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MP: ilegitimidade de parte nos crimes sexuais em que a ofendida é pobre

O Código de Processo Criminal de 1832, seguindo o Código Criminal de 1830, distinguiu os modos de procedimentos para os crimes públicos e para os particulares (72/78). Os primeiros eram promovidos pelo promotor público ou por qualquer cidadão, dentre eles os crimes políticos.

16/6/2009


MP: ilegitimidade de parte nos crimes sexuais em que a ofendida é pobre

Carla Rahal Benedetti*

O Código de Processo Criminal de 1832, seguindo o Código Criminal de 1830, distinguiu os modos de procedimentos para os crimes públicos e para os particulares (72/78). Os primeiros eram promovidos pelo promotor público ou por qualquer cidadão, dentre eles os crimes políticos. Já, os crimes contra os particulares conferiam ao ofendido a possibilidade de promover a ação penal até mesmo em relação ao homicídio1.

Mister se faz observar, que cabia ao promotor o dever de ingressar com a queixa nos casos de vítima pobre e a qualquer do povo a faculdade de fazê-lo (73), podendo, inclusive, oferecer denúncia nos casos elencados no art. 74 do Código de Processo Penal de 1832. Historicamente, foi no Código Penal Brasileiro de 1890, que o legislador apresenta, pela primeira vez, a determinação de que os crimes sexuais, são de iniciativa privada, excetuando os casos elencados no art. 274. Aparece, finalmente, a preocupação do legislador em amparar o direito das ofendidas "miseráveis".

Conclui-se que o legislador, embora ressaltando a idéia de que os crimes sexuais são de interesse exclusivo da vítima por tratarem de questões de foro íntimo e de possível exposição social, preocupando-se com aquelas que por deficiência de recursos poderiam ficar sem o amparo da justiça, apresenta, dentre as exceções, a possibilidade de que seja instaurado um processo.

Pela Consolidação das Leis Penais de 1932 foi mantido o artigo 274 do Código Penal de 1890. O Código Penal de 1940 (clique aqui), também manteve a preocupação de tutelar o direito das vítimas de crimes sexuais, que por questões econômicas não podem suportar as despesas de um processo sem privar-se dos recursos indispensáveis à sua família (art. 225, §1º, I c/c § 2º). Inovando com a chamada Representação (manifestação formal de interesse na punição do autor), sem contudo regulamentá-la, nos casos de vítima pobre, permaneceu entendendo caber à iniciativa privada a legitimidade para a busca da tutela jurisdicional (art. 225 caput).

Antes mesmo da publicação da reforma penal (Código de 1940), ficou inicialmente resolvido, conforme Exposição de Motivos do CPP, que não poderia ser esperada por maior tempo, a elaboração do projeto de Código único de Processo Penal. Havia uma necessidade premente da regularização da justiça penal, vez que a legislação processual penal podia, por mandamento constitucional da Carta de 1937 - clique aqui (art. 17 e 18, g), ser declarada pelos Estados, independentemente de autorização da União, nos casos de supressão das deficiências da legislação em vigor.

Com a decretação do CP de 1940, urgia a elaboração da legislação penal processual única para fazer correspondência com o referido Código, coordenando, sistematicamente, as regras do processo penal, num Código único para todo o Brasil, atendendo, com isso, o disposto no parágrafo único do art. 18 da Constituição de 1937.

Na própria exposição de motivos, resta evidente que o projeto não alteraria o direito atual, mas, traria inovações necessárias à aplicação do novo CP e as orientações para corrigir "imperfeições apontadas pela experiência, dirimir incertezas da jurisprudência ou evitar ensejo à versatilidade dos exegetas. Dentre as inovações introduzidas, houve breve explanação a respeito da Ação Penal, esclarecendo que: V- (...) É devidamente regulada a formalidade da representação, de que depende em certos casos, na conformidade do novo Código Penal, a iniciativa do Ministério Público."

Com a Lei de Introdução ao CPP (DL 3.931 - clique aqui), fica determinado no art. 5º que "se tiver sido intentada ação pública por crime quem segundo o CP, só admite ação privada, esta, salvo decadência intercorrente, poderá prosseguir nos autos daquela, desde que a parte legítima para intentá-la ratifique os atos realizados e promova o andamento do processo". Resta indiscutível que o legislador, respeitando e aderindo o espírito do Código, procurou explicitar a questão da legitimidade de propositura da ação penal privada, vez que, como já visto, era de ação penal pública nos casos de vítima pobre, gerando possivelmente, incertezas quanto a vontade da vítima de propugnar em juízo, nos casos de crimes contra os costumes.

