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Recuperação de empresas: voando pelo imaginário

Dentre os temas atualmente em debate no Brasil, destaca-se a revogação da atual de Lei de Falências, em vias de substituição por outra que, de tão moderna, induzirá à redução do “spread bancário”, possibilitando a recuperação de empresas em estado de crise, tudo como anunciado aos quatro ventos.

16/11/2004


Recuperação de empresas: voando pelo imaginário


Much ado about nothing

(Muito barulho por nada)

Shakespeare


Manoel Justino Bezerra Filho*

Luiz Augusto de Souza Queiroz Ferraz**

Dentre os temas atualmente em debate no Brasil, destaca-se a revogação da atual de Lei de Falências, em vias de substituição por outra que, de tão moderna, induzirá à redução do “spread bancário”, possibilitando a recuperação de empresas em estado de crise, tudo como anunciado aos quatro ventos.

Realmente, aguarda-se que seja votado pela Câmara dos Deputados o Projeto Consolidado no Senado da nova legislação, pelo qual os menos avisados passaram a acreditar piamente no que vem sendo subliminarmente divulgado, no sentido de que tudo melhorará e a empresa mal sucedida, terá todas as possibilidades de uma recuperação real, com benefícios sociais de toda ordem, que este novo horizonte aponta.

No entanto, ledo engano!

No campo do imaginário e desde logo ressalvando que qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, atente-se para o seguinte cenário: uma empresa de transporte aéreo de renome nacional e internacional, empregando milhares de funcionários, voando para todos os pontos do planeta, encontra-se em sérias dificuldades financeiras, pois grande parcela de suas dívidas correntes advém de contratos de “leasing” ou assemelhados, tendo sempre como garantia a sua frota ou quando não as partes mais valiosas de suas aeronaves, especialmente as turbinas que as fazem voar e, além disso seu passivo fiscal é elevadíssimo, tudo a impedindo de desenvolver corretamente suas atividades. Típico estado de crise.

Quais as possibilidades reais desta empresa, utilizando-se com total boa fé e competência a nova legislação de Recuperação de Empresas, em vias de ser aprovada e segundo se lê na imprensa, sem modificações de relevo, face ao poder de pressão do governo em exercício, novamente reerguer-se, salvando-se da hecatombe falimentar, com as conseqüências de todos conhecidas? Respondemos, com tristeza e impotência para alterar o “fait acompli”: nenhuma possibilidade!

Vamos à realidade da Lei Projetada. A primeira alteração é que o Código Brasileiro da Aeronáutica (Lei 7.565, DE 19/12/86), em seu art. 187, excluía da atual Lei de Falências a possibilidade de concordata, para empresas que “tinham por objeto a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infra estrutura aeronáutica”, mas agora, o art.199 da nova legislação, permite que estas empresas também possam socorrer-se da recuperação, quando em estado de crise, o que seria ótimo e desejável.

Dentro desta ótica, há que se analisar sistematicamente a nova legislação, para que se compreenda o engodo, pois embora regulando a recuperação judicial ou extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, não cumpre a sua norma fundamental do art. 49: “Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”.

Mas esta norma, efetivamente correta e que de forma simples, densa e acabada representa a espinha dorsal da “mens legis” da efetiva recuperação das empresas, no sentido lato do termo, colocando todos os credores existentes na data do pedido como a ela sujeitos, criaram-se odiosas exceções, o que em bom português significa: demoliram esta regra básica.

Vejamos a seguir, sempre tendo em mente a situação hipotética acima imaginada para efeito de argumentação: empresa aérea, credores por contratos de “leasing” ou assemelhados, relativamente as aeronaves ou digamos... suas turbinas, além de passivo fiscal elevado.

Ora, o § 3º, do art. 49, prevê que se tratando “de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens imóveis ou móveis, de arrendador mercantil... ou de contrato com reserva de domínio, o seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva.”

O que esta exceção representa, considerando como é sabido que modernamente não mais se imobilizam contabilmente as aeronaves quando objeto de contrato de “leasing”: simplesmente que este credor não estando sujeito aos efeitos da recuperação, pela inexplicável exceção, simplesmente retomará a posse física dos bens contratualmente arrendados e impedirá a infeliz empresa aérea de voar e, portanto, de faturar, repita-se: impedindo-a legalmente de exercer sua atividade fim. É isto mesmo! E assim sendo, recuperar-se como, desprovida das suas aeronaves? Não se iludam, este dispositivo está na nova legislação, já aprovada pelo Senado com o beneplácito do governo instituído.

