Propaganda governamental, gastos públicos e democracia
Raquel Cavalcanti Ramos Machado*
1. Estado, Sociedade e informação
É lamentável que essa reflexão não venha ocorrendo, pois é inegável que os elevados gastos com publicidade por parte do Governo são um problema real na sociedade brasileira. Além disso, a própria forma de dialogar alterou-se, exigindo-se um repensar da Teoria da Democracia nessa era de tecnologia digital, em que o acesso à informação cresceu em importância, ao mesmo tempo em que os diversos meios de comunicação disponíveis se modificaram.
Importa, pois, conjugar as doutrinas jurídicas e filosóficas aplicáveis, a fim de não apenas teorizar sobre controle da Administração, mas, como diria Marx3, modificar o mundo, a sociedade concretamente, considerando-os em sua faticidade.
Coincidentemente, durante o período em que mais refleti sobre o tema em questão, deparei-me com relato do jornalista Eugênio Bucci sobre a época em que ele atuou como presidente da empresa pública Radiobrás. No livro, Bucci narra como foi difícil tentar imprimir impessoalidade nas atividades da Radiobrás, e em como o Governo gasta com propaganda, e mais, como confunde jornalismo com propaganda. Em suas palavras,
não que sejam universos perfeitamente separados, o do jornalismo e o da publicidade. Há uma sinuosa membrana de contato entre ambos, eles se interpenetram e se embaralham. (...) O que importa é que, no plano formal, a separação entre os dois universos é um ideal de qualidade cultivado pelo jornalismo e compartilhado pelo seu público. A separação entre os dois discursos, por mais imbricações que se fiem entre eles, corresponde a uma ampla e profunda expectativa da cidadania e, por isso, pode-se dizer que é uma separação legitimada pela prática da comunicação social.
(...)
Dessa distinção, o jornalismo retira sua credibilidade, sua força, seu valor de mercado e seu peso institucional. É da mesma distinção que a publicidade retira o seu salvo-conduto para empregar abertamente técnicas de sedução, para buscar o vínculo emocional, para realçar o apelo de venda. O que o primeiro ganha em fé pública, por meio de rigor, a segunda ganha em poder de atração, por meio de "licenças poéticas". Essa distinção não foi inventada por ninguém em especial; é produto da sabedoria democrática, nasce da experiência coletiva continuada, ao longo de uma história que não é tão curta assim. Ela é o resultado, podemos dizer, da intuição comunicativa da sociedade democrática.
(...)
Os governos democráticos se caracterizam por não permitir que sua linguagem oficial incorra nos desvios totalitários de estetizar o Estado ou de estatizar a estética. (...) Desse modo, tendem a separar as formas de comunicação sob sua guarda...4
Assim, motivada a refletir sobre essas questões que entendo extremamente relevantes para o atual momento da história política, social e jurídica do país, desenvolvo o presente estudo.
2. A comunicação no diálogo entre governantes e governados
É inegável a importância do diálogo entre governantes e governados ao longo dos tempos, como forma de legitimação do poder.
Os recursos utilizados, evidentemente, foram os mais diversos, mas os propósitos talvez não se tenham alterado tanto.
Ao contrário do que se pode imaginar, não há governo que se mantenha apenas com o uso da força5. Prova disso é que a propaganda governamental foi e vem sendo usada, sobretudo, em ditaduras, como forma de conquistar a população na adesão às idéias do chefe do executivo.6
Exatamente por conta desse perfil da propaganda governamental é que, em uma democracia, deve-se ter a preocupação de examinar seu papel, notadamente considerando que ocorre a elevado custo.
Seria sua finalidade a de estabelecer um diálogo legítimo ente governantes e governados? Ou de mascarar o diálogo, filtrando e poetizando imagens? Pode ser traçada alguma diferença entre propaganda e publicidade governamental? Em que momento a propaganda governamental não se confunde com a promoção de determinados políticos especificamente, em violação ao princípio da impessoalidade e da moralidade, ou ainda implica a tentativa de imposição de uma idéia governamental, possibilitando, em qualquer caso, dominação de massa, com a criação de uma democracia artificial, simbólica? É proporcional fazer propaganda para divulgar a construção de hospitais, cujo resultado é constatável pelos administrados diante da mera análise material de sua existência?
