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Aprendendo a ser juiz

Todo mundo diz que cabeça de juiz é um problema, pois ninguém sabe ao certo qual será o resultado de um julgamento. Alguns dizem até que é como “bumbum de bebê”. Pois é, muitas vezes um juiz concede uma liminar, depois um tribunal cassa aquela liminar, depois outro tribunal superior mantém a liminar... Uma loucura. Quem está de fora deve ficar pensando que a lógica é assim: um juiz de primeiro grau sabe um pouco, um desembargador de tribunal estadual sabe um pouco mais e, por fim, os ministros dos tribunais superiores sabem muito mais. Ou então fica parecendo que cada um usa uma lei diferente... Ou então acontece o “privilégio do poder”, ou seja, quem tem mais pode mais.

19/3/2009


Aprendendo a ser juiz

Brevíssimo curso prático para leigos ou - mais brevíssimas ainda – lições de hermenêutica

Gerivaldo Alves Neiva*

Todo mundo diz que cabeça de juiz é um problema, pois ninguém sabe ao certo qual será o resultado de um julgamento. Alguns dizem até que é como "bumbum de bebê". Pois é, muitas vezes um juiz concede uma liminar, depois um tribunal cassa aquela liminar, depois outro tribunal superior mantém a liminar... Uma loucura. Quem está de fora deve ficar pensando que a lógica é assim: um juiz de primeiro grau sabe um pouco, um desembargador de tribunal estadual sabe um pouco mais e, por fim, os ministros dos tribunais superiores sabem muito mais. Ou então fica parecendo que cada um usa uma lei diferente... Ou então acontece o "privilégio do poder" ou seja, quem tem mais pode mais.

Na verdade, não sendo caso do "privilégio do poder", o que ocorre mesmo é a interpretação e o método que cada juiz utiliza para resolver os casos que lhe são apresentados. Tem juiz, por exemplo, que já carrega um "pendrive" com sentenças e despachos padronizados para qualquer situação. Tem juiz que sabe o número de todas as leis do país e para cada caso ele sabe qual é o artigo a ser aplicado, independente dos detalhes e particularidades de cada caso. Tem juiz que carrega um cd repleto de decisões dos tribunais e para julgar basta se reportar a determinado "entendimento jurisprudencial." Por fim, tem juízes que procuram, antes de tudo, inclusive da lei, entender o problema e só depois buscar uma solução justa e legítima – além de legal, é claro – para o problema. É como se o fato social antecedesse a lei, ou seja, primeiro se examina o fato para localizar o conflito e só depois se busca a solução. Primeiro a vida real, depois a lei. Ou então aquela velha história de quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha, a lei ou o direito?

Evidente que um fato social pode ser visto de várias maneiras, dependendo do ângulo da visão do observador. Em outras palavras, depende da formação política e ideológica e da condição social do observador. Em ciências sociais, o observador também faz parte do objeto da observação. Ora, como o juiz também é gente, assim também funciona com ele, ou seja, a interpretação que o juiz vai aplicar a cada caso depende da sua forma de entender o fato social, o que pensa sobre o sentido da lei e, finalmente, para que serve o Direito. Ninguém está livre disso. Por exemplo, o juiz que diz ser "escravo da lei", na verdade, está assumindo uma posição cômoda e preguiçosa, pois não quer entender sequer o conflito que lhe é apresentado para solução e pensa que é o bastante aplicar a lei, doa a quem doer. (será que dói para todos mesmo?). Da mesma forma, é preguiçoso e comodista o juiz que decide somente com base em decisões de outros tribunais, pois se submete ao entendimento alheio sem tentar construir o seu próprio entendimento.

Um outro problema é que os conflitos não são mais os mesmos e muitas vezes o conhecimento da ciência jurídica, sozinho, não resolve mais e precisamos da ajuda de especialistas de outras áreas do conhecimento, ou seja, precisa de interdisciplina. Bom, como o Juiz sempre pensa que sabe de tudo, as soluções dos conflitos nem sempre estão sendo justas, mas apenas de "acordo com a lei". Sim, uma decisão judicial pode ser legal – fundamentada na lei -, mas não ser justa. A aplicação de uma lei injusta, por exemplo, vai resultar em decisões injustas, ou não? E uma lei pode ser injusta? Depende do compromisso de quem elaborou e aprovou. Uma lei é um ato humano e, por assim ser, pode ser boa, má, justa, injusta... humana, sobretudo.

