Salário de devedor não é impenhorável
Antonio Carlos Aguiar*
Essa decisão é muito importante, na medida em que enfrenta situações cotidianas reais e não se limita às interpretações mais cômodas e tradicionais, lastreadas em verdades" estruturadas "desde sempre", como dogmas intransponíveis.
A função do Direito é avançar no tempo e entender as mudanças que acontecem todos os dias, a evolução social. Todos que trabalham no Direito devem enxergar o mundo e suas modificações e moldar suas características às necessidades sociais atuais, para que atendam ao seu desiderato maior que é a paz social, com liberdade de oportunidades e escolhas a todos aqueles que convivem socialmente. Uma verdade de ontem não necessariamente é uma constatação real hoje.
Princípios são importantes justamente para nortear comportamentos, para consolidar patamares morais e éticos. Contudo, como denota a sua própria origem, princípios não são regras inflexíveis. Por isso mesmo, sempre devemos proceder a uma análise completa e periférica de todas as situações e possibilidades postas a discussão, diante de uma situação concreta, e não nos limitarmos a conclusões casuais ou pré-estabelecidas, como se fossem retiradas de uma prateleira. E aqui os princípios exercem um papel imprescindível, qual seja: servem para abrir horizontes e não para fechar ou limitar a ação das pessoas.
Daí porque, quando se fala que os salários são impenhoráveis, resta saber e entender a motivação principiológica dessa assertiva e, a partir de então, relacionar as hipóteses materiais próprias e adequadas a sua inserção no mundo real. E foi exatamente isso o que fez o Tribunal do Trabalho do Rio Grande do Sul, para afastar o argumento da impenhorabilidade do salário pelo devedor de uma ação trabalhista, sob a intenção de evitar o uso da sua remuneração para saldar seu débito trabalhista.
O relator do recurso, desembargador Cláudio Antônio Cassou Barbosa, consentiu em determinar a penhora de 20% do salário do devedor, de R$ 3.500,00, em atenção justamente de outro princípio constitucional, também consagrado aos demais atores sociais, que é o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
O devedor, em suas argumentações – todas absolutamente "gramaticais: formatadas na letra fria da lei, perdidas num determinado tempo', tal como se fosse impossível avançar no tempo real; na vida real" –, invocou a impenhorabilidade desses valores, argumentando corresponderem a salário decorrente de contrato de trabalho mantido com entidade estranha ao processo, sendo necessário para satisfazer despesas comuns como água, telefone, escola de filho menor, supermercado, etc. Entendeu estar amparado pela CF/88 (clique aqui), que impede o prejuízo a direito adquirido (art. 5º, inc. XXXVI) e dispõe sobre a irredutibilidade e proteção do salário (art. 7º, inc. VI e X), e também pelo CPC (clique aqui), que garante a impenhorabilidade do salário (art. 649, inc. IV).
Ora, os mesmos argumentos, em todas as suas nuances e formas, servem à parte credora. Por que, então, satisfazer um em detrimento do outro?
Como destacado na decisão, "a origem de que a impenhorabilidade do salário deve ser aplicada em conformidade com o princípio que a orienta: o da proteção do salário, no sentido de assegurar a disponibilidade da parcela ao empregado, que é indispensável à garantia do seu sustento da família", é universal e não pode beneficiar alguém que, na origem burlou a lei, tanto que foi condenado judicialmente ao reparo.
Dessa forma, acrescentou a decisão "não ser razoável admitir que o devedor trabalhista deixe de pagar a dívida unicamente sob argumento de que seus salários são impenhoráveis, quando também é devedor de salário. Portanto, em virtude da identidade do bem jurídico a ser protegido (salário), concluiu ser perfeitamente cabível a relativização da norma, conforme o caso concreto, sem que se fale em afronta aos dispositivos constitucionais invocados".
E assim, portanto, devemos recolocar o Direito do Trabalho, com base na autonomia que o norteia, dentro do seu tempo real, como assinala Mauricio Godinho Delgado: "Autonomia (do grego auto, próprio, e nome, regra), no Direito, traduz a qualidade atingida por determinado ramo jurídico de ter enfoques, regras, teorias e condutas metodológicas próprias de estruturação e dinâmica".
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*Professor do Centro Universitário Fundação Santo André e sócio do escritório Peixoto E Cury Advogados
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