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O art. 600, § 4º., CPP e as contra-razões do Ministério Público – os princípios do promotor natural

Como se sabe, o art. 600, § 4º. do Código de Processo Penal permite que o apelante manifeste o desejo de arrazoar o recurso interposto na superior instância; oportunidade quase sempre utilizada pela defesa, pois o membro do Ministério Público de 1ª. instância tem o dever funcional de atuar nos feitos de suas respectivas atribuições.

13/9/2004


O art. 600, § 4º., CPP e as contra-razões do Ministério Público – os princípios do promotor natural e da independência funcional

Rômulo De Andrade Moreira*

Como se sabe, o art. 600, § 4º. do Código de Processo Penal permite que o apelante manifeste o desejo de arrazoar o recurso interposto na superior instância; oportunidade quase sempre utilizada pela defesa, pois o membro do Ministério Público de 1ª. instância tem o dever funcional de atuar nos feitos de suas respectivas atribuições. Nesta hipótese, então, pergunta-se a quem caberia o oferecimento das contra-razões ministeriais quando a defesa pleiteasse o oferecimento das razões recursais na 2ª. instância.

A questão, portanto, cinge-se em se saber qual o órgão do Ministério Público com atribuições para o oferecimento das contra-razões: o Promotor de Justiça atuante no processo de origem ou a Procuradoria Geral de Justiça.

Como se disse, efetivamente o nosso Código de Processo Penal permite que o apelante declare no ato de interposição do recurso o desejo de arrazoá-lo perante o Tribunal; nesta hipótese, segundo ainda a lei processual, os autos serão encaminhados imediatamente ao órgão colegiado respectivo onde será aberta vista às partes.

Salvo melhor juízo, e respeitando-se posicionamentos contrários, entendemos que a solução da matéria passa pela observação do princípio do Promotor Natural, a nosso ver, implícito na Constituição Federal, mais especificamente no seu art. 5º., XXXVII e LIII.

Com efeito, obedecendo-se a este princípio, o único Promotor de Justiça com atribuições para oferecer as contra-razões em uma apelação interposta nos autos de uma ação penal pública é, induvidosamente, o Promotor de Justiça que atua perante a respectiva vara criminal, cujas atribuições estão, inclusive, pré-estabelecidas em lei (em sentido material), salvo justo e comprovado impedimento (férias, promoção, remoção, etc). Fora daí é usurpação de atribuições e, mais, mácula ao referido princípio constitucional, ao qual não se pode opor, por exemplo, o argumento da celeridade, agilização, rapidez, etc. Aliás, a propósito, como dizia Carnelutti, “se la giustizia è sicura non è rapida, se è rápida non è sicura”.1

Especificamente sobre tal princípio, veja-se o que escreveu, diríamos até que pioneiramente2, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro:

O princípio do promotor natural pressupõe que cada órgão da instituição tenha, de um lado, as suas atribuições fixadas em lei e, de outro, que o agente, que ocupa legalmente o cargo correspondente ao seu órgão de atuação, seja aquele que irá oficiar no processo correspondente, salvo as exceções previstas em lei(...).”3

Exatamente por isso não seria institucionalmente legítimo que um outro representante ministerial, que não aquele que exercitou ao longo da ação penal o jus accusationis, pudesse contrariar o recurso da defesa, interposto exatamente em um processo penal por aquele já exaustivamente examinado, inclusive e principalmente do ponto de vista probatório.

Desta forma, assim como “o Procurador-Geral não pode subtrair a formulação da opinio delicti do Promotor, a não ser que tenha avocado as suas atribuições ou que se trate de crime da competência originária dos Tribunais4, também lhe é defeso assumir as suas vezes na formulação das contra-razões recursais.

O próprio Supremo Tribunal Federal, reconhecendo-lhe, ainda lhe deu ares de princípio constitucional (os grifos são nossos):

HC 67759 / RJ - Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 06/08/1992. Órgão Julgador: TRIBUNAL PLENO. Publicação:  DJ DATA-01-07-93 PP-13142 EMENT VOL-01710-01 PP- 121. E M E N T A: "HABEAS CORPUS" - MINISTERIO PUBLICO - SUA DESTINACAO CONSTITUCIONAL - PRINCIPIOS INSTITUCIONAIS - A QUESTAO DO PROMOTOR NATURAL EM FACE DA CONSTITUICAO DE 1988 - ALEGADO EXCESSO NO EXERCICIO DO PODER DE DENUNCIAR - INOCORRENCIA - CONSTRANGIMENTO INJUSTO NAO CARACTERIZADO - PEDIDO INDEFERIDO. - O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Publico, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu oficio, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e predeterminados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Publico de modo hegemônico e incontrastável. Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPULVEDA PERTENCE, MARCO AURELIO e CARLOS VELLOSO. Divergência, apenas, quanto a aplicabilidade imediata do principio do Promotor Natural: necessidade da "interpositio legislatoris" para efeito de atuação do principio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPULVEDA PERTENCE, MARCO AURELIO e CARLOS VELLOSO). - Reconhecimento da possibilidade de instituição do principio do Promotor Natural mediante lei (Ministro SYDNEY SANCHES). - Posição de expressa rejeição a existência desse principio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NERI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES.

