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O elemento subjetivo nas ações de improbidade administrativa: uma análise do entendimento do STJ

A Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), que regulamentou a previsão contida no art. 37, § 4º, da Constituição, reservou três seções para disciplinar os atos de improbidade administrativa. A Seção I trata dos atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito (art. 9º). Já a Seção II dispõe sobre os atos que causam prejuízo ao erário (art. 10). Por último, a Seção III contempla uma modalidade residual e mais ampla de atos considerados ímprobos, que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11).

5/3/2009


O elemento subjetivo nas ações de improbidade administrativa: uma análise do entendimento do STJ

Paulo Osternack Amaral*

1. Introdução

A Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa - clique aqui), que regulamentou a previsão contida no art. 37, § 4º, da Constituição, reservou três seções para disciplinar os atos de improbidade administrativa. A Seção I trata dos atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito (art. 9º). Já a Seção II dispõe sobre os atos que causam prejuízo ao erário (art. 10). Por último, a Seção III contempla uma modalidade residual e mais ampla de atos considerados ímprobos, que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11).

O exame dos requisitos essenciais para a configuração das modalidades de atos de improbidade desvenda a existência de controvérsia não só em relação à necessidade da identificação do elemento subjetivo (dolo ou culpa), mas também no que tange à sua correta identificação.

Tal dissenso deriva da redação do caput do art. 10 da LIA, que, ao contrário dos arts. 9º e 11, parece reconhecer expressamente a possibilidade da caracterização de ato improbidade administrativa tanto na modalidade culposa quanto dolosa.

O presente ensaio dedica-se a examinar a orientação doutrinária e jurisprudencial acerca da imprescindibilidade da demonstração do elemento subjetivo da conduta acusado para a caracterização de quaisquer das modalidades de atos considerados ímprobos pela lei.

2. A questão do elemento subjetivo nas ações de improbidade administrativa

Ainda não há consenso no STJ acerca da necessidade da comprovação de dolo ou culpa para a configuração dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11).

O exame detido dos acórdãos que enfrentaram o tema desvenda a existência de duas correntes bem definidas: uma, reputando indispensável a comprovação do elemento subjetivo para a caracterização das condutas típicas previstas nos arts. 9º e 11; outra, considerando despicienda a comprovação de dolo ou culpa para o aperfeiçoamento da hipótese do art. 11.

2.1. A necessidade de comprovação do elemento subjetivo

A Primeira Turma do STJ firmou entendimento no sentido de considerar absolutamente indispensável a existência de prova da consciência e da intenção do agente de promover conduta (comissiva ou omissiva) violadora do dever constitucional de moralidade, especificamente no que concerne aos arts. 9º e 11 da LIA.

É o que se extrai, por exemplo, da seguinte ementa:

"ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATAÇÃO IRREGULAR DE SERVIDOR PÚBLICO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/92. SUJEIÇÃO AO PRINCÍPIO DA TIPICIDADE. 1. Não viola o art. 535 do CPC (clique aqui), nem importa negativa de prestação jurisdicional, o acórdão que, mesmo sem ter examinado individualmente cada um dos argumentos trazidos pelo vencido, adota, entretanto, fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia posta. 2. Nem todo o ato irregular ou ilegal configura ato de improbidade, para os fins da Lei 8.429/92. A ilicitude que expõe o agente às sanções ali previstas está subordinada ao princípio da tipicidade: é apenas aquela especialmente qualificada pelo legislador. 3. As condutas típicas que configuram improbidade administrativa estão descritas nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/92, sendo que apenas para as do art. 10 a lei prevê a forma culposa. Considerando que, em atenção ao princípio da culpabilidade e ao da responsabilidade subjetiva, não se tolera responsabilização objetiva e nem, salvo quando houver lei expressa, a penalização por condutas meramente culposas, conclui-se que o silêncio da Lei tem o sentido eloqüente de desqualificar as condutas culposas nos tipos previstos nos arts. 9.º e 11. 4. Recurso especial a que se nega provimento".1

Essa orientação também se verifica em reiterados julgados da Segunda Turma do Superior Tribunal.2

Tal entendimento retrata a orientação já consolidada no âmbito da doutrina.