Evidentemente, como não havia qualquer formalidade exigida para que o Ministério Público propusesse a ação penal nos casos de vítima pobre, problemas ocorriam gerando insegurança jurídica. Tanto é patente a problemática, que a opção do legislador foi a de exigência de ratificação, pela parte legítima, nos casos de ação penal privada intentada por pública, de todos os atos realizados, bem como a promoção do andamento do processo, ainda que pudessem permanecer nos mesmos autos.

O CPP, no art. 32, determina:

"Nos crimes de ação privada, o juiz, a requerimento da parte que comprovar a sua pobreza, nomeará advogado para promover a ação penal".

Tanto o CP de 1940, quanto o CPP de 1941 (clique aqui), entraram em vigor no dia 1º de janeiro de 1942, revogando as disposições em contrário, segundo a norma contida no art. 16 da Lei de Introdução ao CPP de 1941 e art. 27 da Lei de Introdução ao CP de 1940.

Diante desta observação, conclui-se que não há dúvida de ter sido o CPP de 1941 elaborado para sistematizar adequadamente e corrigir as possíveis antinomias em relação ao Código Penal de 1940, vez que a idéia era a de ajustamento e adequação da legislação penal substantiva e adjetiva brasileiras. O inciso I, § 1º c/c § 2º do art. 225 do CP de 1940, era um dos casos que necessitavam de correção. Como forma de ratificar o alegado, em 5/2/50, é decretada a lei 1.060/50 (clique aqui), com o fito de estabelecer normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados, esclarecendo, no parágrafo único do art. 2º, quem são as pessoas consideradas necessitadas para fins legais.

Para corroborar ainda mais com as alegações ora apresentadas, a LC 478, de 18/7/86, Lei Orgânica da PGE, no artigo 3º, II, "c", declara ser de sua atribuição, a Assistência Judiciária, tanto na esfera cível quanto na criminal. Foi na CF/88 que o MP teve ampliado as suas funções, transformando-o em defensor da sociedade e passando a ser considerado, bem como a defensoria pública, instituição essencial à Justiça. Vale dizer, que com a atual Carta Constitucional, o legislador determinou ser a ação penal pública, privativa do MP, vez que até então não era. Com o intuito de corrigir a antinomia existente entre o CPP/1941 e a CF/1988, a lei 11.719/08 (clique aqui), confere nova redação ao art. 257 do CPP, afirmando, em consonância ao disposto na norma constitucional que, a ação penal pública é privativa do MP, diferente da redação anterior que não mencionava essa privatividade.

Até o advento da CF/88, os representantes do MP eram as únicas autoridades que representavam o Estado Administração nas ações em nome da sociedade; ainda não havia a figura do defensor público, vez que o "pensar" nos menos favorecidos, foi paulatinamente surgindo no direito brasileiro com as mudanças da sociedade brasileira.

Assim, a figura do defensor público surge em 1988 para tutelar, como norma constitucional, os interesses dos mais carentes. Tanto o Ministério Público quanto a Defensoria Pública exercem funções que contribuem para a boa administração da Justiça e representam nos ditames da CF/88, o Estado- Administração. A recepção de uma lei infraconstitucional tem seu limite traçado na compatibilidade com a CF/88. Somente ocorre a recepção das normas do ordenamento infraconstitucional que sejam compatíveis com a CF/88.

Havendo uma norma infraconstitucional incompatível com a norma constitucional ou de igual teor, considera-se aquela uma norma sem eficácia e validade e que portanto, é inconstitucional, pois a CF/88 representa o limite ao "poder"' e a "vontade" do legislador de forma escrita e rígida constituindo, assim, o Estado Democrático de Direito, que quer dizer uma lei com conteúdo de justiça e não mera vontade arbitrária do legislador.

Portanto, a carga axiológica que levou o legislador de 1890 a cuidar dos crimes sexuais como de iniciativa privada excetuando os casos de vítima pobre, é a mesma acompanhada pelo legislador de 1932 (Consolidação das Leis Penais), pelo de 1940 (CP), pelo de 1941 (CPP) e pelo constituinte de 1988 (CF). O CPP de 1941 que trata especificamente das vítimas pobres quando se tratar de ação penal privada cabendo ao juiz nomear um advogado (art. 32, CPP), é posterior ao CP de 1940, embora ambos tenham entrado em vigor na mesma data e revogando as disposições em contrário, arts. 360 e 361 do CP/40 e art. 810 e 811 do CPP/41.