HC 71429 / SC. Relator: Min. CELSO DE MELLO

Julgamento: 25/10/1994. Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA. Publicação:  DJ DATA-25-08-95 PP-26023 EMENT VOL-01797-02 PP- 387. E M E N T A: HABEAS CORPUS - DELITO DE PECULATO - EX-PREFEITO MUNICIPAL - COMPETENCIA PENAL ORIGINARIA DO TRIBUNAL DE JUSTICA - POSSIBILIDADE DE O JULGAMENTO SER REALIZADO POR ORGAO FRACCIONARIO DESSE TRIBUNAL - OFERECIMENTO DE NOVA DENUNCIA PELO MINISTERIO PUBLICO DE 2. INSTANCIA - OBSERVANCIA DOS PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DA PLENITUDE DE DEFESA E DO CONTRADITORIO - ALEGADA OFENSA AO POSTULADO DO PROMOTOR NATURAL - INOCORRENCIA - PRINCIPIO DA INDIVISIBILIDADE - INAPLICABILIDADE A ACAO PENAL PUBLICA - APTIDAO FORMAL DA DENUNCIA - AUSENCIA DE JUSTA CAUSA - SITUACAO NAO CONFIGURADA - PEDIDO INDEFERIDO. - O ex-Prefeito Municipal dispõe de prerrogativa de foro perante o Tribunal de Justiça do Estado nos delitos que, cometidos ao tempo em que desempenhou a Chefia do Poder Executivo local, não se acham incluídos na esfera de competência jurisdicional da Justiça Federal comum, ou da Justiça Militar da União, ou, ainda, da Justiça Eleitoral. Precedentes do STF. - O novo sistema normativo instaurado pela Constituição Federal de 1988 consagrou, como garantia indisponível dos acusados, o principio do Promotor Natural. Precedente: RTJ 146/794, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno. A escolha de Procurador de Justiça, mediante sorteio, para atuar nos processos penais originários em segunda instancia, decorre de critério objetivo que, precisamente por impedir manipulações casuísticas ou designacoes seletivas efetuadas pela Chefia da Instituição, ajusta-se ao postulado do Promotor Natural, que se revela incompatível com a figura do acusador de exceção. Hipótese em que a denúncia foi oferecida por membro do Ministério Publico de segunda instancia, designado mediante sorteio. - O principio da indivisibilidade, que e peculiar a querela privada, não se aplica a ação penal publica (RTJ 91/477 - RTJ 94/137 - RTJ 95/1389). O Ministério Publico, sob pena de abuso no exercício da prerrogativa extraordinária de acusar, não pode ser constrangido, diante da insuficiência dos elementos probatórios existentes, a denunciar pessoa contra quem não haja qualquer prova segura e idônea de haver cometido determinada infração penal. - Uma vez respeitada a regra de competência constitucional que define o Tribunal de Justiça como juiz natural dos Prefeitos Municipais nas causas de índole penal, nada impede que o Estado-membro - que dispõe da atribuição privativa para legislar sobre organização judiciária local -, venha a prescrever, em lei estadual, que o julgamento das ações penais originarias seja realizado pelo Pleno do Tribunal de Justiça ou por qualquer de seus órgãos fraccionários. A competência penal originaria do Tribunal de Justiça, para processar e julgar Prefeitos Municipais, não se limita e nem se restringe ao Plenário ou, onde houver, ao respectivo Orgao Especial, podendo ser atribuída a qualquer de seus órgãos fraccionários (Câmaras, Turmas, Seções). - A ação de habeas corpus enseja cognição meramente sumária da questão suscitada pelo impetrante do writ constitucional. Não permite exame aprofundado dos fatos. Inocorrendo qualquer divorcio aparente entre a imputação fática contida na peca acusatória e a realidade objetiva emergente do conjunto probatório produzido pela investigação penal, torna-se inviável discutir, na via estreita do habeas corpus, a alegação de ausência de justa causa para a persecutio criminis. Precedentes.

