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O enquadramento da pessoa jurídica como consumidor

A Lei 8.078/90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor - CDC, provocou uma profunda alteração no conceito de responsabilidade civil, tendo aplicação em muitas questões cotidianas, considerando que a relação de consumo está presente nas práticas comuns a todos os seguimentos da sociedade.

24/9/2004

O enquadramento da pessoa jurídica como consumidor


Amanda Cardoso Ciodaro de Quadros*

A Lei 8.078/90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor - CDC, provocou uma profunda alteração no conceito de responsabilidade civil, tendo aplicação em muitas questões cotidianas, considerando que a relação de consumo está presente nas práticas comuns a todos os seguimentos da sociedade.

A importância do tema abordado pela referida Lei é tamanha, que tem previsão constitucional, nos artigos 5º, XXXII, 170, V, bem como no artigo 48 do Ato das Disposições Transitórias.

Neste sentido, entende-se que o CDC criou um “microssistema” jurídico, que assim é denominado por ser aplicável a todas as relações de consumo, no âmbito civil, penal, processual civil, processual penal, administrativo, constitucional e comercial.

Impende assinalar que o tema sobre o enquadramento da pessoa jurídica como consumidor é objeto de importantes discussões jurídicas, o que é natural, face à sua relevância.

Apesar da controvérsia sobre a conceituação de quem pode ser reconhecido como consumidor, vem sendo adotada a tese prevista no CDC, em seu artigo 2º, que considera consumidor toda a pessoa que adquire bens ou contrata a prestação de serviços como destinatário final, ou seja, o que age com o fim de atender sua própria necessidade ou de outrem, e não para o desenvolvimento de sua atividade profissional (insumo).

Portanto, para que uma pessoa jurídica seja enquadrada como consumidora pelo CDC, o bem ou serviço de consumo deve ser para uso privado. Destarte, se o bem ou serviço for utilizado por pessoa jurídica para atingir o seu objeto social, não existirá relação de consumo.

Ressalte-se que tal entendimento é adotado pela doutrina mais abalizada.

Com efeito, TOSHIO MUKAI sustenta que “(...) a pessoa jurídica só é considerada consumidor, pela Lei, quando adquirir ou utilizar produto ou serviço como destinatário final, não, assim, quando o faça na condição de empresário de bens e serviços com a finalidade de intermediação ou mesmo como insumos ou matérias-primas para transformação ou aperfeiçoamento com fins lucrativos (com o fim de integrá-los em processo de produção, transformação, comercialização ou prestação a terceiros).("Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor”, Editora Saraiva, 1991, p. 6)

José Geraldo Brito Filomeno leciona no mesmo sentido: “... a inclusão das pessoas jurídicas igualmente como 'consumidores`de produtos e serviços, embora com a ressalva de que assim são entendidas aquelas como destinatárias finais dos produtos e serviços que adquirem, e não como insumos necessários ao desempenho de sua atividade lucrativa” (In “Código Brasileiro de Defesa do Consumidor”, 3ª edição, Editora Forense Universitária, p.27)

Também, Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Alvim, e James Marins propugnam que: “... a pessoa jurídica - empresa - que adquire ou utiliza o produto como destinatária final, não o incorporando em outro, nem revendendo-o, terá a proteção deste Código inclusive para as hipóteses de vício do produto” (“Código do Consumidor Comentado”, 2a edição, Revista dos Tribunais, 1995, p.30)

Da mesma forma, vem se posicionando a jurisprudência mais recente, conforme se segue: “Indenização. Responsabilidade civil. Ajuizamento por pessoa jurídica. Fundamento no Código de Defesa do Consumidor. Inadmissibilidade. Bem adquirido para ser utilizado na sua atividade empresarial. Qualidade de consumidor inexistente. Interpretação do art.2º da Lei Federal nº 8.078, de 1990, Sentença confirmada” (TJSP, 16ª Câmara Cível, AC nº 243.878-2, j. em 11.4.95, rel. Dês. Pereira Calças, v.u., JTJ - Lex 173/96-103).

Há que se destacar, ainda, o entendimento adotado por COSAC BORTOLAI, citado por Stephan Klaus Radloff, in “A inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor”, Editora Forense, 1a edição, 2002, página 39, quanto à impossibilidade da pessoa jurídica irregular e as sociedades de fato terem a proteção do Código de Defesa do Consumidor, visto que o artigo 82 do aludido Diploma “ao se referir aos legitimados concorrentemente para a promoção de ação coletiva, o legislador, no inciso IV, fala em associações legalmente constituídas, ou seja, constituídas na forma da Lei, e não associações de fato, estas não prestigiadas”.

Outro aspecto importante refere-se à necessidade de reconhecimento ou não da hipossuficiência e da vulnerabilidade da pessoa jurídica para enquadrá-la como consumidora.

Impende assinalar que hipossuficiência não se confunde com vulnerabilidade. A hipossuficiência é analisada sob um critério processual, previsto no artigo 6º, inciso VIII, CDC, o qual será apreciado, casuisticamente, pelo Magistrado, se existe disparidade entre os litigantes.

A vulnerabilidade é entendida como ligada ao consumidor, por ser quase sempre vulnerável àquilo que adquire no mercado, haja vista que desconhece as circunstâncias e condições em que os bens e serviços aí são colocados, ou seja, pode-se dizer que é a sujeição ao poder do fornecedor.

Cumpre esclarecer que, em alguns casos, a pessoa jurídica pode ser vulnerável em face do “fornecedor”. No entanto, se o produto ou serviço adquirido tiver afinidade com a atividade da pessoa jurídica, esta não será considerada como consumidora.

Frise-se que é ônus da pessoa jurídica demonstrar que não adquiriu os bens, produtos ou serviços para utilizá-los como insumos, bens de produção ou instrumento de trabalho.

Assim, apesar da questão em tela não ser pacifica, o entendimento mais recente que vem sendo adotado pelos Tribunais, bem como pela doutrina, é no sentido de que apenas excepcionalmente deve-se reconhecer a pessoa jurídica como consumidora, posto que o CDC visa proteger muito mais as pessoas físicas, as quais, em tese, são desiguais no mercado de consumo.

*Advogada do Escritório Siqueira Castro Advogados









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