Migalhas de Peso

O estagiário justiceiro

Conhecido como Ricão, era um dos milhares, talvez milhões de estagiários dos cursos de Direito deste Brasil que já se disse varonil.

24/6/2009


O estagiário justiceiro

Mauro Tavares Cerdeira*

Conhecido como Ricão, era um dos milhares, talvez milhões de estagiários dos cursos de Direito deste Brasil que já se disse varonil. Carreira que serviu a galgar pessoas ilustres à história desse País e do mundo todo, como o célebre Rui Barbosa, o fato é que Ricão, hoje em dia, não se sentia lá com a bola toda, nem com ela pela metade.

Saído do interior para a Capital de São Paulo, tinha em seu peito até então era um bastião de saudades, algumas misérias, umas raivas ou outras, umas pernas já engrossadas de tanto andar de cartório em cartório pra ver e pegar processos, quando não pra tomar broncas e nãos de respostas, e bem na sua lida profissional ficava sempre em dúvida quando lhe perguntavam o que é que fazia lá no escritório e onde iria chegar nessa vida.

A esperança remoçou, no entanto, quando Ricão encontrou uma oportunidade em uma grande empresa, do setor de telefonia móvel, destas que saem a toda hora na televisão e no mundo. Coisa grande, muita gente, salário para mais de duzentos maior; agora a coisa vai que vai!

Contratação imediata, pois que os negócios nestas empresas grandes andam como anda mesmo o mundo todo. Não há tempo para nada. Faz um ano a vida nova começou. Parece que foi mesmo ontem. E não deu tempo de nada. Ao Ricão não apresentaram nem o pessoal da empresa. Aliás, não tinha empresa. Era um escritório mesmo, mais ou menos igual àquele em que trabalhara antes, pois disseram que o jurídico funcionava ali mesmo, e a empresa, lá dentro, ele nunca viu, nem ninguém viu também.

E chegavam pilhas de processos, todos iguais, ou muito parecidos. Parecia que os demandantes combinavam entre si as demandas. E não havia tempo para nada. O Ricão fazia contestações, que eram iguais as outras contestações, e recebia "da central" propostas para acordos, que eram iguais a outras propostas para acordos, e corria para audiências, que eram iguais a outras audiências. E algumas vezes "era preposto", e outras vezes "era advogado", e corria por tribunais de bagatela por toda São Paulo, conhecia cada vagão de metrô e cada ônibus.

Passava o tempo e vez em quando chegavam regras novas. Agora Ricão não era mais preposto ou advogado, mas "preposto e advogado", tudo isso concentrado em um "estagiário", já que a lei agora isso permitia. E o Ricão, vez em quando, passava o dia rodando cartórios na lida de retirar e devolver processos. E vez em quando o dia passava mas parecia que não tinha passado, e por vezes o Ricão chegava à faculdade, à noite, e ficava em dúvida se tinha mesmo ido trabalhar durante o dia. E outro dia, na quinta, se dava conta de que estava no escritório desde segunda sem ter ido para casa ainda, mas não sabia mesmo muito bem se isso era verdade ou não, mas não confiava em ninguém para perguntar se realmente estava acontecendo.

E foi em fevereiro que uma coisa começou a mudar. Não eram só os juízes e cartorários que começaram a repetir. Nem as causas todas. Parecia que os demandantes, irritadiços, cansados, sempre olhando para ele com cara de "saco cheio", começaram a se repetir. Eram sempre os mesmos, todos os dias. E isso era ruim demais, pois passara a ter receio de encontrá-los. Era como se estivessem a cobrar-lhe uma mesma conta todos os dias. A conta do leite ou do pão, ou do telefone, no caso.

Em uma madrugada de março, já bastante esgotado, e depois de assistir umas palestras sobre contabilidade e balanço e economia das empresas, teve a nítida impressão de que todo mundo estava sendo enganado. Ele estava sendo enganado, o judiciário estava sendo enganado, incluindo a cartorária bonitinha que um dia lhe ofereceu um chocolate, o cara do estacionamento em frente ao fórum, o consumidor, os próprios autos, todo mundo! Na verdade, todo aquele seu mundo profissional talvez sequer existisse e fosse apenas a representação de um drama mesquinho para ocupar o cotidiano!