3. Democracia, Estado Social e informação. A importância da transparência e do livre acesso à informação
A legitimidade (obtida pelos mais variados meios) de um governo é indispensável à sua manutenção, eis que nenhum se impõe unicamente pela força. Séculos de História dão o seu testemunho, em relação a monarquias, teocracias e impérios de diversas partes do globo. Tratando-se de uma democracia, essa idéia torna-se ainda mais eloqüente.
Realmente, para que a população participe do debate político, e efetivamente detenha o poder na tomada de decisões de uma dada sociedade, é indispensável que disponha de elementos sobre a atuação da Administração. Assim, não há como dissociar direito de informação e democracia.
E em uma democracia, o direito à informação é viabilizado pelo princípio da publicidade. Ao cidadão deve ser propiciado acesso aos dados que entender necessários a sua atuação enquanto agente político passivo.
A par disso, em um Estado Social, no qual é incumbência do Poder Público educar o cidadão, o princípio da publicidade se amplia para englobar a divulgação de atos que devem possibilitar o melhor convívio social. E a própria divulgação do direito à informação passa a ser elemento de publicidade. Assim é que, por exemplo, o Poder Público faz campanhas para conscientizar o cidadão sobre a importância do voto. A informação não deve ser somente aquela que permite o direito de defesa e o controle do Estado, mas aquela que forneça um conhecimento global ao cidadão sobre dados concernentes às múltiplas condutas que pode tomar.
Em resumo, o princípio da publicidade em uma Social Democracia realiza-se com as seguintes finalidades:
i) possibilitar o direito de defesa;
ii) possibilitar o controle da Administração Pública;
iii) possibilitar o acesso a informações genéricas que incrementem o diálogo e o convívio social como um todo, com a conscientização sobre direitos e deveres.
Como se vê, o direito à informação relaciona-se como a realização do princípio da publicidade como meio de satisfazer o diálogo democrático.
Precisamente nesse ponto, relacionado ao diálogo entre governantes e governados, que envolve interlocutores claramente identificáveis, pode-se imaginar que o princípio da publicidade se satisfaz com a mera publicação em diários oficiais sobre o agir administrativo. Considerando, porém, o atual dinamismo social e a necessidade de se fazer efetivo o diálogo e, em conseqüência, a democracia, não se pode ignorar que, apesar de os diários oficiais estarem à disposição de todos, poucos são os que efetivamente os manuseiam. Assim, não é correto afirmar que a mera publicação do agir administrativo nesses periódicos se preste a realizar o princípio da publicidade para fins democráticos. Realiza a publicidade para fins de possibilitar a procedimentalização administrativa, o direito de defesa, o controle da administração pelos que já estão inseridos nos meios técnicos, mas não o direito à informação, integrante da democracia participativa.
Realmente, já que o direito à informação está na base do direito à democracia, e já que não há informação sem linguagem adequada, muitas vezes a veiculação de informações por parte do Governo na mídia pode prestar relevante papel, principalmente considerando o diálogo com a população menos letrada.
Como observa Adilson Abreu Dallari,
não é razoável que os assuntos administrativos cheguem ou não cheguem ao conhecimento do povo na dependência do interesse ou da boa vontade da imprensa. A prática tem demonstrado que na quase totalidade dos casos, a Administração Pública só é notícia em seus aspectos patológicos ou quando não funciona. Isto tem um terrível e grave efeito deletério: como o cidadão comum recebe apenas notícias negativas a respeito das instituições públicas, acaba tendendo a descrer de todo e qualquer governante, de seus representantes eleitos, da administração pública em geral, dos poderes constituídos e, por último, das instituições democráticas. Portanto, a pluralidade de fontes de informação sobre a atuação pública é fundamental, para que possa haver críticas, controle, possibilidade de defesa e, também, oportunidade de evidenciar os êxitos e as conquistas da sociedade e dos governantes democráticos7.
Daí, porém, a aceitar que os gastos envolvendo matéria dessa natureza não são controláveis há um hiato desmedido.
Antes, contudo, importa compreender em que consiste o direito à informação em relação à Administração, direito este que integra o meta-direito à participação democrática.
Nesse ponto, é que entra a análise de outra questão relevante, qual seja, os diversos tipos de propaganda que podem ser realizados pelo Governo e o gasto com cada um deles, considerando, sobretudo, dentre outros tópicos de argumentação, a razoabilidade.