Para aplicação aos processos que estavam em curso, anteriores a data de 1º de janeiro de 1942, obedeceu-se ao DL 3.931, de 11.12.41 – critério cronológico para solução de conflitos e antinomias: art. 2º, da LICC. A CF/88 que determina ser a Defensoria Pública parte legítima para defender os menos privilegiados e caber ao MP, privativamente, a ação pública, apresenta o critério hierárquico (e cronológico): art. 2º, da LICC.

Assim, não nos parece coerente a assertiva de que foi "opção do legislador ao excepcionar a regra geral contida no artigo 32 do CPP e possibilitar a disponibilidade da ação penal, tão somente, até o oferecimento da denúncia" (Ementa do RHC 88143/RJ: Rel. Min. Joaquim Barbosa STF).

A um porque o legislador de 1940 não poderia ter opinado frente a inexistência do art. 32 do CPP que é de 1941 (posterior). A dois, e respeitosamente, porque tal interpretação carece de embasamento científico, isto é, dizer que foi opção do legislador, pura e simplesmente, demonstra apenas uma opinião pessoal e não ordenada e sistematizada dentro de uma unidade dialética. Não há critérios lógicos ou científicos. Ao contrário, coloca a Instituição do MP numa posição hierarquicamente superior a da Defensoria Pública, apresentando com isso uma "visão" equivocada, arbitrária e inconstitucional. Cada uma destas instituições possui suas funções normatizadas pela própria CF/88.

Outra questão que a nosso ver deve ser totalmente desconsiderada é "(..) a escolha pelo Ministério Público para a promoção da ação, demonstra opção do Legislador pelo órgão que é mais conveniente para tal, posto que, deste modo, a ação torna-se pública, portanto indisponível após o oferecimento da denúncia, insuscetível de perdão ou abandono da causa, além de manter a pessoa ofendida com a prerrogativa de julgar a respeito da propositura ou não da ação penal" (HC 64.250/SP; Rel. Des. Conv. Jane Silva STJ).

Achar mais conveniente ser a ação pública no caso de vítima pobre, apresentando como fundamentos que assim ficará indisponível a ação após o oferecimento da denúncia, bem como insuscetível de perdão ou abandono de causa, foge da carga axiológica que se apresenta a questão, isto é, a pobreza da vítima nestes casos. Se assim fosse, quem pode pagar um advogado para a propositura da queixa-crime pode desistir da ação e não possui um defensor adequado ou mais conveniente para tal – leia-se "Inconveniente"?-, enquanto que aquele que não pode pagar, deve ficar sem qualquer liberdade nos casos de crimes onde são atingidas questões de foro íntimo. Em contrapartida, para estes últimos, a defesa é mais "Conveniente".

Não há qualquer fundamento lógico, científico ou legal, ao contrário, fere inclusive o princípio da isonomia assegurado em cláusula pétrea, sem mencionar mais uma vez, uma predisposição de erigir o MP a um poder hierárquico não conforme ao disposto pela própria CF. A interpretação científica e jurídica deve ser dotada de conteúdo ético, que significa aquilo que deve ser e de objetividade. Sendo assim, entende-se, que a legitimidade para propor a ação penal nos crimes sexuais quando se tratar de vítimas menos afortunadas é da Defensoria Pública, regra esta determinada por preceito constitucional, art. 134 c/c art. 5º LXXIV, da CF/88.

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1 É de ser observado que até a Constituição Federal de 1988, a legitimidade para a ação pública também pertencia ao particular e não somente ao promotor público, embora tivesse o Código Penal de 1940, no art. 100, expressamente determinado acerca do tema, bem como a mesma intenção teve o Código de Processo Penal de 1941, avocando para si tais dispositivos no Título III, arts. 24 à 62 . Ex. Constituição do Império, art. 179 “ 30; art. 8º da Lei de 15 de outubro de 1827; art. 16 § 2º da Lei nº 2033 de 20 de setembro de 1871; art. 20 § 2º do Decreto 4824 de 22 de novembro de 1871; art. 52 do Decreto 848 de 11 de outubro de 1890; art. 1º, parágrafo único da Lei nº 628 de 28 de outubro de 1899 (neste havia o instituto da representação).

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*Sócia do escritório Carla Rahal Benedetti Sociedade de Advogados

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