Confira-se a lição de Fábio Medina Osório:

"A responsabilidade subjetiva, no bojo do tipo proibitivo, é inerente à improbidade administrativa, sendo exigíveis o dolo ou a culpa grave, embora haja silêncio da LGIA sobre o assunto. Isto se dá, como já dissemos à exaustão, por força dos textos constitucionais que consagram responsabilidades subjetivas dos agentes públicos em geral, nas ações regressivas, e que contemplam o devido processo legal, a proporcionalidade, a legalidade e a interdição à arbitrariedade dos Poderes Públicos no desempenho de suas funções sancionatórias. Portanto, a improbidade administrativa envolve, modo necessário, a prática de condutas gravemente culposas ou dolosas, inadmitindo responsabilidade objetiva".3

Portanto, a despeito de haver divergência quanto à possibilidade de se conceber um ato de improbidade culposo (como se verá no item 2.3 adiante), prevalece o entendimento que considera indispensável a presença do elemento subjetivo para a configuração do ato de improbidade.

2.2. A divergência ainda existente no STJ

Ao contrário do entendimento consolidado no âmbito da Primeira Turma do STJ, a Segunda Turma ostenta, em alguns arestos, recente orientação que consagra a incidência da responsabilidade objetiva para a configuração da hipótese típica prevista no art. 11 da LIA.

Esse posicionamento baseia-se na premissa de que seria despicienda a comprovação de dolo ou culpa da conduta do agente, bastando a demonstração da inobservância do princípio da legalidade para a caracterização da improbidade administrativa.

Nesse sentido, confira-se o seguinte trecho do REsp 988.374/MG (clique aqui): "(...) 4. A conduta do recorrido, ao contratar e manter servidores sem concurso público na Administração, amolda-se ao caput do art. 11 da Lei nº 8.429/92, ainda que o serviço público tenha sido devidamente prestado, bem como não tenha havido má-fé na conduta do administrador”.4

Tal orientação, capitaneada pelo Ministro Castro Meira, encontra-se estampada em reiterados acórdãos da Segunda Turma.5

Todavia, essa orientação parece não ser pacífica nem mesmo no âmbito da Segunda Turma (integrada pelo Ministro Castro Meira).

A Ministra Eliana Calmon, revendo entendimento anterior no sentido da objetivação da responsabilidade por improbidade6, atualmente é enfática ao afirmar que "Após divergências, também firmou a Corte que é imprescindível, na avaliação do ato de improbidade, a prova do elemento subjetivo".7

Com isso, percebe-se a existência de divergência não só entre a Primeira e Segunda Turmas no que tange ao elemento subjetivo para a configuração da conduta ímproba tipificada no art. 11 da LIA, como também entre os próprios Ministros integrantes da Segunda Turma.

2.3. A correta compreensão da modalidade culposa expressa no art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa

Como visto, prevalece divergência jurisprudencial quanto à necessidade de aferição do elemento subjetivo da conduta do agente para fins de configuração de ato de improbidade administrativa, notadamente quanto à hipótese contemplada no art. 11 da LIA.

Não obstante, a mais relevante discussão jurídica, ao que nos parece, diz respeito à possibilidade de se conceber a prática de improbidade na modalidade culposa. Isso porque, reproduzindo parte do caput do art. 10 da LIA, o Superior Tribunal de Justiça parece reputar que a conduta ímproba seria passível de se aperfeiçoar mediante ato culposo que causasse lesão ao erário.

Em que pese a literalidade do caput do art. 10 da LIA induzir tal conclusão, a doutrina confere interpretação sistemática ao dispositivo para concluir que o elemento culpa (referida no art. 10) recai sobre o resultado danoso da conduta voluntária e consciente de transgressão do dever de probidade.8

Dito de outro modo, para a configuração do ato de improbidade por dano ao erário na modalidade culposa é necessária a presença de dolo do agente no que tange à transgressão do dever ético, devendo-se a aferição da mera culpa recair sobre o resultado danoso consumado.