Na realidade, pensara, aquele teatro é apenas uma farsa, como qualquer outra! E sua razão não poderia ser facilmente descartada. A sua cabeça girava com a seguinte equação:

1) a empresa tem como certo, em um País com instituições falhas, a lesão recorrente de consumidores;

2) a empresa tem como certo também, em um País como o Brasil, com excesso de tarifação, mão de obra barata e baixa concorrência – alto grau de monopólio – alto grau de corrupção, uma elevada rentabilidade;

3) as indenizações no País, oriundas do Judiciário, por tradição e jurisprudência, e dada a média de renda da população, e considerando que em geral são oriundas dos tribunais de pequenas causas, são de nível muito baixo, ou muito inferior às de países democráticos desenvolvidos;

4) as despesas com o setor jurídico de massa, defesa – acompanhamento de audiência etc, são baixas e controladas

5) conclusão: a prestação e manutenção, pelas empresas, de um serviço de péssima qualidade, nestas circunstâncias, é altamente compensatório, mesmo com um elevado índice de resultados negativos nos processos de reclamação judicial, bastando para isso manter uma pequena (em relação ao passivo total) provisão de risco no passivo.

E a conclusão final do Ricão : para a companhia em questão, não interessa e nunca interessou o que o juiz vai decidir ou o que eu vou fazer ou se alguém vai reclamar ou se vai processar ou se o prédio da justiça vai terminar de cair. Está tudo contabilizado em uma pequena nota de passivo. Nós, de fato, não existimos. O que existe é um "numerinho" insignificante dentro do passivo. Eu, se existir, sou um pedaço microscópico da perna de um número do passivo escrito no balanço daquela empresa que está me matando.

E foi nessa madrugada que tocou o telefone da casa do Miltão, o único filósofo que o Ricão conhecia, apesar do Miltão ser meio beberrão e meio "amaconhado", e ainda estar, há uns quatro ou cinco anos, no primeiro ou segundo do curso da Unicamp; mas falar o que é, o Miltão sabe um tanto das coisas da vida, e serve a dar uns conselhos, daqueles de se ficar pensando.

O Miltão ainda estava acordado, que de fato dormia melhor durante o dia. E foi escutando toda a história do amigo, não deixando de se impressionar com aquela revolução que se passava na cabeça do Rico. Como é que nunca havia percebido a existência de vida inteligente dentro daquele projeto de engravatado? E o Ricão narrava suas conclusões e se indignava cada vez mais até que, num inesperado, narrou seu plano para o amigo, o plano para o qual precisava da opinião do Miltão, do seu aval, para o qual não sabia muito bem se tinha coragem ou se poderia fazer ou se era certo ou errado. Aquele negócio de linha ética que aprendera na faculdade, ou medo mesmo de ser preso ou coisa parecida, justo neste país que todo mundo faz bem o que quer, e uma raiva danada do danado do Renan, e do Palocci, enfim.

O Miltão ouviu o interlocutor, que amigo que não faz nada é mesmo para estas coisas, localizou a situação no tempo e no espaço, se permitiu uma pergunta, sobre se o amigo estava seguro das consequências do que faria, e sem resposta disse o seguinte :

"Sócrates tomou cicuta sem medo, pois em sua consciência, sabia o que encontraria após sua morte ! Caso você esteja em paz com sua consciência, siga o caminho traçado e você será feliz."

E o porra do Miltão desligou o telefone.

"Grande merda esse Miltão! Deu na mesma e ainda atrapalhou um pouco. E quem é que quer morrer ! Mas quer saber; se tem alguém que tem de resolver a vida da gente é a gente mesmo, e eu tô nessa !"

A partir dali, o plano foi seguido meticulosamente. Ricão esperou o dia em que teria seis audiências no mesmo dia, no Fórum Vergueiro, na mesma Vara, e em que estava escalado para fazer as seis sozinho, e mais, nenhuma audiência mais haveria naquele Fórum naquele dia, ou seja, somente ele, da sua companhia ou escritório, estaria lá. Esse dia demorou uns 40 dias e mais umas quarenta noites para chegar.