Argumentarão os defensores do Projeto, que nem tudo está perdido, porque § 4º, do art. 6º, prevê um prazo de suspensão dentro do qual os credores referidos no § 3º, do art. 49, estarão imobilizados: “Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput em hipótese excederá o prazo improrrogável de cento e oitenta dias contados do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.

Isto quer dizer, deferido o processamento da recuperação judicial, a empresa terá que convencer estes credores no exíguo prazo de cento e oitenta dias, a transacionarem seus créditos de tal forma que não a impeçam de prosseguir suas atividades, mesmo não estando sujeitos à recuperação judicial. Quem acredita nesta possibilidade, certamente tem um pedação da Lua guardado em casa...

Anote-se que estes credores por não estarem sujeitos a recuperação também não têm direito de voto na Assembléia Geral de Credores, que deveria decidir sobre os destinos da empresa, segundo expressa determinação do § 1º, do art. 39. Repita-se como recuperar-se esta empresa, se seus principais credores sequer podem votar sobre o seu destino? Ficamos no imaginário para sonhar se seria possível uma transação generalizada, que solucionasse esta questão: submeter a recuperação, quem a ela legalmente não está obrigado...

Ainda, para espancar quaisquer dúvidas destas conclusões legais, leia-se o § único, do art. 199, da Lei Projetada: “Na recuperação judicial e na falência das sociedades de que trata o caput (empresas de transporte aéreo) em nenhuma hipótese ficará suspenso o exercício de direitos derivados de contratos de arrendamento mercantil de aeronave ou de suas partes”.

Indaga-se: qual a solução para a recuperação da empresa? Só mesmo os recursos da “viúva”, que sempre em situações como esta aparecem sob as mais variadas escusas... Não seria mais lógico e racional, em se tratando de recuperação de empresas, que melhor se legislasse, isto é, não se criassem exceções espúrias ao art. 49, mas que se submetendo todos a recuperação fossem os débitos sendo solvidos, resguardados os respectivos privilégios? Tudo isto só para “baixar” o “spread”?

Isto ainda não é tudo. Imagine-se que apesar de todos estes óbices, os credores não sujeitos a recuperação judicial, imbuídos de verdadeiro espírito público, altruístas por excelência, mesmo não votando na Assembléia Geral de Credores, mas portando-se como verdadeiros arcanjos, resolvessem transacionar os respectivos créditos, mantidas as garantias existentes, possibilitando a recuperação da empresa, tendo aprovado consequentemente o plano apresentado com este objetivo, abdicando enfim de todos os seus direitos.

Estaria salva a empresa? Ainda não! Por quê?

Quase nos esquecíamos do passivo fiscal, este não imaginário. Conhecem os que nos honram com a leitura, o disposto art. 57, da Lei Projetada?: “Após a juntada aos autos do plano aprovado pela Assembléia Geral ou decorrido o prazo previsto no art. 55, sem objeção dos credores, o devedor apresentará em cinco dias, certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206, da Lei 5.172, de 25/10/1966 (Código Tributário Nacional”), mas como falar-se de certidão negativa de débitos tributários, se o passivo fiscal é enorme!

Para quem conhece o Brasil, não seria exigir demais? Certidão negativa de tributos? Mas pelo que se sabe, depois do Calvário, só resta a Crucificação.

Crucificação prevista: leia-se o § único do artigo em comento: “Decorrido o prazo sem a apresentação das certidões, o juiz decretará a falência”. Estará ou não crucificada a empresa?

A Lei Projetada contém dentro de si, o vírus do aniquilamento de empresa como a retratada, sem qualquer possibilidade de recuperação: exigir-se além de tudo, certidão negativa de tributos... é melhor sequer comentar-se este absurdo.

E o último capítulo: mesmo decretada a falência como já se disse, “em nenhuma hipótese ficará suspenso o exercício de direitos derivados de contratos de arrendamento mercantil de aeronaves e suas partes”, podendo-se infantilmente indagar-se: vai-se arrecadar o que, os “ossos descarnados”?

