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Carteira de Habilitação suspensa – Prisão – Crime de desobediência – Abuso de poder – Sofismas e verdades jurídicas

O acidente automobilístico envolvendo um agora ex-parlamentar que culminou na morte de dois jovens, fez eclodir no seio da comunidade polêmica sobre a condução de veículos com a carteira de habilitação suspensa, mas não entregue à repartição de trânsito.1 Bradaram-se a ineficácia da legislação, a inércia das autoridades, entre outras incandescentes polêmicas.

16/6/2009


Carteira de Habilitação suspensa – Prisão – Crime de desobediência – Abuso de poder – Sofismas e verdades jurídicas

Sidney Martins*

I - Fatos subjacentes

O acidente automobilístico envolvendo um agora ex-parlamentar que culminou na morte de dois jovens, fez eclodir no seio da comunidade polêmica sobre a condução de veículos com a carteira de habilitação suspensa, mas não entregue à repartição de trânsito.1 Bradaram-se a ineficácia da legislação, a inércia das autoridades, entre outras incandescentes polêmicas.

II – Ameaça de prisão

Quiçá movido pelo clamor social o Secretário de Segurança Pública do Estado do Paraná, através da Resolução 203/2009, determinou que policiais sob a sua batuta visitem os motoristas que estejam com a CNH suspensa intimando-os a entregá-las.

Na hipótese de recusa em entregar o referido documento, quer o Secretário que sejam os motoristas presos em flagrante delito, sob a acusação da prática do crime de desobediência previsto no art. 330, do CP (clique aqui) que diz:

"Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:

Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa."

Antes de prosseguir, é curial anotar que não se pretende exercer juízo valorativo acerca dos supostos aspectos moralizadores da atitude secretarial – se existentes.

O que impulsionou o traçar destas poucas linhas foi o dever de todos de velar pela preservação do Estado de Direito e pelo respeito às instituições jurídicas.

Emerge daí que a investigação da juridicidade ou não da prefalada Resolução assume tão-só contornos jurídicos, abstraindo-se de quaisquer outros elementos.

Destarte, o que está se pondo à baila é a legalidade ou não da prisão daquele que tendo a carteira de motorista suspensa deixa de entregá-la ao policial que o visita.

Não está em pauta questão relacionada com o possível fato de o motorista ser apanhado dirigindo veículo com a CNH suspensa.

Pois bem! Inicie-se verberando que, exclusivamente sob a ótica da ordem jurídica vigente, a medida cogitada – não se tem notícia da lavratura de auto de prisão em flagrante – é indisfarçavelmente ilegal.

III- Crime de desobediência – Prisão em flagrante - Insustentabilidade

A desobediência como figura delitiva não se aplica à situação de recusa em entregar a CNH, muito menos tem guarida a propalada prisão.

A rigor, a omissão (deixar voluntariamente de entregar a CNH na repartição de trânsito) ou a recusa (não atender a solicitação policial) não constitui isoladamente ilícito penal.

É de elementar sabença que: Não há crime sem lei anterior que o defina.

Não há pena sem prévia cominação legal.2

Nem o CTB (Lei 9.503/97 – clique aqui) nem o CP (DL 2848/40) trazem em seu bojo previsão imputando ilicitude penal para essa conduta.

Ocorre aqui o que a doutrina chama de atipicidade de conduta.

Ver-se na prescrição contida no art. 330, do CP, enquadramento para hipótese tratada afronta os mais elementares princípios de Direito.

Primeiramente, pode-se arrolar o princípio imanente da CF/88 (clique aqui) segundo o qual: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei" (art. 5º, inciso II).

Com toda a certeza Resolução não poder ser tida como lei, fator este que sequer requer maiores digressões pela obviedade.

Todavia, o que se nos afigura de maior significação para reputar como desregrada a pretendida prisão, como dito, é ausência de preceito que defina o acontecimento versado como crime.

Nesse plano, verifica-se que a correta interpretação do disposto no art. 330, do CP – que cuida do crime de desobediência, desautoriza considerar que o comportamento do motorista que não entrega a CNH se enfeixe no contexto desse tipo penal.

O simples fato de ser o policial um funcionário público é insuficiente.

É preciso mais que isto. A assertiva ganha corpo e força quando são examinadas as decisões judiciais sobre a matéria.