3. Conclusão

Esta breve análise revela a existência de forte tendência jurisprudencial no sentido de se reconhecer a necessidade da comprovação do elemento subjetivo (dolo ou culpa) da conduta do agente como requisito inafastável à configuração do ato de improbidade. A despeito disso, constata-se a persistência de relevante dissonância interpretativa no que tange à necessidade (ou não) de aferição de dolo ou culpa para a configuração da conduta ímproba contida no art. 11 da LIA, o que desvenda a necessidade de uniformização da jurisprudência do Superior Tribunal a esse respeito.

No que tange à culpa referida no art. 10 da LIA (dano ao erário), reputa-se que a aferição desse elemento deve recair sobre o resultado danoso, exigindo-se a comprovação do dolo para a configuração do desrespeito ao dever de probidade.

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1 1ª Turma, REsp 751.634/MG, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 2/8/2007, p. 353. No mesmo sentido, confiram-se os seguintes acórdãos, também da 1ª Turma: REsp 799.511/SE, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 13/10/2008; REsp 727.131/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 23/04/2008; REsp 965.671/RS, Rel. Min. José Delgado, DJe de 23/4/2008; REsp 734.984/SP, Rel. Min. José Delgado, Rel. p/ Acórdão Min. Luiz Fux, DJe de 16/6/2008; REsp 758.639/PB, Rel. Min. José Delgado, DJ de 15/5/2006; REsp 940.629/DF, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe de 4/9/2008; REsp 939.142/RJ, Rel. Min. Rel. p/ Acórdão Min. Luiz Fux, DJe de 10/4/2008; REsp 604.151/RS, Rel. Min. José Delgado, Rel. p/ Acórdão Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 8/6/2006.

2 REsp 621.415/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 30/5/2006; REsp 269.683/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, Rel. p/ Acórdão Min. Paulo Medina, DJ de 3/11/2004; AgRg no REsp 479.812/SP, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 14/08/2007; REsp 842.428/ES, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 21/5/2007; REsp 658.415/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 3/8/2006; REsp 626.034/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 05/06/2006; REsp 534.575/PR, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 29/3/2004.

3 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa, São Paulo: RT, 2007, p. 291. No mesmo sentido: JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, p. 889 e ss.; PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2006, p. 60 e ss.; FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade Administrativa, 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 102 e ss.; SANTOS, Carlos Frederico Brito dos. Improbidade Administrativa, 2ª ed., Forense, 2007, p. 92; PORTO NETO, Benedicto Pereira e PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende. “Violação ao Dever de Licitar e a Improbidade Administrativa”. Improbidade Administrativa: questões polêmicas e atuais, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 96 e ss.; DINAMARCO, Pedro da Silva. “Requisitos para a Procedência das Ações por Improbidade Administrativa”. Improbidade Administrativa: questões polêmicas e atuais, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 332 e ss.; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 21ª ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 783; ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos, 2ª ed., São Paulo: RT, p. 117.

4 2ª Turma, REsp 988.374/MG, Rel. Min. Castro Meira, v.u., DJe 16/5/2008.

5 REsp 737.279/PR, DJe de 21/5/2008; REsp 988.374/MG, DJe de 16/5/2008; REsp 488.842/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Rel. p/ Acórdão Min. Castro Meira, DJe de 5/12/2008; REsp 728.341/SP, DJe de 18/03/2008; REsp 880.662/MG, DJ de 1/3/2007; REsp 826.678/GO, DJ de 23/10/2006; REsp 650.674/MG, DJ de 01/08/2006; REsp 714.935/PR, DJ de 08/05/2006; REsp 717.375/PR, DJ de 8/5/2006.

6 2ª Turma, REsp 708.170/MG, DJ de 19/12/2005; 2ª Turma, REsp 617.851/MG, DJ de 19/12/2005; 2ª Turma, REsp 287.728/SP, DJ de 29/11/2004.

7 2ª Turma, REsp 621.415/MG, v.u., DJ de 30/5/2006, p. 134.

8 JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 878.

______________

*Mestrando em Direito Processual na USP. Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados









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