Assim, importa ficar claro que o cidadão tem direito a ser informado sobre todo o agir administrativo, a fim de que forme o seu juízo a respeito do que o governante:
a) faz mas não deveria fazer;
b) não faz, mas deveria fazer;
c) faz porque deveria mesmo fazer.
A "propaganda governamental" pode realizar com satisfação o último requisito, mas certamente não satisfaz os dois primeiros, podendo mesmo, em certas situações, implicar manipulação da informação. Vê-se, pois, que há diversos tipos possíveis de propaganda, e, em conseqüência, são diferentes as necessidades ou a aceitabilidade de sua implementação.
A própria legislação faz distinção quanto às formas de publicidade na mídia. No caso, a Instrução Normativa nº 28/2002 da SECOM traça a seguinte classificação:
Classificação da Publicidade Governamental
Art. 1º A Administração Pública Federal, direta e indireta, passa a classificar suas ações publicitárias da seguinte forma:
I) Publicidade Legal - a que se realiza em obediência à prescrição de leis, decretos, portarias, instruções, estatutos, regimentos ou regulamentos internos dos anunciantes governamentais;
II) Publicidade Mercadológica - a que se destina a lançar, modificar, reposicionar ou promover produtos e serviços de entidades e sociedades controladas pela União, que atuem numa relação de concorrência no mercado;
III) Publicidade Institucional - a que tem como objetivo divulgar informações sobre atos, obras e programas dos órgãos e entidades governamentais, suas metas e resultados;
IV) Publicidade de Utilidade Pública - a que tem como objetivo informar, orientar, avisar, prevenir ou alertar a população ou segmento da população para adotar comportamentos que lhe tragam benefícios sociais reais, visando melhorar a sua qualidade de vida.
A controvérsia quantos aos gastos com publicidade gira, sobretudo, em torno das duas últimas modalidades, ou seja, publicidade institucional e de utilidade pública. Em relação a esta não resta dúvida quanto a sua importância, já que versa sobre esclarecimentos à população para o futuro, numa atuação educativa e prospectiva, antes já referida, quando citamos o exemplo da campanha para esclarecimento sobre a importância do voto. Já a segunda, a publicidade institucional, precisa ser analisada com cautela.
Primeiro, porque guarda um liame muito estreito entre a divulgação de realizações do Governo, para fins de fortalecimento das instituições, e divulgação do próprio governante do momento.8 Segundo, porque é de utilidade mais reduzida, já que apenas anunciará para a população ato que já foi praticado. Nesse ponto, exatamente considerando que a propaganda funciona como um meio específico, está sujeita ao controle pelo postulado da proporcionalidade. Vejamos, portanto, como esse controle pode ocorrer considerando os fins do Estado.
Como se sabe, o Estado ou realiza (direta ou indiretamente) atividade prestacional, com a entrega de serviços públicos, ou exerce atividades de polícia (fiscalização, prevenção ou repressão a danos). Todo o restante da atuação estatal é instrumental desses dois fins.
Sabe-se, por outro lado, que não pode o Estado, a pretexto de realizar um ato-meio, gastar a tal ponto que inviabilize sua atuação-fim. Diante dessas considerações, fica fácil concluir que não pode o Estado gastar mais com propaganda do que realizando os atos prestacionais e materiais que divulga, sobretudo no caso de propaganda institucional. Isso decorre da própria noção de Estado Social e de democracia efetiva. Do contrário, possibilitar divulgações mais dispendiosas do que a própria atuação é privilegiar a retórica em prejuízo de incrementos reais efetivos, o que possibilita o surgimento de uma democracia forjada, já que fundada em uma imagem irreal de prosperidade estatal.
A propósito, como afirma Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao examinar a objetividade com que deve ser avaliada eventual violação ao princípio da moralidade,
não é preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isso ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir; entre os sacrifícios impostos à coletividade e os benefícios por ela auferidos; entre as vantagens usufruídas pelas autoridades públicas e os encargos impostos à maioria dos cidadãos. Por isso mesmo, a imoralidade salta aos olhos quando a Administração Pública é pródiga em despesas legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação, isso sem falar no mínimo indispensável à existência digna.9
Considerando o direito à informação em sua dimensão democrática, fica fácil concluir que o Poder Público não pode divulgar dados em forma tal que induza a um conhecimento programado de parcela da realidade apenas. Sim, pois o direito de informação em sua dimensão democrática implica a liberdade em obter e transmitir dados, sem coações de quaisquer espécies. Postura contrária é própria de regimes totalitários10 e não democráticos. Não há poder do povo, que envolve poder de escolha, com conhecimento de parcela da realidade.