Chegou cedo, com seu melhor terno, e também o único, e um bolo no estômago. Ficou lá em pé, pois lugar para sentar pra variar não tinha. Esperou ser chamado. Entrou. Sentaram do outro lado uma moça e seu advogado. A Juíza se virou para ele e perguntou, como sempre: "Tem proposta doutor?" E ele disse: "Sim, Excelência, hoje as propostas são boas, e são por minha conta!". Ela sorriu, mas sem entusiasmo, logicamente pensando que era só uma brincadeira. Ela disse: "De quanto é?" E o Ricão:

"A proposta é de R$ 15.000,00 para a Requerente, e caso aceita, a Companhia estará também doando R$ 15.000,00 à Casa da Criança Feliz, R$ 15.000,00 ao Juizado para aquisição de novos equipamentos de informática, e R$ 15.000,00 para que o Juizado direcione a uma instituição de beneficência de sua preferência."

O susto foi mesmo grande e a Juíza perguntou se o estagiário tinha certeza daquilo antes de confirmar o aceite da requerente, que foi imediato. A ata foi feita e assinada rapidamente, e o estagiário requereu se seria possível adiantar a sua próxima audiência, fazendo todas em sequência, o que foi deferido. A escrevente foi ao toalete e a Juíza somente pediu licença para dar um telefonema. O advogado presente pediu para cumprimentar um colega lá fora antes mesmo da ata ter ficado pronta, tendo voltado após alguns minutos, e a autora da ação passou a fazer algumas ligações no celular, sem que ninguém se importasse. O Ricão ficou lá, conferindo se cortara mesmo as unhas naquela manhã. Naquele momento lhe passou pela cabeça um pensamento engraçado: era a primeira vez que realmente sentia, por alguns momentos, fazer jus ao seu apelido, ainda que com o dinheiro dos outros, sabe-se lá de quem.

A segunda audiência foi apregoada, antes mesmo da escrevente retornar do toalete. Lá fora o movimento já parecia bastante anormal. Pessoas agora se aglomeravam e se acotovelavam. Funcionários de outras varas conversavam em frente aos elevadores e muitas pessoas chegavam a todo momento pelas escadas. Outros demandantes e advogados que teriam audiências naquele dia contra a mesma companhia falavam alto e animados ao celular.

A Juíza, uma jovem de nem trinta anos, bastante simpática, deu sequência à sessão, iniciando a audiência seguinte, indagando animada ao estagiário se havia proposta no caso e se seria tal e qual ousada. O Ricão disse que sim, que aquele era um bom dia na companhia, que passara a rever alguns dos seus conceitos:

"Neste caso estamos sugerindo R$ 25.000,00 para a cliente da companhia, que mesmo em face da demanda não nos abandonou até hoje, continuando fiel, e caso haja concordância mais R$ 20.000,00 para o Lar de Idosos sediado aqui no bairro; R$20.000,00 para uma confraternização dos servidores deste Fórum, e R$ 35.000,00 para "a" ou "as" instituições indicadas pelo Juízo."

A escrevente engasgou com uma barra de cereais que comia, passou a tossir, encheu os olhos de lágrimas, e saiu correndo da sala se desculpando com a Juíza com uma expressão de "não tem outro jeito" e abanando as mãos. A Juíza confirmou o aceite com uma requerente boba-alegre e um advogado nas nuvens, uma funcionária da secretaria entrou para conferir a informação; a Juíza então disse que agora ela que precisaria usar o banheiro, antes pedindo para a mesma funcionária presente indicar outra instituição beneficente diferente da anterior, e umas onze ou doze pessoas que estavam na sala assistindo a audiência saíram e abriram seus celulares. Quem passou a fazer ligações animadas foi também a cliente do advogado, que ganhou um beijo desse e deu também uma beijoca no Ricão.

Nessa altura, em que a Escrevente voltava para fazer a ata, com muita dificuldade para entrar na sala, e a Juíza falava ao celular no meio das escadarias entre os andares, já havia um congestionamento em uma das vias da Av. Vergueiro e uma movimentação incomum de pedestres na calçada, e acabara de chegar um carro de uma TV local. A terceira audiência então foi chamada.

