A exigência de registro do contrato de alienação fiduciária de veículos nos Cartórios de Títulos e Documentos
Glauber Moreno Talavera*
Ao prever que a propriedade fiduciária constitui-se com o registro do contrato no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, o normativo referido evidenciou que o registro haverá de ser realizado num ou noutro e não num e noutro órgão, ressaltando a aplicação do disjuntivo e não do conectivo, lógica esta que fora reiterada expressamente pelo art. 27 da recém-aprovada Lei 11.795/2008 – Lei de Consórcios (clique aqui), cujo termo inicial de vigência será 06 de fevereiro de 2009.
Em outras palavras, o registro dos contratos de alienação em garantia de veículos na repartição competente para o licenciamento torna despiciendo qualquer outro registro. Todavia, embora simples a interpretação da norma, é certo que a hipertrofia do mercado brasileiro de automotores robustece a tentativa de subverter a essência da lei, uma vez que mais de dois terços do total de veículos emplacados este ano foram adquiridos mediante financiamento, via de regra garantido pelo negócio fiduciário acessório que teve como objeto, por meio de condição resolutiva, a transitória alienação do próprio veículo pelo consumidor adquirente - devedor fiduciante - à instituição que financiou sua aquisição - credora fiduciária – até quitação das prestações e conseqüente liquidação do contrato.
Sob o argumento de que a disjunção, que enaltece a necessidade de registro do contrato de alienação fiduciária de veículos apenas na repartição competente para o licenciamento, decorre de singelo erro de redação do §1º do art. 1.361 do Código Civil (que utilizou "ou" e não "e" como ensejado pelos que esposam este entendimento), expedem-se aqui e acolá normativos em que se entrevê a arbitrariedade das próprias razões de seus conceptores, que passam ao largo da complexidade do processo legislativo que culminou com a promulgação do monumento que é o Código Civil brasileiro e, talvez em razão disso, enveredem caminhos transversos para retocar o que entendem corrompido.
Vale ressaltar que, esposando o mesmo propósito de corrigir a redação do §1º do art. 1.361 do Código Civil, foram apresentados pelo à época deputado Ricardo Fiúza os Projetos de Lei 6.960/2002 e 7.312/2002 que, tendo recebido parecer desfavorável do então deputado Luiz Antonio Fleury Filho, foram arquivados. Afora os referidos, há outros inspirados pela mesma ordem de idéias tal qual o Projeto 3.351/2004 e o 309/2007, que à míngua de uma engenharia argumentativa melhor sedimentada, seguem reproduzindo o notadamente combalido mantra do erro de redação.
Sem olvidar a inteligência e a interpretação sistêmica a que se submete o art. 236 da Constituição Federal (clique aqui), ao conjugar o texto do §1º do art. 1.361 do Código Civil com as disposições dos arts. 127 a 131 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73 - clique aqui), que versam especificamente sobre as atribuições do Registro de Títulos e Documentos, conclui-se que o Código Civil, ao estabelecer no ano de 2002 que é bastante o registro do contrato de alienação fiduciária de veículos na repartição competente para o licenciamento, revogou tacitamente a previsão contrária que, em vigor desde 1973, disciplinou o regime dos serviços concernentes aos registros públicos. Na mesma linha de entendimento, o STF, na decisão unânime proferida na ADI nº. 2.150-8, considerou constitucional o registro da alienação fiduciária de veículos diretamente nas repartições de trânsito, dispensada a atuação dos cartórios.
Integrando o arcabouço interpretativo que destoa totalmente do que está previsto de forma expressa no Código Civil, tem-se também a alegação de que o registro do contrato de alienação fiduciária de veículos nos Cartórios de Títulos e Documentos tem o condão de reduzir o potencial de fraudes na expedição do CRLV - Certificado de Registro e Licenciamento de Veículos, uma vez que tais inconsistências são atribuídas à falta de estrutura dos Detrans para prestar tal serviço e dar publicidade ao ato. Sobre a suposta segurança dos procedimentos de registro, vale trazer à lembrança o voto proferido pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Athos Gusmão Carneiro, no julgamento do Recurso Especial nº. 1.774-0/SP, que concluiu que "(...) a publicidade que o Registro de Títulos e Documentos proporciona não supera os limites da ficção, pela quase impossibilidade total que terceiros têm na consulta a esses registros, para verificar a situação do bem (...)".
Suplantando os erros dessa dinâmica, a maioria dos que esposavam a tese da obrigatoriedade dos registros dos contratos em cartório sucumbiu diante de decisões judiciais que retiraram, liminarmente ou no mérito, a eficácia dos normativos expedidos em desconformidade com o que preceitua o §1º do art. 1.361 do Código Civil.
Atualmente, como expressão natural da racionalidade que inspira o contínuo aprimoramento da interpretação das normas, é de concluir-se que a atecnia da exigência do duplo registro continuará sendo paulatinamente apagada e certamente a última sonata dos poucos que ainda insistem nesta ilegalidade está num porvir muito próximo, como ocorre na clássica “Sinfonia dos adeuses”, de Haydn, em que cada músico, quando termina sua partitura, apaga a vela que ilumina seu atril e simplesmente vai embora.
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*Professor das Faculdades Metropolitanas Unidas e advogado em São Paulo
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