É importante ressaltar que não se trata de limitar a veiculação de propaganda por parte do Governo diante de possível censura a seu conteúdo, mas diante dos gastos que acarreta, considerando a desproporção entre o benefício gerado para a sociedade e a informação divulgada. Em alguns casos, diante de desproporção desmesurada, pode-se até considerar, só por isso, uma propaganda enganosa por parte do governo, principalmente ponderando toda a estratégia de marketing empregada, com músicas, jingles etc. É inegável que, a depender da veiculação, a propaganda governamental pode prejudicar o livre convecimento do cidadão sobre a real atuação administrativa.
Por outro lado, é de se investigar a utilidade da propaganda governamental institucional, considerando todo o contexto da atuação estatal, e assim analisar a realização do postulado da proporcionalidade em sentido estrito, aquilatando a possível violação aos demais valores, bem como o custo que a realização de propagandas dessa natureza pode trazer globalmente. Expressivas, a esse respeito, são as palavras de Paulo Bonavides:
Só este ano o governo despenderá em publicidade 650 milhões de reais.
Que absurdo, que irresponsabilidade, que acinte!
Quantas lágrimas não poderiam ser enxugadas, quantas crianças alimentadas, quantas escolas construídas, quantos remédios adquiridos, quantos hospitais providos e equipados, quantas universidades e laboratórios e bibliotecas instalados, quanta miséria socorrida, quanta indigência amparada, quantas dores estiladas em pranto não poderiam ser mitigadas!
Todo esse dinheiro se gasta nas orgias publicitárias de um regime que busca nos meios de comunicação o derradeiro asilo, o derradeiro artifício com que recompor a imagem poluída e estragada de uma gestão de incompetência e desmazelo. (...)
(...)
É dinheiro do erário financiando pois a lavagem cerebral da sociedade, inculcando, deste Governo, virtudes que ele não possui, alardeando obras que não saíram do papel, renovando promessas que não serão cumpridas, formulando planos que a mesa da burocracia ministerial depois arquivará.11
Nesse ponto, não há como ignorar que a maior finalidade de uma propagando é cativar um público, principalmente tendo em vista um ambiente de competição. O Estado não tem concorrente.12 Quem o tem são eventuais governantes que transitoriamente ocupam o poder. Mas a própria Constituição (clique aqui) deixou expressa a impossibilidade de uso da máquina administrativa para promoção pessoal. Propagandas que marquem um Governo específico e não o Estado, não é institucional, mas pessoal do governante. E nesse caso não só pode haver ofensa à eficiência administrativa, mas também à impessoalidade e à moralidade.
Para assimilar a idéia, basta pensar em produtor de bem exclusivo. Dificilmente esse produtor irá gastar com propaganda, já que seu público é cativo. No máximo, poderá fazê-lo para aumentar a clientela. Mas, quando se compara essa realidade com a do Estado, constata-se que esse não tem necessidade de "clientes", de mais pessoas consumindo seus serviços. Por outro lado, as próprias realizações públicas já são em si notórias, bem como são já propagadas e discutidas pelos cidadãos, noticiadas pela imprensa, não tendo o Estado necessidade de destinar elevadas quantias de dinheiro público para o fim de realizar ainda mais propaganda, notadamente quando essa destinação de verba comprometer a concretização de direitos sociais.
Da mesma forma, ao cuidar do papel do Estado na comunicação com a sociedade, Eugênio Bucci expõe:
(...) uma coisa é a informação que ele tem como dever tornar disponível; outra distinta, é a publicidade de governo que, sem prejuízo da verdade e do dever da impessoalidade, disputa a atenção da opinião pública com técnicas para seduzir a platéia e captar-lhe primeiro a simpatia e, depois, a confiança. (...) Esse debate e a decisão a que ele deve conduzir são dívidas que a democracia brasileira ainda não quitou com os cidadãos13
Como se afirmou, não se trata de vedar a propaganda institucional, prevista inclusive no texto constitucional, mas de limitar os elevados gastos com ela realizados.
Assim, considerando o postulado da proporcionalidade, mesmo analisando apenas o primeiro de seus sub-postulados, qual seja a adequação, percebe-se não ser proporcional destinar elevadas quantias de verbas públicas à realização de propaganda governamental.
