Que Murmurem
Edson Vidigal*
Tudo obra de Deus, bicho e gente podem conviver muito bem, contanto que as pessoas compreendam e respeitem a condição e os espaços de cada um.
Em se tratando de bichos, existem os selvagens e os domesticáveis.
O fato de se trazer para bem perto numa coleira um tigre e submetê-lo à jaula não o faz um animal doméstico. Estará num ambiente doméstico, mas nunca será um animal doméstico. No dia possível, se mostrará o que é, um selvagem.
Os selvagens são indomesticáveis. Nunca perderão sua natureza agressiva por estarem vivendo longe da selva, sob a dominação das pessoas. Se alguém bobear, eles avançam pra valer.
Pense num murro de um tigre, num cascudo de um leão.
Isso não quer dizer que os homens nunca possam ir à selva, ver os animais soltos em sua liberdade poderosa, convivendo uns com os outros, em sua harmonia relativa.
Quando a fome bate à porta a coesão se rompe, a paz se estraçalha entre as moitas, entre os galhos e nos córregos. É um alvoroço danado, uma perseguição implacável, o mais forte sempre acaba dominando o mais fraco. E o suplanta e o devora.
No caso dos bichos porque sendo irracionais nenhum deles, dentre os fortes, abre dissidência para militar pelos fracos.
O que sempre predomina é a força dos fortes em união de necessidades para dividir e submeter à condição de presas fáceis os mais fracos.
As leoas e as tigresas não descuidam dos seus filhotes. Os machos se saciam e seguem calmamente o itinerário das suas liberdades descascadas.
A fome, necessidade maior, é a única capaz de unir na luta os iguais na força para a submissão dos iguais na fraqueza.
Sendo entre a maioria dos animais um bicho fraco, o homem na selva se safa porque é racional.
Inteligente, o bicho homem não vai sair do seu land-rover, o seu carro blindado, próprio para safári, para fazer graça a um tigre, a um leão.
Irracional, o leão ou o tigre até se aproxima do homem, podendo levar um tiro e ser morto. Mas o homem na selva não vai se aproximar da fera porque sabe que, no corpo a corpo, não vai vencê-la.
Por aqui nesse mundo nosso, mundo imundo dependendo do nível de qualidade dos dominantes, nessa selva de pedra, quando a fome de poder ou de dinheiro bate à porta, os racionais, vez por outra, se desprendem da racionalidade.
Em suas irracionalidades explícitas esbofeteiam a lógica, dão pontapés na verdade, querendo impor aos outros os seus desarrazoados. Mentem, agridem, estrebucham, num vale tudo, como se as coisas do mundo fossem só deles.
O mais engraçado é quando eles soltam os cachorros.
Não aqueles de estimação, inteligentes, amigos fies, que gostam de crianças e as crianças gostam deles, mas os viras latas sarnentos, mortos de fome, que latem infinitamente com os reflexos condicionados no mesmo osso, indisfarçáveis na imitação do próprio dono, da voz do dono.
Depois, as honras feridas, o dono fingindo inocência diz que não foi ele quem atiçou os cachorros. Os cachorros, não há dúvida, são dele. Roem o mesmo osso no canil dele.
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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA
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