Pois bem, tem muita gente boa que não sabe, mas tem uma lei no Brasil que possibilita ao Juiz decidir um caso com base apenas nos costumes, na analogia e nos princípios gerais do Direito, sendo a lei omissa sobre aquele caso. É a Lei de Introdução ao Código Civil (clique aqui), que na verdade é o Decreto-Lei nº 4.657/42 (clique aqui). Esta lei também determina que o Juiz, na aplicação da lei, deve atender "aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". Bacana, né? Por falar em lei boa, na nova Lei de Organização Judiciária da Bahia (Lei nº 10.845/07) tem um artigo que diz o seguinte:

"Art. 6º - Os Juízes togados poderão, no exercício do controle difuso de constitucionalidade, negar aplicação às leis que entenderem manifestamente inconstitucionais."

Isto significa que se o Juiz entender que uma lei, mesmo federal, é inconstitucional (em desacordo com a Constituição - clique aqui) ele pode deixar de aplicá-la no caso concreto. Mais bacana ainda, né?

Então, queria convidar a todos para ser juiz comigo na apreciação de alguns casos. É fácil. Não tenham medo. Vamos precisar apenas das duas leis que já me referi: a Lei de Introdução ao Código Civil e o artigo da Lei de Organização Judiciária da Bahia e de alguns princípios escritos na Constituição. Vamos lembrar que a primeira diz que o Juiz, na aplicação da lei, deve atender "aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum" e a segunda diz que o Juiz pode deixar de aplicar a lei ao caso concreto se entender que aquela lei esteja em desacordo com a Constituição. Por fim, vamos precisar também de alguns princípios constitucionais para fundamentar nossas decisões. Por exemplo: direito à vida, dignidade da pessoa humana, a cidadania, a igualdade de todos perante a lei, a livre manifestação do pensamento, a liberdade de expressão, a inviolabilidade de consciência e de crença, a função social da propriedade, a solidariedade como objetivo da República, a proteção à criança e adolescente etc. Sendo assim, precisamos ter em mente que leis e princípios são espécies de norma, mas é o princípio que institui e norteia a aplicação da lei. Portanto, a lei deve ser baseada no princípio, embora os dois sejam considerados como norma. Quem domina a teoria dos princípios, por conseguinte, está preparado para interpretar e aplicar as leis.

Procurei na imprensa alguns casos polêmicos ocorridos durante a semana para nosso exercício:

- STF decidirá se o Viagra poderá ser distribuído gratuitamente;

- Comercialização de biografia de Roberto Carlos continua proibida;

- Por fim, como não poderia deixar de ser: Juiz autoriza aborto em menina de nove anos, grávida de gêmeos, que foi estuprada pelo padrasto.

Nossa primeira tarefa, portanto, vai ser entender os problemas antes de pensar em qualquer lei. Depois, vamos ter em mente os fins sociais, as exigências do bem comum e os princípios constitucionais. Por fim, vamos pensar na solução justa para os conflitos.

Para o primeiro caso, portanto, precisamos perguntar, por exemplo, por que alguém precisa de Viagra? O que significa a impotência sexual para um homem? Uma vida sexual ativa traz felicidade e pode manter um casal junto e feliz? O Viagra possibilita esta realização? Ora, se o conhecimento do Juiz não permite responder a todas as perguntas, é preciso recorrer aos profissionais de outras áreas – medicina, biologia, psicologia, etc. -, ou seja, promover a interdisciplina. Neste caso, portanto, depois da ajuda de outros profissionais, podemos, então, perguntar se é dever do Estado resolver tal tipo de problema e se existe alguma relação com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da solidariedade. De outro lado, sendo a lei omissa, posso aplicar o costume ou analogia para resolver o problema, ou seja, é possível aplicar ao caso a mesma lei que obriga a distribuição gratuita de medicamento aos portadores de HIV? Com as respostas, certamente virá também a solução do conflito.