Observamos que até do ponto de vista, digamos, prático, é recomendável que os autos retornem à instância de origem, pois ali está, ao menos em tese, o Promotor de Justiça que certamente atuou durante todo o procedimento, produzindo prova, ouvindo testemunhas, pleiteando diligências, etc., etc. Ademais, interpretando-se literalmente o multicitado artigo da lei processual, atentemos que há uma determinação expressa que o Tribunal ad quem abra “vista às partes”; ora, quem são as partes naquela relação jurídica processual? O acusado e o Ministério Público, representado, in casu, pelo Promotor de Justiça da primeira instância.

A respeito do assunto, revela-nos Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes, que “em São Paulo, segundo o Ato nº. 091/96, de 10 de junho de 1996, da Procuradoria Geral de Justiça, as contra-razões devem ser elaboradas pelo Promotor de Justiça que atua no respectivo processo, fundando-se a orientação na necessidade de observância, no processo penal, do princípio do promotor natural.” (Grifo nosso).5

Para encerrarmos esta questão do Promotor Natural, transcrevemos a lição do Desembargador Federal Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, eminente Magistrado junto ao TRF da 5ª. Região e Doutor em Direito pela PUC/SP:

Por isso, não é o promotor natural uma mera 'especulação metafísica`, como a ele se referiu o douto parecer em comento. É princípio constitucional e tem base legal – como o reconhecem o STF, o STJ e a doutrina majoritária. Não há falar, no mais, em regra 'fixista`, como se o promotor natural implicasse engessar o MP. O juiz natural é admitido por todos, e não engessa o Judiciário. E, ainda uma vez vale insistir: o princípio do promotor natural não é exatamente igual ao do juiz natural. Trata-se de uma construção analógica mudando o que deve ser mudado, em respeito à estrutura própria, às características peculiares e as funções institucionais do parquet.(...) Por fim, não é despiciendo sustentar o valor do princípio do promotor natural na construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, baseado nos postulados mais caros da res publica.6

Por fim, e em reforço à tese ora defendida, referimo-nos, outrossim, a dois princípios basilares da Instituição: a independência e a autonomia funcionais, ambos consagrados no art. 127, §§ 1º. e 2º. da Constituição Federal, advertindo-se, desde logo, que a “autonomia funcional atinge o Ministério Público enquanto instituição, e a cada um dos seus membros, enquanto agentes políticos.”7

A este respeito, já escrevia Bento de Faria que “o Ministério Público, como fiel fiscal da lei, não poderia ficar constrangido a abdicar das suas convicções, quando devidamente justificadas. Do contrário seria um instrumento servil da vontade alheia.”8

Ora, parece-nos que também de certa forma restaria maculada a independência do Promotor de Justiça da primeira instância, caso um outro órgão ministerial, sem atribuições para tal, atuasse em um feito atinente às funções.

O grande Roberto Lyra já afirmava que “nem o Procurador-Geral, investido de ascendência hierárquica, tem o direito de violentar, por qualquer forma, a consciência do Promotor Público, impondo os seus pontos de vista e as suas opiniões, além do terreno técnico ou administrativo.”9

Diante de tudo quanto exposto, entendemos que no caso do art. 600, § 4º. do Código de Processo Penal, devem os autos ser remetidos ao Promotor de Justiça de primeira instância para providenciar a feitura e a juntada das contra-razões.
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1 Apud Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. III, São Paulo: Saraiva, 2003, 25ª. ed., p. 94.

2 Registre-se, também, o trabalho precursor do Professor Sergio Demoro Hamilton, “Reflexos da Falta de Atribuição na Instância Penal”, hoje republicado no seu livro Temas de Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 53.

3 O Ministério Público no Processo Penal e Civil - Promotor Natural, Atribuição e Conflito, Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 53.

4 Afrânio Silva Jardim, Direito Processual Penal - Estudos e Pareceres, Rio de Janeiro, Forense, 1986, p. 94.

5 Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª. ed., 2001, p. 152.

6 Princípio do Promotor Natural, Salvador: Edições Jus Podivm, 2004, p. 58.

7 Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 3ª. ed., 1996, p. 94.

8 Código de Processo Penal, Vol. I, Rio de Janeiro: Record, 2ª. ed., 1960, 120.

9 Teoria e Prática da Promotoria Pública, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2ª. ed., 1989, p. 158.
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* Promotor de Justiça e Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça. Ex-Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS na graduação e na pós-graduação, da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia, da Escola Superior da Magistratura - EMAB e do Curso PODIUM – Preparatório para Concursos. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais - ABPCP. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Autor da obra “Direito Processual Penal”, Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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