Terminada a quinta audiência, o Ricão já havia gasto da empresa R$ 720.000,00, afora custas e despesas processuais. Não havia mais condições de continuidade das audiências. O tumulto era geral. Os funcionários da companhia enviados para barrar ou matar o Ricão, a qualquer custo, não tinham conseguido chegar até o oitavo andar, onde ele estava. A parte e o advogado da sexta audiência estavam, juntos, para ter um ataque cardíaco. A Av. Vergueiro estava intransitável. Toda a imprensa de São Paulo estava lá. O Ricão pediu para a Juíza para constar, pelo menos, a proposta de acordo da sexta audiência em pauta, mas o corpo de bombeiros ordenou o início da evacuação do prédio, e então nada feito. Três advogados dos que haviam sentado à mesa com o Ricão momentos antes fizeram questão de escoltá-lo na saída, cuidando assim da sua segurança.

Até sair finalmente do Fórum, devidamente escoltado juridicamente, o Ricão demorou mais cerca de 50 minutos. Lá embaixo, a TV, Rádios e Jornais diversos. Ao sair, o herói foi reconhecido e rodeado por repórteres. Queriam saber o que tinha ocorrido, a razão de sua atitude, logicamente não autorizada pela empresa. O que levara um estagiário a agir daquela forma? E até isso o Ricão já tinha em seu plano!

Para cerca de trinta ou quarenta microfones postados em seu redor, naquele final de tarde de quarta feira, o Ricão prestou as seguintes declarações:

"Pessoal, peço sua compreensão e vou ser rápido, pois o dia tem me sido um pouco pesado. Vou falar e depois infelizmente não poderei responder a perguntas no dia de hoje. Simplesmente cansei de tudo isso. Cansei de ver as mesmas pessoas com os mesmos problemas que deveriam ser tratados de forma sistêmica, com uma atitude séria e coordenada, terem de vir aqui individualmente, repetir um a um o drama de todos. Cansei de ver a movimentação diária de todo um sistema por causa de um aparelhinho celular, em uma atitude egoísta, coisa que poderia ser resolvida apenas com um pouco mais de respeito. Cansei de fazer tudo igual todo dia, de nunca criar, de só repetir. Cansei de só pensar, todos os dias, no Charles Chaplin dizendo "não sois máquina, homens é o que sois", e no entanto não poder fazer nada com minha inteligência, além de transformá-la em algo maquinal. Cansei de não ser gente, de viver pelas contas, pelos cálculos, de advogar pelos cartórios, de contar processos. Sou muito novo para tudo isso. Meu mundo ainda é novo. Eu ainda tenho um amanhã. Obrigado por toda atenção e por seu precioso tempo !"

E o estagiário foi andando sozinho ! No caminho foi pensando em quem mesmo teria tomado cicuta, se era o Sócrates ou o Sófocles, ou até o Tales, aquele de Mileto. Não importava mais ! A sua escolta ficou parada meio pensativa, olhando; e depois foi tomar um chope, que ninguém é de ferro.

Não se sabe ao certo do destino do estagiário da nossa história. Uns dizem que andou pela Ana Maria Braga e Hebe Camargo, passando pelo Jô Soares. Outros que teve ele com o Delegado Protógenes dando palestras por aí. Há ainda os que dizem que por trás dele havia interesses transnacionais, da concorrência voraz e até terroristas. Há comentários de que trabalha para escritórios de advocacia do consumidor, nos USA. Alguns dizem que o nosso estagiário nunca existiu, que de fato não existem estagiários famosos. Outros ainda dizem que os processos não existem, são instrumentos de resolução de lides não materializados.

O que eu sei e posso dizer com certeza, é que pelo menos em algum lugar da minha mente, no subconsciente ou inconsciente, ou seja lá onde for, o estagiário justiceiro existe, e talvez eu tenha um pouco dele, ou tenha me parecido um pouco com ele um dia, só um dia, ou todos nós tenhamos.

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*Advogado do escritório Cerdeira Chohfi Advogados e Consultores Legais










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