O STF, por sua Segunda Turma, reafirmou o que já decidira em outras oportunidades, que a jurisprudência predominante é categórica em apontar a ausência de tipicidade de crime de desobediência quando a inexecução de ordem emanada de servidor público for punível com sanção de caráter administrativo prevista em lei (Habeas Corpus 88452 - clique aqui).

Os acontecimentos havidos e noticiados no caderno processual versavam sobre a recusa de um motorista em apresentar seus documentos pessoais e do veículo que conduzia a um soldado que lhe abordou.

Esse condutor foi condenado à pena de três meses de detenção, convertida em prestação de serviços à comunidade, por ter cometido o crime de desobediência. O condenado não se apresentou para o cumprimento da pena alternativa, e o juiz restaurou a detenção, expedindo o mandado de prisão.

Para evitar o encarceramento foi impetrado Habeas Corpus no STF contra ato da Primeira Turma Recursal Criminal da Comarca de origem da ação penal que restou concedido.

O ministro relator do HC, ao proferir seu voto, considerou que a situação exposta evidenciava a hipótese de possível ausência de tipicidade penal da conduta que resultou na condenação do paciente pela prática do crime de desobediência.

Enalteceu o ministro que a jurisprudência do Supremo inclina-se pela não configuração, no plano da tipicidade penal, do crime de desobediência quando a inexecução de determinada ordem de servidor público for punível com sanção de caráter administrativo prevista em lei, como ocorre nos casos em que o condutor de veículo automotor se recusa a exibir, quando solicitado por agente de trânsito, os documentos de habilitação, de registro, de licenciamento de veículo e outros exigidos por lei (art. 238, do CTB)3.

Relativamente à ventilada prisão em flagrante, ainda que aceitássemos – apenas para argumentar – que a recusa em entregar a CNH caracterizasse o crime de desobediência, mesmo assim o encarceramento seria ilegal.

A cognominada Lei dos Juizados Especiais (9.099, de 26/9/95- clique aqui)4 considera crime de menor potencial ofensivo aqueles cuja pena atribuída não ultrapasse 2 (dois) anos.5

Como consequência disso tem-se que não se imporá prisão em flagrante nem se exigirá fiança ao acusado da prática do ilícito.

Deve a autoridade policial lavrar termo circunstanciado (TC), colher o compromisso do autor do fato de comparecer ao juizado em data e horário especialmente assinalado, encaminhando a este imediatamente tal peça.6

O procedimento noticiado é o que deve ser adotado para os casos de crime desobediência porque, como visto, a pena máxima estabelecida é de 6 (seis) meses de detenção.

Portanto, não resta dúvida que é totalmente descabida a prisão em flagrante para o caso testilhado, além de que sequer há crime nas condições fáticas citadas.

IV – Abuso de autoridade

Suponha-se, contudo, que seja efetivada a prisão de quem instado a devolver a CNH não o faça.

Isso ocorrendo afigurasse como emergente nítido abuso de autoridade.

A lei 4.898/65 (clique aqui) regula o direito de representação, a qualquer do povo, por meio de petição para responsabilizar administrativamente, civilmente e penalmente os casos de abuso de autoridade.

Diz a referida lei que constitui abuso de autoridade, entre outros, os atos que atentem contra a liberdade de locomoção (art. 3º, "a") e aqueles que ordenam ou executam medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder (art. 4º, "a").

Desejou o legislador punir comportamentos das autoridades7 que cerceiem injustamente a liberdade física do cidadão ou efetuam prisões sem justa causa, ou mesmo estas quando ausentes as formalidades legais.

Registre-se, por oportuno, que o abuso de autoridade sujeita o seu autor à sanção administrativa, civil e penal.8

Considerada a gravidade do abuso cometido, a sanção administrativa consistirá em advertência, repreensão, suspensão do cargo, função ou posto por prazo de cinco a cento e oitenta dias, com perda de vencimentos e vantagens, destituição de função, demissão e demissão a bem do serviço público.

A sanção civil consistirá no pagamento de indenização, caso não seja possível fixar o valor do dano.

A sanção penal contemplará pena de multa e detenção por dez dias a seis meses, além de perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo até três anos.

A aplicação dessas penas poderá se dar de forma autônoma ou cumulativa.

