A imunidade das entidades de assistência social em relação ao ICMS
Érica de Carvalho E. Rodrigues*
Já há algum tempo, diversos questionamentos, tanto no âmbito administrativo, quanto judicial, surgiram acerca da possibilidade das entidades assistenciais virem a ser beneficiadas, quanto ao ICMS, pela imunidade prevista no art. 150, VI, "c" da Constituição da República, abaixo transcrito:
"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
IV – instituir impostos sobre:
(...)
c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;"
Depreende-se da redação do artigo que o legislador constituinte quis destacar a relevância das atividades desenvolvidas pelas entidades assistenciais, sem fins lucrativos e direcionadas aos que dela necessitam, lhes outorgando um tratamento tributário diferenciado.
Nesse contexto, doutrina e jurisprudência têm-se inclinado favoravelmente à tese de que, preenchidos os requisitos da lei, no caso lei complementar (art. 14 do Código Tributário Nacional - clique aqui), as entidades beneficentes de assistência social são imunes a impostos, incluindo o ICMS, nos termos do art. 150, VI, "c" da CF/88.
Apesar disso, as administrações fazendárias estaduais restringem a aplicação da imunidade prevista no texto constitucional e tratam a matéria no campo das isenções, aplicando-a somente para determinadas situações e por meio de Convênios ou de seus Regulamentos de ICMS.
Entretanto, a matéria não se esgota no âmbito da isenção estadual, tendo as entidades assistenciais direito à contemplação do benefício, através do instituto da imunidade, pelo que se faz necessário, portanto, conceituarmos os institutos da imunidade e da isenção tributária, a fim de que possam ser distinguidos de forma adequada. Vejamos.
A regra de imunidade consiste em uma limitação constitucional ao poder de tributar, porque estabelece proibição do exercício da competência tributária em relação a certas situações e fatos constitucionalmente definidos. Conforme ensinamento de Luciano Amaro:
"O que fazem, pois, essas limitações, é demarcar, delimitar, fixar fronteiras ou limites ao exercício do poder de tributar. São, por conseguinte, instrumentos definidores (ou demarcadores) da competência tributária dos entes políticos no sentido de concorrerem para fixar o que pode ser tributado e como pode sê-lo, não devendo, portanto, ser encaradas como 'obstáculos' ou 'vedações' ao exercício da competência tributária, ou 'supressão' dessa competência, consoante, a propósito das imunidades tributárias, já observou Paulo de Barros Carvalho."1
Por sua vez, a isenção é disciplinada por normas infraconstitucionais e corresponde a uma dispensa (por lei) ao pagamento dos tributos, concedida em determinadas situações.
Apesar do entendimento das administrações fazendárias de que o benefício das entidades assistenciais ao não pagamento do ICMS se trata de mera isenção, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, interpretando de forma ampla o dispositivo constitucional do art. 150, VI, "c", estendeu a referida imunidade aos impostos incidentes sobre o comércio exterior (II), a produção (IPI) e circulação de mercadorias (ICMS), sob o entendimento de que não é adequado distinguir entre bens e patrimônio, dado que este se constitui do conjunto daqueles, desde que os bens adquiridos, no mercado interno ou externo, sejam destinados ao ativo fixo dessas entidades, visando o cumprimento de suas finalidades estatutárias. Nesse sentido as decisões nos RE’s nº 186175/SP; 164162/SP; RE 203775/ES; 215163/SP; 225778/SP; entre outros.
Além do entendimento do Pretório Excelso acima mencionado, ainda em relação à imunidade concedida às entidades assistenciais quanto ao recolhimento do ICMS, o Plenário do STF, no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Extraordinário nº 210.251/SP, firmou entendimento no sentido de que, tratando-se de impostos que admitem a transferência do ônus econômico (como é o ICMS), importa, para a garantia do gozo da imunidade tributária, a condição de contribuinte de direito da entidade assistencial.
"EMENTA: Recurso extraordinário. Embargos de Divergência. 2. Imunidade tributária. Art. 150, VI, "c", da Constituição Federal. 3. Entidades beneficentes. Preservação, proteção e estímulo às instituições beneficiadas. 4. Embargos de divergência rejeitados
Necessária se faz a transcrição de trecho do ilustre Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Recurso Extraordinário acima referido:
"(...) Embora reconheça a seriedade da posição dos que defendem que se cuida de ICMS, que, pela própria natureza, não incidiria diretamente sobre patrimônio, a renda ou serviços da entidade, entendo que essa distinção não se afigura suficiente para afastar a aplicação da imunidade na espécie. A propósito, continua atual, a meu ver, a lição de Baleeiro: ‘ A imunidade, para alcançar os efeitos de preservação, proteção e estímulo, inspiradores do constituinte, pelo fato de serem os fins das instituições beneficiadas, também atribuições, interesses e deveres do Estado, deve abranger os impostos que, por seus efeitos econômicos, segundo as circunstâncias, desfalcariam o patrimônio, diminuiriam a eficácia dos serviços ou a integral aplicação das rendas aos objetivos específicos daquelas entidades presumidamente desinteressadas por sua própria natureza.’ (Baleeiro, Aliomar. Limitações ao poder de tributar. 7. Ed. Ver. e compl. à luz da Constituição de 1988 até a emenda constitucional nº 10/1996. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 313).
É claro, não se pode ignorar que se cuida de imposto que, pela repercussão econômica e eventual, poderia não onerar o contribuinte de direito, mas, sim, o contribuinte de fato. (...)"
Entretanto, o entendimento de que as entidades assistenciais fariam jus à imunidade do referido imposto, mesmo quando estivessem na qualidade de contribuinte de fato, ou seja, quando efetivamente suportassem o ônus econômico do tributo, não encontrou guarida no E. Supremo Tribunal Federal.
Nessa hipótese, o fornecedor de produtos ou serviços é o contribuinte de direito do tributo, obrigado ao seu recolhimento por não gozar de imunidade, mas o ônus econômico do imposto é repassado na nota para o consumidor final (contribuinte de fato), que, apesar de imune, arcará com o seu custo.
Ora, o imposto que recai sobre a entidade assistencial, quando contribuinte de fato, afeta o seu patrimônio, na medida em que diminui sua renda e compromete a eficácia das atividades desenvolvidas pelas entidades de assistência social, até mais do que quando figura como contribuinte de direito do imposto, pois, neste caso, ela tem a possibilidade de repassar o ônus do tributo para o consumidor final.
Se o legislador constituinte, por meio da imunidade tributária concedida às entidades de assistência social, sem fins lucrativos, quis destacar a relevância social dessas entidades que direcionam seus trabalhos aos que dela necessitam, enquadrando-as como de alto valor social, fazem jus, portanto, à máxima desoneração tributária.
Nesse sentido, a imunidade tributária assegurada pela Constituição da República às entidades de assistência social é plena e auto-aplicável, bastando o atendimento aos requisitos legais para que surtam seus efeitos.
A conclusão a que se chega é a de que não pode a autoridade administrativa/fiscal estabelecer qualquer limitação infralegal ao gozo da imunidade por estas entidades, em contrariedade ao direito que lhes é constitucionalmente assegurado.
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 2ª ed., 1998, p. 105.
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*Advogada do Departamento Tributário do escritório Manucci Advogados, especialista em Direito Tributário.
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