Além disso, não há como ignorar que atualmente, de forma gradativa, a população está a usar mais a internet, tanto que o próprio Poder Público já se propõe a disponibilizar acesso à rede; inclusive a doutrina jurídica já inicia a tratar de um direito fundamental de acesso à internet. Mesmo pessoas de baixa renda e menos instruídas estão a usar a rede digital de informações. Sites oficiais, como os do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal têm acessos crescentes e numerosos. Nesse ambiente, as páginas do Governo são o melhor ambiente para estabelecer um diálogo com a sociedade e a custo muito menos elevado. Os valores que se deixa de despender com propaganda podem ser destinados a promoção de direitos sociais.
Aqui, considerando os sub-postulados da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, percebe-se que o Estado pode realizar diálogo com a sociedade, valendo-se de muito menores custos, em benefício da implementação de outros direitos fundamentais.
Alguns podem, a essa altura do diálogo que estamos a travar, conjeturar que a questão é sobremaneira política para se submeter a um exame jurídico.
Essa objeção, porém, não procede, pois não se adequa ao atual modelo de organização da sociedade participativa e do Estado Social.
Realmente, a partir do momento em que se consagrou o Estado brasileiro como sendo um Estado social, o controle de gastos públicos, considerando a relevância da atividade estatal, deixa de ser questão meramente política, para ser questão jurídica, controlável pelo Poder Judiciário, portanto, através das inúmeras ações de que dispõem os cidadãos e a sociedade para controlar a Administração.
Evidentemente, esse controle deve ser realizado a partir de violações concretas a direitos fundamentais sociais, como procuraremos examinar no capítulo seguinte.
4. Controle dos atos do poder público relacionados à propaganda governamental
As considerações feitas acima teriam pouco relevo, se não se tratasse, também, no presente estudo, de instrumentos de controle utilizáveis para conter abusos ou desvios com propagandas governamentais.
Inicialmente, deve-se observar que tanto é certo destinarem-se muitas vezes as campanhas institucionais não a realizar um diálogo verdadeiro entre sociedade e Estado, mas sim a promover a imagem de governantes que a Justiça Eleitoral, interpretando o art. 73 da Lei 9.504/97 (clique aqui), vem impedindo a divulgação de propagandas governamentais no período de três meses que antecede cada pleito14, sobre o fundamento de possível violação à isonomia entre candidatos. Ou seja, a propaganda institucional inegavelmente possibilita, com grande facilidade, a promoção de agentes públicos.
Seja como for, considerando o montante da verba utilizada na realização de propaganda, agride a sensibilidade jurídica negar a concretização de um direito fundamental, sob o pretexto de que o Estado não dispõe de meios materiais (verba) para cumprir seus deveres constitucionais, quando se sabe que dispõe, sim, de verba destinada a divulgar a imagem de um mesmo Estado próspero, o que contradiz a negativa de entrega do direito pleiteado.
Dessa forma, assim como outrora a Ciência Jurídica avançou para possibilitar o controle da atuação estatal por meio de princípios, é preciso entender que a juridicidade desses princípios tem por fim possibilitar a efetivação do Estado Social.
É inteiramente retrógrado afirmar que referido controle viola a separação de Poderes. Afinal, quando Montesquieu apontou as formas de interseção entre poderes, o Estado não tinha a feição de agora. A propósito, o que caracteriza o Estado Social? Apesar de genérica, pode-se afirmar que a resposta é: um dever geral de solidariedade.
Arrecada-se mais com finalidades sociais específicas. Se, por um lado, o cidadão se compromete a colaborar mais, o Estado se compromete a atuar em áreas específicas que possibilitem o desenvolvimento individual e social.
Ora, de nenhuma utilidade teria limitar constitucionalmente os gastos do Estado se, em verdade, a adequação desses gastos não fosse controlável por outro Poder, pois a cada dever jurídico deve corresponder a possibilidade de seu controle.
Seguindo essa linha de raciocínio, recentemente o Tribunal Regional Federal da 5ª Região proferiu decisão notável. No julgado, examinava-se o dever de Estado-membro de assegurar o pagamento de tratamento fora de domicílio, através de repasse de verbas do SUS. Como defesa, o Estado-membro, precisamente o Estado do Rio Grande do Norte, invocou o argumento de que o pagamento de diárias com tratamento fora de domicílio comprometeria o equilíbrio das contas públicas. Examinando o orçamento, porém, os Desembargadores Federais constataram a destinação de verbas para a realização de propaganda governamental. Diante desse fato, concluíram que o custeio dos tratamentos fora de domicílio não afetaria o equilíbrio das contas públicas, já que tanto o Estado dispunha de verba, que a estava destinando a realizar ato de somenos importância, considerando seus próprios fins. A própria ementa do acórdão é longa, mas destacamos alguns trechos elucidativos sobre a questão.
