O art. 35-c da lei dos planos de saúde e sua recente alteração
Benício Boida de Andrade Júnior*
Com efeito, dispunha o diploma:
Art. 35-C. É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos:
I - de emergência, como tal definidos os que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaração do médico assistente;
II - de urgência, assim entendidos os resultantes de acidentes pessoais ou de complicações no processo gestacional;
Parágrafo único. A ANS fará publicar normas regulamentares para o disposto neste artigo, observados os termos de adaptação previstos no art. 35.
Desse modo, decidiu-se que a situação de "urgência" estaria caracterizada sempre que a necessidade do atendimento decorresse de acidentes (necessariamente pessoais, posto tratar-se de Planos de Saúde) ou complicações no processo gestacional, hipótese infelizmente ampla demais, capaz açambarcar quase a totalidade das ocorrências possíveis em uma mulher grávida. A falha do dispositivo – talvez capaz de promover uma variação hermenêutica substancial - está na utilização da partícula "no" em referência a lapso prazal, quando o ideal seria a partícula "do", que ensejaria a indicação da origem da complicação (processo gestacional) como elemento caracterizador do fato jurídico. A interpretação exegética deve, portanto, ser temperada por uma hermenêutica sistêmica, capaz de rejeitar a hipótese de cobertura irrestrita e incondicionada (e, portanto, contrária a própria idéia de Contrato) à mulher enquanto gestante.
Por outro lado, estabeleceu-se que situação de "emergência" é toda aquela que implica em risco imediato de vida ou em risco de lesões irreparáveis para o paciente. Não bastaria implicar em risco de vida, deveria ser contíguo. Não seria suficiente a lesão, haveria de ser terminante.
Por fim, a vigência da norma permitiu uma segura interpretação construtiva, calcada na semântica, no sentido de que "urgência" denota aquilo que deve ser feito com ligeireza, sob pena de inocuidade; e que "emergência" diz respeito a imprevisão, àquilo cujos efeitos podem se tornar indomáveis no tempo.
Destarte, apesar das falhas de positivação, delimitou-se o suporte fático de tal modo que a incidência da hipótese normativa passou a ocorrer de maneira menos turbulenta e variada. Atingiu-se o alvo pretendido.
Neste sentido, Maury Ângelo Bottesini e Mauro Conti Machado, em Lei dos Planos e Seguros de Saúde – Comentada Artigo Por Artigo:
Em boa hora o legislador emitiu os conceitos de urgência e emergência, em linguagem adequada para a compreensão dos leigos, que quase sempre ficam nas mãos dos médicos e paramédicos sem entender por que é que alguns casos são urgentes, outros não, e por que é que se está diante de uma emergência, ou não.1
As referências críticas e elogiosas ao dispositivo, entretanto, parecem ter surtido efeito inverso ao esperado. Ao contrário de todas as expectativas de aprimoramento normativo para o Sistema de Saúde Suplementar Brasileiro, motivador de carradas de Demandas perante os órgãos do Judiciário, eis que, em 15/5/09, publicou-se, com vigência imediata, a lei 11.935 (clique aqui), que inseriu um infeliz inciso III no citado art. 35-C da lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde).
Doravante, presumisse também obrigatória a cobertura do atendimento nos casos de planejamento familiar. Ou seja, além das acertadas obrigatoriedades de cobertura para os casos de "urgência" e "emergência", caracterizados no próprio texto legal, incluiu-se ao rol a imprecisa e ilógica expressão "planejamento familiar".
Eis o novo texto do art. 35-C (com destaque da inovação):
Art. 35-C. É obrigatória a cobertura do atendimento nos casos:
I - de emergência, como tal definidos os que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaração do médico assistente;
II - de urgência, assim entendidos os resultantes de acidentes pessoais ou de complicações no processo gestacional;
III - de planejamento familiar.
Parágrafo único. A ANS fará publicar normas regulamentares para o disposto neste artigo, observados os termos de adaptação previstos no art. 35.
Para a análise dos efeitos da mudança, esclareça-se que Planejamento Familiar é "o conjunto de ações que têm como finalidade contribuir para a saúde da mulher e da criança e que permitem às mulheres e aos homens escolher quando querem ter um filho, o número de filhos que querem ter e o espaçamento entre o nascimento dos filhos"2.
