, data em que foi criado o município das Águas Virtuosas, todos os melhoramentos e assistência administrativa à povoação que se formava dependeram de Campanha, município de que Lambari constituía distrito de paz (criado em 14 de setembro de 1891). A água, logo após a descoberta, recebeu o nome de Água Santa da Campanha, passando depois a ser conhecida por Água Virtuosa da Campanha e Água Virtuosa do Lambari.
O núcleo populacional que logo se formou tomou o nome de Águas Virtuosas, topônimo com o qual figurou entre as sedes municipais do Estado até 27 de dezembro de 1930, quando passou a denominar-se Lambari, já que assim era conhecida a região antes mesmo do descobrimento da nascente, por causa de um rio que corta o município a leste e serve de limite natural aos vizinhos.
Estimativa da população em 2009 : 19.244
Área da unidade territorial (Km²) : 213
Gentílioco : lambariense
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Fontes:
IBGE
NOGUEIRA, RUBEM. O Advogado Ruy Barbosa - momentos culminantes de sua vida profissional. 5ª edição. São Paulo: Noeses, 2009.
OCTÁVIO, RODRIGO. Minha memória dos outros. Rio de Janeiro: Nova série, 1935.
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