"PROCESSUAL CIVIL, CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TFD - TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO. SUS - SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. DIÁRIAS. PORTARIA Nº 55/99 DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. REGULAMENTAÇÃO. OMISSÃO DA ENTIDADE FEDERADA. RESPONSABILIDADE. CONDENAÇÃO. NÃO PROVIMENTO DOS RECURSOS.
- Recurso necessário (tido por interposto) e voluntário contra sentença de procedência do pedido formulado em ação civil pública, tendo sido condenado o Estado do Rio Grande do Norte no pagamento de diárias, para despesas com alimentação e pernoite, aos cidadãos necessitados do TFD - Tratamento Fora do Domicílio do SUS - Sistema Único de Saúde e seus acompanhantes, tendo como valores mínimos os previstos na tabela de referência da Portaria nº 55/99 do Ministério da Saúde.
(...)
- Nos termos da Norma Constitucional (arts. 5º, 6º e 196), o direito à saúde é marcado por sua "fundamentalidade", considerando-se mesmo que sua garantia é expressão de resguardo da própria vida, maior bem de todos, do qual os demais direitos extraem sentido. Analisando o conceito de "fundamentalidade", J J Gomes Canotilho concebe-o sob duas perspectivas: a "fundamentalidade formal", correspondente à constitucionalização, à localização de direitos reputados fundamentais no ápice da pirâmide normativa, com as conseqüências desse fato derivadas – demarcação das possibilidades do ordenamento jurídico e vinculatividade dos poderes públicos –, e a "fundamentalidade material", identificadora dos direitos fundamentais a partir do seu conteúdo "constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade", permissiva do reconhecimento de outros direitos não expressamente tipificados no rol constitucional, mas equiparáveis em dignidade e relevância aos direitos formalmente constitucionais ("norma de fattispecie aberta"). Em ambas as visões, exsurge a magnitude da essencialidade, embora seja patente a maior significância compreensiva da segunda. "No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados" (José Afonso da Silva). Os direitos fundamentais cumprem, nessa contextura, determinadas funções: exigem prestações do Estado, protegem diante do poder público e de terceiros, fomentam a paridade entre os indivíduos, designam os alicerces sobre os quais se constrói e se orienta o ordenamento jurídico ("eficácia irradiante"). Têm força, ao mesmo tempo, por assim dizer, de princípio e de regra.
(...)
- Se o Estado-membro, confessadamente, não está honrando com a obrigação de pagar as diárias para os trajetos interestaduais, como lhe compete, na distribuição das incumbências entre os entes da Federação, em relação à saúde, e, particularmente, se ele se omitiu, deixando de expedir, como se lhe foi exigido, a regulamentação necessária à implementação adequada do programa TFD (apenas o fazendo quando a ação civil pública já havia sido ajuizada, transcorridos mais de sete anos desde a determinação de expedição de regulamento), deve ele ser impelido a cumprir suas atribuições.
- Por certo que não se ajusta ao Texto Constitucional inviabilizar o deslocamento de pacientes às localidades com assistência médica adequada, mormente no caso de enfermidades extremamente graves, como as relatadas nos autos (doentes submetidos a cirurgias na coluna, transplantados renal e hepático, um dos quais também acometido de câncer).
- "O Estado, ao negar a proteção perseguida nas circunstâncias dos autos, omitindo-se em garantir o direito fundamental à saúde, humilha a cidadania, descumpre o seu dever constitucional e ostenta prática violenta de atentado à dignidade humana e à vida. É totalitário e insensível" (Primeira Turma, RESP 948579/RS, Rel. Min. José Delgado, j. em 28.8.2007).
- Diversamente do alegado, os valores envolvidos não têm o condão de colocar em risco o orçamento do Estado (a diária é orçada, na tabela de referência do SUS, em R$ 30,00). Ainda que ele não tivesse o importe à disposição sob essa rubrica, a garantia da preservação da saúde dos cidadãos autoriza determinação judicial para que os recursos, inicialmente previstos para fins publicitários, sejam direcionados ao TFD, tudo em função do sopeso dos bens jurídicos a resguardar.