Com relação ao caso de Roberto Carlos, precisamos perguntar, por exemplo, por que alguém publicaria informações sobre a vida de um artista? Qual o seu interesse: ganhar dinheiro ou levar informação para o público em geral e admiradores daquele artista? Roberto Carlos, sendo uma pessoa pública, pode impedir que se divulgue informações sobre sua vida? Roberto Carlos, enquanto artista famoso, seria o que é sem a divulgação de suas músicas e o consumo de seus discos por seus fãs? Então, qual o princípio a ser utilizado: a liberdade de expressão e a livre manifestação do pensamento ou a intimidade da pessoa pública? Este, realmente, não é um caso fácil, pois envolve dois princípios fundamentais: intimidade e liberdade de expressão. Decida você...

Com relação ao problema da menina que foi estuprada e quer fazer o aborto, precisamos pensar, inicialmente, por que o padrasto cometeu o ato? Qual a situação econômica dessa família? A mãe sabia do caso? Houve ameaça por parte do padrasto? Qual o risco dessa gravidez para a menina? Há possibilidade de aborto natural? A continuidade da gravidez deixará seqüelas na menina? Qual o melhor interesse social e psicológico para uma menina de nove anos grávida? Bom, se não se tem as respostas, procura-se um especialista da área – médico, pediatra, psicólogo etc. Feito isso, vamos aos princípios: o primeiro a ser utilizado é o princípio à vida. Assim, qual vida devo preservar: os fetos ou a criança grávida? Com as respostas dos especialistas, continuamos a perguntar: então, qual é a melhor solução em face do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida: autorizar o aborto ou permitir essa gravidez? Também não é caso fácil, mas você já está preparado para decidir...

Viram como é fácil ser Juiz? Claro que eu sei como iria decidir esses casos, mas sei também que só decidiria com justiça e equilíbrio se tivesse auxílio de outros profissionais que me permitissem uma melhor compreensão do problema. Como vimos, não dá mais para decidir sozinho, trancado em um gabinete, distante do mundo real e das pessoas. Nas faculdades de Direito ainda se ensina que "o que não está no processo não está no mundo" para dizer que o Juiz deve se limitar ao que está nos autos. Ora, como vimos nos exercícios acima, o que acontece hoje é exatamente o contrário: o mundo está no processo!

Bom, nos casos que julgamos juntos, quase sempre estava em jogo um interesse individual em conflito com regras e princípios. Pois bem, e quando o conflito for social? Agora a cobra vai fumar! Neste caso, precisamos entender o conflito como parte de uma realidade social de um país desigual e terrível concentração de renda. Para tanto, precisamos buscar explicações não mais para necessidades individuais, mas para um grupo de pessoas, ou seja, para uma classe social. Depois disso, agora que já entendemos o direito como um saber essencialmente prático, no caso de um problema social, a decisão deve sempre obedecer aos princípios constitucionais e a concretização das promessas da modernidade, ou seja, a realização das garantias e direitos fundamentais previstos na Constituição, cujos princípios são dotados de eficácia e efetividade. Para concluir, nossa interpretação precisa, também, ser criadora do direito e, além disso, que possibilite a utilização do direito como instrumento de mudança social.

Então, quando você agora se deparar com um conflito, seja individual ou coletivo, ou quando alguém lhe pedir uma opinião, primeiro procure entender o problema, suas causas e conseqüências, depois pense nos princípios que devem ser aplicados ao caso. Deixe de lado, definitivamente, o "achismo". Se não dominar a matéria, peça ajuda a quem entende mais do que você e então decida com justiça. Nesta hora, muitos estarão se perguntando: e a lei que devo aplicar em cada caso para que minha decisão também seja legal? Ora, para quem já domina a teoria dos princípios, lei é café pequeno! Não é possível interpretar uma lei sem levar em conta o princípio que a instituiu e, portanto, só deve ser aplicada se obedecer aos princípios constitucionais. Sim, se a lei for inconstitucional, ou seja, se estiver em desacordo com a Constituição, não somos obrigados a aplicá-la para o caso concreto. Isto se chama controle difuso de constitucionalidade, que estudaremos outro dia.

No mais, vimos que é fundamental compreender antes de interpretar. Neste caso, não é a interpretação que possibilita a compreensão, mas o contrário: só interpretamos o que compreendemos. Fazendo assim, estamos evitando, exatamente, um pré-juízo sobre os fatos e, principalmente, o pré-conceito. Não esquecer de levar em conta, finalmente, o nosso cenário: um país de forte desigualdade e exclusão social

Então, mãos à obra! Bom trabalho a todos!

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*Juiz de Direito da comarca de Conceição do Coité/BA








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