A lei em apreço prescreve ainda que se o abuso for cometido por agente de autoridade policial, civil ou militar, de qualquer categoria, poderá ser cominada a pena autônoma ou acessória, de não poder o acusado exercer funções de natureza policial ou militar no município da culpa, por prazo de um a cinco anos.

A tutelar o direito das vítimas dos descompassos das autoridades está, inclusive em plano maior, a própria CF/88 que, no art. 5º, proclama:

LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.

LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

A par de tudo isso, parece que não se abre espaço para, em prol da medida contida na Resolução objetada, suscitar a existência de diversidade de pontos de vista com relação à matéria ou quem sabe aventar-se sobre o caráter preventivo de se buscar a CNH na casa dos motoristas (diminuíram os acidentes).

Também não há espaço para a vetusta expressão de Nicolau Maquiavel: "os fins justificam os meios".9

O mesmo se diga da máxima de George Washington: "Exitus acta probat", traduzida incorretamente como "o êxito faz aprováveis os atos".

Nada pode se opor ao Princípio da Legalidade.10

A lei define os limites da atuação administrativa.

A restrição de direitos, ainda que em benefício da coletividade, só é admitida pela lei, posto que a lei, pelo menos em tese, é sempre nascida da coletividade, seja de forma direta ou indireta, como sói acontecer nas democracias modernas.

"Este princípio entronca-se com a própria noção de Estado de Direito. Estado de Direito é aquele que se submete ao próprio Direito que criou, razão pela qual não deve ser motivo de surpresa constituir-se o princípio da legalidade um dos sustentáculos fundamentais do Estado de Direito".11

Este princípio, pois, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

É comum dizer que no Estado Democrático de Direito há o governo da lei em oposição ao antigo governo dos homens, no sentido da arbitrariedade de uns poucos que participavam da aristocracia.

"Enfim, o princípio da legalidade atende àquele ideal jeferssoniano de estabelecer um governo de lei em substituição do governo dos homens e de certo modo reproduz também aquela máxima de Michelet sobre 'o governo do homem por si mesmo', ou seja, 'le governement de l’homme par lui mêmme'".12

Remate-se enaltecendo que a busca pela não-violência pressupõe que o fim é o resultado do meio, numa relação causa e efeito.

A paz social não pode ser obtida com o desrespeito ao primado da Lei.

O uso absolutista da opressão como elemento para atingir "a paz" leva a uma irrealidade. Configura um engodo.

De se ver que, a partir do momento em que os instrumentos opressivos deixam de ser usados, estado de paz simplesmente desaparece.

Não se alcançará verdadeira segurança no trânsito com a utilização de mecanismos fora dos limites legais.

Tudo o que é erigido em solo movediço desaparece.

O fim é o resultado dos meios.

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1 Acidente ocorrido na cidade de Curitiba/PR, no dia 7/5/09, envolvendo o então Deputado Fernando Ribas Carli Filho.

2 Art. 1º, do Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40

3 Art. 238. Recusar-se a entregar à autoridade de trânsito ou a seus agentes, mediante recibo, os documentos de habilitação, de registro, de licenciamento de veículo e outros exigidos por lei, para averiguação de sua autenticidade: Infração - gravíssima; Penalidade - multa e apreensão do veículo; Medida administrativa - remoção do veículo.

4 Art. 60. O Juizado Especial Criminal, provido por juízes togados ou togados e leigos, tem competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, respeitadas as regras de conexão e continência. (Redação dada pela lei 11.313/06).

5 Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. (Redação dada pela lei 11.313/06).

6 Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. (Redação dada pela lei 10.455, de 13/5/02)

7 Art. 5º Considera-se autoridade, para os efeitos desta lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração.

8 Cf. art. 6º, da lei 4.898/65

9 Frase constante da obra: O PRÍNCIPE.

10 Os procedimentos administrativos devem rigorosamente observar os ditames da lei aplicável. Citação contida em Multas de Trânsito – Defesa Prévia e Processo Punitivo. SIDNEY MARTINS. Juruá Editora. P. 48.

11 Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Administrativo, 2ª edição, Saraiva, p. 35

12 Paulo Bonavides, Ciência Política, 5ª edição, Forense, página 116

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*
Advogado responsável pela área de Direito Público do escritório Küster Machado - Advogados Associados










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