- A norma não exige a condição de "carência" do paciente para que ele possa gozar do benefício, apenas asseverando que “o TFD será concedido, exclusivamente, a pacientes atendidos na rede pública ou conveniada/contratada do SUS” (§ 2º do art. 1º da Portaria nº 55/99).
- Ônus de sucumbência regularmente arbitrados.
- Pelo não provimento da remessa oficial e da apelação.
Apelação Cível nº 425.249-RN (Processo nº 2006.84.00.005522-4)
Relator: Juiz Francisco Cavalcanti (Julgado em 8 de novembro de 2007, por unanimidade)
Realmente, não se pode falar em Estado Social, sem que o Poder Judiciário controle a atuação administrativa em relação ao cumprimento de deveres que caracterizam esse tipo de Estado. Já se mostra superado o argumento dos que se contrapõem ao alargamento da atuação do Poder Judiciário em relação ao controle dos atos do poderes Executivo e Legislativo, sob a afirmativa de que aquele não teria legitimidade, e de que haveria ofensa ao próprio princípio democrático.
A legitimidade para esse controle decorre da própria Constituição, aceita pela sociedade, instrumento da democracia, que assegura que nenhuma lesão ou ameaça de direito será afastada da apreciação judicial. Além disso, a legitimidade do Poder Judiciário decorre da razoabilidade15 das decisões e de sua fundamentação, controlável pelos jurisdicionados e pela sociedade. Sabe-se que, depois de eleitos, os legisladores e agentes políticos do Executivo não atuam ato a ato em atenção aos verdadeiros anseios sociais. O Poder Judiciário é o último reduto de que dispõe o cidadão no controle da violação a deveres constitucionais da Administração.
Agora, apenas uma ressalva deve ser feita. Como o controle gira em torno da viabilização do Estado Social, entendemos que as ações coletivas são as mais adequadas para o exercício do controle financeiro e orçamentário. Realmente, é preciso atentar para o fato de que a concretização de direitos sociais (que devem ser assegurados a toda uma coletividade), não necessiariamente se faz com a individualização de direito social pleiteado em juízo. Ao assegurar, através de ações individuais, determinados direitos sociais de custo elevado, como alguns tratamentos médicos, o Poder Judiciário pode terminar por retirar da coletividade o acesso ao mínimo social de qualidade.16
Considerações finais
Diante do exposto, considerando o papel da propaganda governamental na atual era do Estado Democrático e Social, é possível apresentar as seguintes conclusões quanto aos limites jurídicos ao uso de verba pública na sua realização:
a) Gastos com publicidade de utilidade pública devem ser realizados até o limite em que a campanha se demonstre eficiente para evitar gastos do Estado com o reparo a danos, caso a sociedade tivesse sido devidamente informada de como evitá-los;
b) gastos com publicidade institucional, ou propaganda governamental, devem ser mínimos, uma vez que, atualmente, o Governo dispõe da tecnologia da internet para divulgar com igual alcance e menor custo suas informações, ainda que tenham por fim unicamente prestar contas sobre obras e serviços realizados. Assim, conciliam-se de forma mais harmônica os princípios da eficiência, economicidade e publicidade. Além disso, os recursos de marketing utilizados em propagandas divulgadas em meios televisivos, impostas disfarçadamente durante programação de outra natureza, podem encobrir a realidade, levando a um diálogo entre governantes e governados com conteúdo forjado;
c) mesmo sem analisar os aspectos antes referidos, considerando apenas a razoabilidade e a proporcionalidade, gastos com publicidade institucional não podem ultrapassar os valores efetivamente utilizados com os incrementos materiais realizados e que se pretende divulgar. Do mesmo modo, gastos dessa natureza não podem pôr em risco novos atos materiais de natureza social cuja realização se faça necessária;
d) sobretudo quanto a este último aspecto, o Tribunal de Contas e principalmente o Poder Judiciário podem controlar a atuação estatal. O Poder Judiciário pode inclusive determinar à Administração Pública que não se abstenha de realizar atos materiais a pretexto de comprometimento do orçamento, quando, diante de uma análise deste, constatar que o contingenciamento de verbas refere-se a gastos publicitários.
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1 "O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades." (ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10 ed. Forense Brasília, p. 212)
2 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.1., p. 165.
