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Coisa julgada nas ações de paternidade: apontamentos sobre a flexibilização

Durante muito tempo, a autoridade da coisa julgada foi tida na seara do Direito como um dogma intransponível, por meio do qual se estabelecia um limite final para a atividade jurisdicional, de forma a evitar a perpetuação dos litígios existentes entre as partes e, por conseguinte, restabelecer a paz e a segurança indispensáveis ao convívio social.

8/1/2010


Coisa julgada nas ações de paternidade: apontamentos sobre a flexibilização

Suzana Santi Cremasco*

I. Intróito

Durante muito tempo, a autoridade da coisa julgada foi tida na seara do Direito como um dogma intransponível, por meio do qual se estabelecia um limite final para a atividade jurisdicional, de forma a evitar a perpetuação dos litígios existentes entre as partes e, por conseguinte, restabelecer a paz e a segurança indispensáveis ao convívio social.

Uma vez julgada a lide pelo magistrado, o comando emergente de sua decisão era revestido pelo manto da imutabilidade, tornava-se de respeito obrigatório pelo Estado e pelos particulares, "independentemente da constitucionalidade, legalidade ou justiça do seu conteúdo"1 e relegava eventuais vícios de validade e eficácia para serem posteriormente discutidos em ação autônoma de impugnação.

O caráter de imutabilidade conferido às decisões pelo trânsito em julgado encontrava respaldo no princípio da verdade formal, encerrando "uma presunção de verdade ou de justiça em torno da solução dada ao litígio (res iudicata pro veritate habetur)"2.

Assim, "a única idéia que se tinha até pouco tempo era a de que a coisa julgada havia de prevalecer, ainda que a sentença que por aquele fenômeno estivesse, por assim dizer, protegida, não representasse a aplicação da lei ao caso concreto"3 e, enquanto tal, fosse incapaz de solucionar, de fato, o conflito de interesses existente entre as partes e, via de conseqüência, de restabelecer, efetivamente, a paz e a ordem entre os jurisdicionados.

Nesse contexto em que a decisão transitada em julgada era capaz de fazer do branco, preto e do quadrado, redondo, os impactos das novas técnicas de investigação de paternidade – e especificamente do exame de DNA – nas ações de filiação já julgadas não eram objeto de preocupação por parte da doutrina e da jurisprudência nacional.

A hipótese de reabertura de discussão em torno de decisões que julgaram ações de paternidade sem que as partes tivessem se submetido ao exame de DNA, era algo verdadeiramente inimaginável, que, em princípio, implicava a completa subversão de valores há muito consagrados e consolidados no Direito Processual – notadamente a autoridade da coisa julgada e a segurança dela oriunda –, com impactos significativos para toda a sociedade.

Não obstante, a existência – e a crescente difusão – de um exame pericial que se afirma capaz de excluir o vínculo de paternidade com 100% de certeza ou de atestá-lo com índices próximos a 99,9999% de precisão permitiu constatar que, não raras vezes, a verdade trazida aos autos por autor ou réu e assentada pelo juiz por meio de sentença transitada em julgado encontrava-se dissociada da verdade biológica. Essa divergência trazia consigo uma série de conseqüências de ordem pessoal e patrimonial não só para as partes envolvidas no processo, mas também para seus respectivos familiares e para terceiros que com eles viessem a ter algum tipo de relação.

Tal fato, aliado à evolução verificada no Direito Processual Civil a partir de meados do século XX, no sentido de privilegiar a investigação e a descoberta da verdade real em detrimento da conformidade com a verdade meramente formal, para que as decisões emanadas do Poder Judiciário se tornassem capazes de fazer do processo um instrumento efetivo e justo, fez nascer, pouco a pouco, um novo fenômeno na ciência jurídica brasileira, qual seja: a admissão, em algumas hipóteses, da flexibilização da coisa julgada nas ações de paternidade.

Foi nos idos de 1998 que Belmiro Pedro Welter4 lançou doutrina precursora de que a sentença proferida nas ações de investigação ou de negação de paternidade só passaria em julgado se, no curso do processo, fossem produzidas todas as provas em direito admitidas, sobretudo – e principalmente – o exame de DNA. Na oportunidade, sustentou o autor que, sendo o direito de perfilhação de natureza indisponível, seria impossível admitir o seu reconhecimento ou a sua exclusão com base apenas em indícios, presunções ou ficções, como sistematicamente vinha ocorrendo até então. A sentença proferida na ação sem que se tivesse realizado a prova pericial não faria coisa julgada material e, portanto, possibilitaria o ajuizamento de uma nova demanda com vistas a obter um resultado diverso, a partir da produção do exame de DNA.

A tese foi inicialmente rechaçada pelo STJ, que não só não se preocupou em discutir a incongruência de se ter uma realidade assentada pela sentença transitada em julgado diametralmente oposta à realidade dos fatos, como também não admitiu sequer o ajuizamento de ação rescisória com base em exame pericial realizado voluntariamente pelas partes, após a formação da coisa julgada5. Mesmo quando o laudo de DNA continha conclusão contrária àquela assentada na sentença passada em julgado no tocante à existência do vínculo de paternidade, entendia o STJ que o preceito assentado pela res iudicata era intocável, devendo ser plenamente respeitado pelas partes e pelo juiz em todos os seus termos e com todos os consectários dele decorrentes.

Não demorou muito, porém, para que a jurisprudência da Corte Superior de Justiça do país se rendesse à teoria da relativização da coisa julgada na ação de paternidade. Foi em meados do ano de 2002 que, em acórdão paradigmático, de relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, o STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 226.436/PR, decidiu que uma vez "não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame de DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido"6.

O julgado representou um marco significativo no Direito brasileiro e conduziu a questionamentos extremamente sérios, com impactos relevantes e repercussão social inegável, não só porque atingiu valores até então sagrados e inalteráveis como segurança e justiça, mas, principalmente, porque tornou evidente a existência de um conflito entre a realidade social e a realidade jurídica e expôs a necessidade premente de que esse conflito fosse solucionado de forma harmônica.

Nesse cenário, admitir ou não a flexibilização da coisa julgada nas ações de paternidade já transitadas em julgado representava – e, porque não dizer, ainda representa – apenas e tão somente o ponto de chegada de uma discussão que perpassa por inúmeras outras variáveis, de diversas ordens, que precisam ser cuidadosamente enfrentadas e sopesadas.

De fato, mesmo passados sete anos da publicação do acórdão, pontos como o impedimento decorrente do texto expresso dos arts. 467 e 468 do Código de Processo Civil, a (in)falibilidade do exame de DNA, o eterno conflito entre segurança e justiça no Direito, os vínculos sócio-afetivos que eventualmente envolvam o autor e o réu nas ações de paternidade, ainda merecem ser discutidas.

É nesse ínterim que surge o presente estudo, com o qual procuraremos enfrentar as principais indagações que o tema da flexibilização da coisa julgada nas ações de paternidade desperta, não com a pretensão de esgotá-las – missão que sabemos ser verdadeiramente impossível nesta sede – mas, ao menos, de forma a lançar aqui algumas bases para fomentar o debate em torno da matéria.

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* Professora de Processo Civil da UFMG. Advogada do escritório Nemer Caldeira Brant Advogados

 

 

 

 

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