Consequentemente se a empresa retratada, felizmente no imaginário, onde qualquer semelhança com a realidade é mesmo mera coincidência, de alguma forma tivesse solvido seu passivo derivado de contratos de arrendamento, mas segundo previsto legalmente, à custa de todos os demais credores, inclusive dos privilegiados trabalhistas, tão enfeitados na Lei Projetada, a conseqüência para o guloso fisco, seria sem dúvida, forrar-se apenas dos ossos.

Este é o Projeto Consolidado pelo Senado, em vias de aprovação pela Câmara dos Deputados, mas sem qualquer sinal de alteração, que evitasse o perecimento da imaginada empresa, a não ser com as dádivas da “viúva”. Será isto o que queremos, ou o que merecemos a guisa de redução do “spread”? Aliás, o até aqui exposto, em linhas gerais também se aplica as demais empresas.

Outro aspecto ainda merece exame. O Judiciário – neste momento, especificamente, mas não somente – Paulista, recém saído de uma greve de mais de 90 dias, materialmente desaparelhado, com funcionários desestimulados, teria condições de conduzir a recuperação a bom termo? Esta pergunta pode ser feita, mas não deve ser respondida, pois ante o já exposto, mesmo um Judiciário perfeito, composto por arcanjos da operosidade e da eficiência, não teria condições de levar qualquer recuperação a bom termo, simplesmente porque o projeto não traz qualquer possibilidade lógica de se chegar a este resultado. E se, como afirmado, “a viúva pagará a conta”, certamente “o Judiciário pagará o pato”!

No condenável – e sempre temido, por obscurantista e tendente à ditadura - processo de hipertrofia do Executivo, já dominado o Legislativo por liberação de verbas ou por abuso de MPs. não importa, virá o projeto – se aprovado - colocar mais um pouco de lenha na fogueira na qual se pretende queimar a resistência que acaso possa ainda vir do Judiciário, ante a hipertrofia assinalada. Aliás, sintomaticamente, o novo texto praticamente anula a necessária fiscalização que a atual lei atribui ao Ministério Público, abrindo ainda mais a porta para a fraude.

Ainda um último ponto: não devemos nos esquecer que o estudo do direito comparado é indispensável para que se aproveitem as experiências de outras nações, lembrando sempre porém, que não se pode fazer transplante de sistemas jurídicos. E, mesmo no estudo do direito comparado, melhor é que voltemos nossos olhos, preferencialmente, para os países com o nosso mesmo sistema do “civil law”, observando sempre que o “common law” adapta-se melhor a outros sistemas, que não o nosso. Melhor examinar os exemplos da França, Portugal e, principalmente, o mais recente, o da Espanha, cuja “Ley para la Reforma Concursal”, em vigor a partir de 1.9.04, no seu artigo 56, traz um exemplo que se seguido pelo legislador brasileiro, seria um grande passo para uma efetiva possibilidade de recuperação (da empresa e não do crédito bancário) e que diz: “Los acreedores com garantía real sobre bienes del concursado afectos a su atividad profesional o empresarial o a una unidad productiva de su titularidad no podrán iniciar la ejecución o realización forzosa de la garantía hasta que se apruebe un convenio cuyo contenido no afecte al ejercicio de este derecho o transcurra un año desde la declaración de concurso sin que se ubiera producido la apertura de la liquidación”. Em outras palavras, para possibilitar a recuperação da empresa, com a preservação de seu valor, todos contribuem, especialmente aqueles que têm os créditos mais garantidos. Evidentemente, como se vê, há sacrifício generalizado e isonomicamente suportados, ao contrário do que está ocorrendo nesta nossa terra, na qual a mão invisível do mercado ( os estabelecimentos bancários) é poupada de qualquer tipo de prejuízo!

No mais o futuro dirá, pois até agora, apenas muito barulho, por nada!
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* Juiz do 1º T. Alçada Civil – SP – e Professor da Universidade Mackenzie e da Escola Paulista de Magistrados

** A
dvogado do escritório Souza Queiroz Ferraz e Pícolo Advogados Associados









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