A simples leitura casual do artigo, associada a apreensão do conceito de "planejamento familiar", já nos faz alguma incoerência na alteração promovida. Há algo errado nos fundamentos e, conseqüentemente, na topologia. Aplicar aos casos de "planejamento familiar" as mesmas regras (ou inserir a hipótese no mesmo artigo) atinentes aos casos de urgência e emergência é invalidar a lógica do dispositivo, voltado para a regulamentação de situações limites, nas quais os valores sopesados (vida x obrigações contratuais) demonstram tamanha disparidade que exigem um ordenamento decisivo, induvidoso.
Trata-se de uma ocorrência na qual, infelizmente, a aparência não nos engana. Vejamos.
É moral e positivamente inegável o direito dos cidadãos ao "Planejamento Familiar". A Conferência Internacional da ONU sobre População e Desenvolvimento - CIPD, realizada no Cairo em 1994, conferiu papel primordial à saúde, aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos. A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece, no título VII da Ordem Social, em seu Capítulo VII, Art. 226º, § 7º, que é dever do Estado "propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício deste direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas".
Por seu turno, a vedação estabelecida para as Operadoras (instituições privadas) é plenamente compreensível, ainda que implique em majoração significativa das suas despesas. Eis que o dever de orientar e não obstar, além de formalmente constitucionais, são decorrências racionais dos deveres de fomento e preservação da dignidade da pessoa humana.
O acerto do constituinte, entretanto, esvai-se diante do descompasso promovido pelo legislador ordinário, pois, se por um lado a constituição demonstra sabedoria daqueles em definir as espécies de obrigações positivas e negativas, por outro, o legislador agora tomou tudo por cambulhada, numa imprecisa referência ao gênero "Planejamento Familiar", cujo conteúdo ultrapassa, em muito, os limites de possibilidade que podem oferecer as relações jurídicas.
Planejamento Familiar, numa devida e contemporânea perspectiva multicultural, é projeto político programático, referencial moral digno de uma atuação generalizada da Administração Pública. Trata-se de algo tão grandioso que sequer seria realizável com uma lei integralmente voltada para isto, pois exige iniciativa efetiva da função executiva do Estado (orquestrada com todos os entes federativos, conforme a atribuição de competências estabelecida na própria Carta Magna). Inviável, porquanto, estabelecê-la à base de inciso, tanto mais quando inserto em dispositivos normativos referentes a causas e efeitos que lhe são completamente estranhos.
Nestes termos, considerando-se a situação brasileira de envelhecimento populacional, não haveríamos de criticar a inserção de certos elementos de Planejamento Familiar no corpo da lei 9.656/98. Seriam bem-vindos deveres jurídicos legais de informação ou fornecimento de instrumentos para contracepção, por exemplo.
Inviável, todavia, estabelecer a obrigatoriedade de cobertura, por parte das Operadoras de Planos de Saúde, para procedimentos caríssimos de fertilização, pois, ao contrário dos primeiros exemplos, este definitivamente não é interesse público, sujeito a normatização cogente.
O caráter nada descritivo do inciso acabou por delegar a Resolução CONSU 192, editada dias após a alteração legislativa (em 27/5/09), a tarefa de estabelecer em que consistiria o termo "Planejamento Familiar" ali consignado: excluiu-se do seu conteúdo a inseminação artificial e o fornecimento de medicamentos de uso domiciliar, para fins de obrigatoriedade de cobertura3.
Entretanto, se por um lado a estratégia normativa serviu para viabilizar a continuidade do serviço e o Equilíbrio Econômico-Financeiro dos Contratos, por outro, persiste a infelicidade da incongruência da norma genérica que, topologicamente mal colocada, sujeita-se a condicionantes normativas completamente estranhas a natureza do direito que pretende resguardar. Evidente o descompasso de inseri-la num dispositivo axiologicamente condicionado a premissas de urgência e emergência.
Ad hoc, então, o inciso já nasce pré-morto, pois carece de justificação valorativa, precisão e adequação; esta última, consubstanciada na anedota de ser este o único inciso cujo valor protegido não denota necessariamente ligeireza em sua defesa (ex.: projeto parental), mas que, a contrário senso, é o único consignado incondicionalmente. Assim, cria-se a contradição: para o risco iminente, tutela imediata e condicionada; para o risco mediato, tutela imediata e incondicionada.
