Corte argentina descriminaliza a posse de droga para uso pessoal
Luiz Flávio Gomes*
"Art. 19 - Las acciones privadas de los hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral pública, ni perjudiquen a un tercero, están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados. Ningún habitante de la Nación será obligado a hacer lo que no manda la ley, ni privado de lo que ella no prohíbe".
A decisão (dos sete magistrados) foi unânime. Descriminalizou a posse de droga para uso pessoal, porém, só para pessoas maiores (maiores de 16 anos). Cuidava-se, efetivamente, de um genuíno caso constitucional, visto que o recorrente confrontava a lei federal (lei 23.737/1989, art. 14, § 2º) com o disposto no art. 19 da Constituição argentina (que garante a isenção de responsabilidade em relação às ações privadas que não ofendem a ordem ou a moral pública nem prejudiquem terceiros). O que foi posto em discussão foi a validade da regra jurídica acima citada. Impõe-se distinguir com clareza a vigência da validade. A norma está vigente desde 1989. Agora o que se questionava era sua validade (porque incompatível com o texto constitucional superior).
A sentença (descriminalizatória) deixou claro que não se trata de legalização: a Corte não legalizou a droga na argentina. A droga continua proibida. Mas a posse (ou porte) de pequena quantidade, para uso pessoal, está fora do direito penal. O que a Corte fez foi declarar inválida a norma contida no § 2º do art. 14 da lei 23.737/1989. Continua no plano formal vigente, mas no plano constitucional é inválida (logo, não pode mais ter nenhuma eficácia).
A decisão da Corte argentina segue uma tendência mundial, que também está presente na América Latina. Nos anos 70 e 80 preponderou a política repressiva norte-americana (guerra contra as drogas). Essa política está perdendo sua força (diariamente) frente aos usuários. Considerando-se que os recursos destinados ao "combate" das drogas são escassos, melhor (mais justo e mais adequado) é dirigi-los contra os traficantes (não contra os usuários).
O México, em agosto de 2009, descriminalizou (legislativamente) a posse de drogas para uso pessoal, desde que não exceda o limite de 500 miligramas de cocaína ou de 5 gramas de maconha. Uruguai, há anos, não pune a posse de droga para consumo pessoal. Na Colômbia a Corte Suprema, em 1974, declarou a inconstitucionalidade da lei que punia criminalmente o porte de droga para uso próprio. O Peru descriminalizou a posse de droga para uso próprio há vários anos. Nesse mesmo sentido é a legislação em Costa Rica.
A Corte Suprema argentina, há anos, vem debatendo o assunto. Há cerca de 20 anos chegou a invalidar uma lei que punia a posse de droga para uso pessoal (Caso "Bazterrica" - Fallos: 308:1392). Mas na mesma ocasião houve também uma outra sentença em sentido contrário (Caso Montalvo). O debate já estava estabelecido, como se vê, há anos. No mundo acadêmico as sentenças antagônicas da Corte Suprema foram esgrimidas ardorosamente nas últimas três décadas.
A jurisprudência da Corte Máxima argentina, como se vê, sempre foi "ziguezagueante". No Caso Colavini (Fallos: 300:254) adotou-se como válida a criminalização. Nos Casos Basterrica e Capalbo a Corte caminhou para a descriminalização (Fallos: 308:1392). No Caso Montalvo, em 1990, voltou novamente para a criminalização (Fallos: 313:1333). Em agosto de 2009 retoma a linha argumentativa do Caso Basterrica (em favor da descriminalização). O que acaba de ser resenhado comprova que o direito não tem autonomia frente às circunstâncias históricas (de cada país, em cada momento). Conforme os ventos que sopram, pode-se alcançar um ou outro rumo (e, às vezes, até consenso) em torno dos assuntos polêmicos.
A lei 23.737/1989 já conta com vinte anos. O Caso Montalvo, que legitimou a política criminalizatória, tem dezoito anos. O longo período já transcorrido estava a justificar a retomada do assunto, mesmo porque, hoje, inclusive a ONU já não tem a mesma posição que adotava há duas décadas. As razões pragmáticas ou utilitaristas que foram invocadas na sentença Montalvo (no sentido de que é preciso punir o usuário porque isso diminui o tráfico de entorpecentes e acaba afetando o traficante) foram perdendo força ao longo dos anos. A punição penal do usuário não reduziu o tráfico de drogas, não afetou o "negócio" dos traficantes.
De todos os fundamentos invocados na Sentença em debate, talvez um dos pontos mais altos seja o que diz respeito à reforma constitucional argentina de 1994, que incorporou os tratados de direitos humanos (ratificados) à Constituição (art. 75, inc. 22). A reforma constitucional de 1994 reconheceu a importância do sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Com isso o Estado abriu mão, em certo sentido, ainda que parcialmente, de sua soberania ilimitada (Caso Mazzeo, Fallos: 330:3248). O panorama jurídico argentino, consequentemente, é outro. A política criminal do Estado já não conta com a soberania ampliada que ostentava. O Estado já não pode sobrepassar determinados limites, nem tampouco pode deixar de cumprir certos parâmetros afirmativos relacionados com a inclusão social e econômica.
Incontáveis são os reflexos das decisões internacionais sobre o direito interno. Esses parâmetros (civilizatórios) vão sendo incorporados paulatinamente na própria jurisprudência interna. Dizem respeito às condições carcerárias mínimas (Caso Verbitsky, Fallos: 328: 1146), ao duplo grau de jurisdição (Caso Casal, Fallos: 328: 3399), aos direitos dos menores quando violam a lei penal (Caso Maldonado, Fallos: 328: 4343), ao devido processo nas internações psiquiátricas involuntárias (Caso Tufano, Fallos: 328: 4832), à garantia da imparcialidade (Caso Quiroga, Fallos: 327: 5863, Caso Llerena, Fallos: 328: 1491 e Caso Dieser, Fallos: 329: 3034), ao direito de ampla defesa (Caso Benitez, Fallos: 329: 5556 e Caso Noriega, Fallos: 330: 3526), ao direito a um processo sem dilações indevidas (Caso Barra, Fallos: 327: 327), à definição do conceito de periculosidade (Caso Gramajo, Fallos: 329: 3680), ao direito das vítimas (Caso Santillan, Fallos: 321: 2021) e aos direitos das pessoas que são investigadas ou que estão sujeitas a sanção em razão de graves violações dos direitos humanos (Casos Arancibia Clavel, Fallos: 327:3312; Simón Fallos: 328:2056 e Mazzeo, Fallos: 330:3248).
Diante de todo esse novo panorama histórico, jurídico, cultural, social e econômico, geopolítico e internacional, não podia mesmo a Corte Suprema argentina deixar de reconhecer a inconstitucionalidade do art. 14, § 2º, da lei 23.737/1989. No mesmo sentido deve caminhar a jurisprudência da nossa Corte Máxima (STF). Espera-se!
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*Diretor Presidente da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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