País de provas ilícitas
Luís Roberto Barroso*
Em seguida veio a Constituição de 1988 (clique aqui) promulgada no alvoroço da ressaca democrática nacional. A circunstância de ser um texto prolixo e com imperfeições não diminui sua força jurídica nem a desmerece como expressão real e simbólica de um novo tempo. É o Direito, e não o voluntarismo de variadas inspirações (de onde brotam os ditadores messiânicos, os justiceiros implacáveis e outros criminosos), a marca dos Estados civilizados, dos que vivem o primado da razão, em lugar do primitivismo dos instintos.
A Constituição brasileira de 1988 prevê a inviolabilidade da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. A Lei nº 9.292, de 24.7.96, regulamenta o dispositivo constitucional e exige, em todo e qualquer caso de quebra de sigilo, ordem do juiz competente e segredo de justiça. Pois a Constituição não vem sendo cumprida.
Não chega a haver surpresa nisto. A violação da Constituição, somada à vocação nacional para a impunidade, formam um crônico binômio de nossas patologias. Uma das expressões mais drásticas desta parceria maligna traduz-se na falsa ânsia de punir, movida a flashes e refletores, com a qual se buscam elementos incriminadores a qualquer preço. Nascem, assim, os fabricantes de provas ilícitas, obtidas com desrespeito à Constituição e às leis. Por trás desses caricatos vingadores mascarados – ou desmascarados em busca de publicidade – ocultam-se, muitas vezes, oportunistas, desafetos, ressentidos ou, simplesmente, chantagistas.
Os resultados práticos são conhecidos. Diante dos fatos que mobilizam a opinião pública – chocantes, alguns, artificialmente dramatizados, outros – a reação emocional das autoridades, dos interessados e dos interesseiros acena com ritos sumários, prisões exemplares, interdições perenes de direitos. Simultaneamente, divulgam-se gravações clandestinas, informações bancárias protegidas por sigilo, correspondência violada, exemplos flagrantes de provas inequivocamente ilícitas. O final da história é conhecido: o assunto sai do foco da mídia, cai no esquecimento, os processos judiciais são mal instruídos e ninguém é punido. A única pena é o enxovalho inicial – que não é previsto em lei e é inconstitucional. Em seguida, a inércia pontua a trajetória que leva a lugar nenhum.
A repressão à criminalidade é uma necessidade imperativa de qualquer sociedade. Deve ser efetivada com presteza, seriedade e rigor. Mas há limites muitos nítidos. Se alguém confessa um fato sob tortura, não deve o juiz sequer especular se ele é verdadeiro ou não. Se toma conhecimento de um delito mediante interceptação telefônica clandestina, não deve considerá-lo. Qualquer transigência, aqui, é o sacrifício do Direito no altar das circunstâncias.
Uma última reflexão. A imprensa, em toda parte do mundo, de Londres a Kampala, vive da notícia, e não de sua valoração ética. Mas, de novo, também para ela há limite. A Constituição assegura a liberdade de expressão e de informação, mas preserva, igualmente, o direito de privacidade e ao devido processo legal. A divulgação de uma informação obtida por via manifestamente ilícita torna os meios de comunicação coadjuvantes de uma prática criminosa. Parece que ninguém se deu conta disso.
É certo que há enorme demanda pela barbárie, assim como por soluções de rendenção instantânea. Mas é preciso resistir, em nome da civilização. É dessa matéria que se fazem os grandes países.
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*Professor titular de direito constitucional da UERJ. Advogado do escritório Luís Roberto Barroso & Associados
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