Não bastasse a incompatibilidade supra, tem-se que o legislador ensejou a confusa situação de duplicidade conceitual normativa. É que a ANS viu-se obrigada a estabelecer, administrativamente, parâmetros hermenêuticos para o dispositivo (o que resultou na Resolução CONSU 192) e, com isto, reduzir a abrangência do conceito de "Planejamento Familiar" constante na lei 9.263/96 (clique aqui). Ou seja, no sistema jurídico brasileiro passaram a viger dois conceitos de planejamento familiar, adequáveis a dois gêneros de situações jurídicas possíveis: aquelas que envolvem Planos de Saúde e todas as restantes.
Para o primeiro conceito, indevidamente extraído de Ato Normativo da ANS, excluem-se da noção de "Planejamento Familiar" a cobertura obrigatória para inseminação artificial e o fornecimento de medicamentos de uso domiciliar. Entretanto, o referido Ato (Resolução CONSU 193), como dito, contradiz a hierarquicamente superior lei federal 9.263/96, para a qual planejamento familiar é "o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal".
Neste tocante, vale lembrar que o respeito ao conceito legal de "Planejamento Familiar" já havia sido observado quando da ocasião da inserção de certos procedimentos contraceptivos no Rol da ANS de Procedimentos de Cobertura Obrigatória, em 2/4/08. Nestes termos, Karyna Rocha Mendes da Silveira:
Os procedimentos contraceptivos como vasectomia, laqueadura tubária e colocação do dispositivo intra-uterino (DIU) já constam do rol de procedimentos obrigatórios da ANS desde 2.4.082. A ANS não considerava a simples existência desses procedimentos como ações de Planejamento Familiar, pois de acordo com a lei 9.263/96 o conceito de planejamento familiar engloba ações integradas, inclusive referentes a educação em saúde e aconselhamento.4
A contradição, agora, promoverá um embate entre o Ato Normativo da ANS e a Lei Federal, o que, numa perspectiva estritamente técnica, exigiria a prevalência da segunda sobre o primeiro, em razão da hierarquia. Entretanto, ocasionaria uma verdadeira crise nos serviços de saúde suplementar no país, pois arruinaria o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados e oneraria absurdamente os do porvir.
Faria todo o sentido e atenderia perfeitamente ao comando constitucional a inserção de outro artigo, contendo o restritivo texto do ato normativo, na lei 9.656/98.
Mas é completamente incoerente a simples menção ao tema "planejamento familiar", como inciso do art. 35-C. Pois a assistência em planejamento familiar inclui, em princípio (e conforme a lei federal), não apenas o acesso à informação e a todos os métodos e técnicas de anticoncepção cientificamente aceitos, mas também os métodos de concepção, o que certamente não deveria ser objeto da lei 9.656/98, seja pela dispendiosidade dos procedimentos, seja pela completa ausência de risco que motive a cobertura obrigatória, tal como estabelecida para as hipóteses de "urgência" e "emergência".
Duas, portanto, as soluções para o enfrentamento jurídico da distorção legislativa:
(1) adota-se o previsto na Resolução CONSU 193, em atenção ao bom senso e em descaso às regras da hermenêutica; ou
(2) decreta-se a nulidade do artigo limitador do conceito de planejamento familiar, contido no Ato Normativo, em atenção ao direito e em descaso ao bom-senso.
O que certamente promoverá uma crise sem igual no setor, mas já conta com análises favoráveis, como a constante no artigo da lavra de Karyna Rocha Mendes da Silveira:
Como a lei diz apenas ser obrigatória a cobertura do atendimento deplanejamento familiar, não especificando tipos de serviço que serão cobertos,ainda é polêmica e não está definida a possibilidade do consumidor pleitear e ganhar na justiça acesso a esses tratamentos.
(…)
Com base na lei, entendemos que os planos de saúde devem cobrir também a reprodução assistida (inseminação intrauterina e fecundação in vitro), pois são procedimentos referentes ao planejamento familiar5.
Considerando-se a segunda hipótese, outras duas situações hão de serem enfrentadas pelo pensamento jurídico:
(1) Como ficarão os contratos celebrados antes da alteração do art. 35-C da Lei dos Planos de Saúde?; e
(2) Como serão os contratos celebrados após a dita alteração?
No mérito das duas soluções, necessariamente, dois caminhos possíveis:
(1) interpreta-se sistematicamente o conteúdo de "planejamento familiar" inscrito no inciso, para adequá-lo à lógica geral da Lei dos Planos de Saúde e a lógica particular doart. 35-C, voltado enfaticamente para a regulação das situações de emergência/urgência; e isto praticamente esvaziaria as possibilidades de aplicação da norma (pois seriam raríssimos os casos de planejamento familiar que implicassem em alto e imediato risco), mas viabilizaria a continuidade dos serviços de saúde suplementar no Brasil; ou
(2) a tentativa de aplicação exegética da norma emanada do novel inciso III implicará numa enxurrada de ações judiciais voltadas para a resolução ou revisão dos contratos por onerosidade excessiva (arts. 317, 422 e 478 do CC - clique aqui).