3 Como afirma K. Marx, refletindo sobre a utilidade de algumas doutrinas filosóficas, "Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente, trata-se porém de modificá-lo" (MARX, Karl. "Teses sobre Feurbach". In: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Omega, 1960, p. 208)
4 BUCCI, Eugênio. Em Brasília, 19 horas. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 74-79 – grifos não contidos no original.
5 A violência até pode, eventualmente, participar na instituição de uma nova ordem jurídica (sendo necessária para destituir as bases da anterior), mas não a alimenta. "Toda pressão que dura é indício certo de revolução que se retarda." (MIRANDA, F.C. Pontes de. Sistema de Ciência Positiva do Direito, Campinas: Bookseller, 2000, v. 3., p. 116). No mesmo sentido: PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 241; SEARLE, John R. Libertad y neurobiologia. traducción de Miguel Candel, Barcelona: Paidós, 2005, p. 108; VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e Força – Uma visão pluridimensional da coação jurídica, São Paulo: Dialética, 2001, passim.
6 Por isso mesmo, Luhmann observa que o poderoso sempre luta para manter uma aparência que não corresponde à realidade, usando para isso a propaganda. (LUHMANN, Niklas. Poder. Tradução de Martine Creusot de Rezende Martins. Brasília: UnB, 1985, p. 22)
7 DALLARI, Adilson Abreu. Divulgação das atividades da administração pública – publicidade administrativa e propaganda pessoal. In: RDP, n.º 98, p. 247.
8 "A propaganda governamental na verdade é feita para promoção pessoal dos governantes, tanto que no passado veiculava seus nomes e fotografias. Já não pode fazê-lo, mas veicula, ainda que indevidamente, mensagens que, de algum modo, ainda que apenas em razão das circunstâncias, identificam os favorecidos com a divulgação." (MACHADO, Hugo de Brito. "Carga tributária e gasto público: propaganda e terceirização". In: Interesse público. Curitiba: Notadez. 2006, Ano VIII, n.º 38, p. 179)
9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2 ed. São Paulo: Atlas. 2007, p. 155.
10 Como relato histórico comparável e que demonstra o perigo do uso da propaganda governamental indireta, tem-se a propaganda realizada durante as ditaduras de Mussolini e Hitler. Realmente, em obra na qual se busca fazer análise social através das artes, Laura Malvano observa que “a partir da década de 1920, baseando-se num projeto preciso do departamento de imprensa de Mussolini, o culto ao Duce tornou-se um dos mais importantes temas de mobilização nacional. Contudo, foi no decorrer da década de 1930 que, ao redor da imagem do Duce, se estruturou uma operação de propaganda de grandes proporções e uma articulação sem precedentes." ("O mito da juventude transmitido pela imagem: o Facismo italiano". In LEVI, Giovanni Levi; SCHMITT, Jean Claude (orgs.) História dos Jovens. Vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 279)
11 BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. Por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 102-103. O ano a que o autor se refere é o de 2000, no qual foi proferida a conferência a que o texto corresponde.
12 Cf. MACHADO, Hugo de Brito. "Carga tributária e gasto público: propaganda e terceirização". In: Interesse público. Curitiba: Notadez. 2006, Ano VIII, n.º 38, p. 179 e ss.
13 BUCCI, Eugênio. Em Brasília, 19 horas. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 74-79.
14Assim como entendemos ser possível a veiculação de algumas propagandas institucionais, desde que os gastos correspondentes não sejam desproporcionais (considerando os fins e os demais gastos necessários), concordamos com Clèmerson Merlin Clève, Paulo Ricardo Schier e Melina Breckenfeld Reck, quando defendem a aplicação da norma de acordo com o resultado e não com a mera conduta. (cf. "Vedação de propaganda institucional em período eleitoral".
15 "A razoabilidade é a medida preferível para mensurar o acerto ou desacerto de uma solução jurídica." (trecho de decisão proferida no RMS 25.652-PB, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 16/9/2008 e divulgada no Informativo nº 368 do STJ)
16 Exemplo foi a decisão que assegurou o custeio de cirurgia para redução de estômago, ao valor de R$ 500.000,00, a um individuo, por pequeno Município. Certamente, o valor respectivo poderia ser usado para implementar inúmeras ações médicas e de saúde preventiva para grande quantidade de outros indivíduos.
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*Advogada e membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários - ICET
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