Quanto a segunda hipótese, alguns comentários. A hipossuficiência do utente de serviços médico-hospitalares suplementares ao público não afasta o imperativo de equilíbrio financeiro em qualquer relação contratual. Assim, muito embora o art. 54 do CDC (lei 8.078/90 - clique aqui) refira-se exclusivamente às nulidades protetivas do consumidor, aplicável subsidiariamente os arts. 317, 422 e 468 do CC, à luz das construções doutrinárias relativas ao que no Brasil se convencionou chamar de "Teoria da Imprevisão", caracterizada pela possibilidade de resolução ou revisão de contratos com base na superveniência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, capazes de comprometer o equilíbrio entre as prestações, tal como originalmente estabelecido entre os contratantes.
A escolha pela via revisional ou resolutória emergirá do enfrentamento casuístico, pois ambos os institutos, alimentados pela dominante hermenêutica constitucional que se faz do CC de 2002, mostram-se, conjuntamente, capazes de solucionar, com base nos Princípios da Operabilidade e da Conservação dos Contratos, praticamente todos os desequilíbrios econômico-financeiros das avenças bilaterais onerosas. É assim que se encontram, por vias transversas, os discursos:
Nos dizeres do Prof. Gustavo Tepedino,
Os arts. 317 e 422 são, pois, normas que dão apoio à criação de outras hipóteses de revisão do contrato, ampliando-se assim o alcance do art. 478 quando comparado ao alcance que se lhe seria dado conforme uma interpretação meramente literal.6
Nas palavras de Ruy Rosado de Aguiar Júnior:
O fato superveniente determinante da desproporção manifesta da prestação é causa também de resolução da relação quando foi insuportável para a parte prejudicada pela modificação das circunstâncias, seja do credor ou do devedor.7
Os Planos de Saúde, portanto, embora caracterizados pela aleatoriedade, inserem-se num contexto normativo favorável à sua sujeição à revisibilidade e resolutividade, tal como sói ocorrer em todas as demais espécies de contratos, adaptadas as circunstâncias à casuística, balizada por uma jurisprudência que certamente não olvidará os apelos teleológicos de efetividade e justiça por um apego pouco nada pragmático a uma segurança que, talvez, inviabilize o próprio serviço.
Da lei 11.935, então, espera-se apenas a iniciativa das Operadoras de Planos de Saúde para nulificar a inconveniente e ilógica inserção. Até lá, a lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde), que deveria ensejar estabilização das relações jurídicas que se propõe a regular, promoverá, no particular caso do art. 35-C, celeuma, turbulência e, pior: onerosidade absurda das prestações periódicas (mensalidades) das beneficiárias de Planos de Saúde em idade fértil, pois os custos com o serviço irão aumentar globalmente, ensejando readequação financeira das avenças.
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1 BOTTESINI, Maury Ângelo / MACHADO, Mauro Conti. 2ª Ed. Revisada e Ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. Pág. 315.
2 In Wikipédia (clique aqui)
3 A exclusão, embora equivocadamente operada por via administrative, é justificável: primeiro, porque, considerando-se a realidade brasileira, a promoção da contracepção é algo muito mais importante que a concepção. Depois, a implicação econômica: cada procedimento de fertilização in virto, por exemplo, custa R$ 27.000,00 (vinte e sete mil reais por tentativa), sendo improvável a satisfação na primeira tentativa. Considerando-se a inadmissão de prazo carencial para as hipóteses previstas no artigo, evidenciado o descabimento da obrigatoriedade em todas as relações contratuais entre Operadoras de Planos de Saúde e Beneficiárias que precisem de procedimentos desta natureza para a realização dos seus intentos.
4 Em Planos de Saúde: ampliada cobertura obrigatória de planejamento familiar (clique aqui).
5 Em Planos de Saúde: ampliada cobertura obrigatória de planejamento familiar.
6 TEPEDINO, Gustavo. Código Civil Interpretado de Acordo Com a Constituição da Repíblica – Vol. II. Editora Renovar, 2006. Pág. 131.
7 Idem.
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*Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados
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