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Os ovos da serpente

A recente notícia de que arapongas da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) grampearam ilegalmente diversas autoridades das cúpulas dos três Poderes da República gera enorme perplexidade, exigindo profunda reflexão sobre como pudemos chegar a esse ponto.

2/9/2008


Os ovos da serpente

Diogo Malan*

A recente notícia de que arapongas da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) grampearam ilegalmente diversas autoridades das cúpulas dos três Poderes da República gera enorme perplexidade, exigindo profunda reflexão sobre como pudemos chegar a esse ponto.

Há vetusto provérbio inglês que afirma que para cada problema complexo há uma solução simples – que está errada. Não caiamos no reducionismo simplificador de acreditar que se tratou de episódio isolado, praticado por pequeno grupo de tresloucados agindo de modo independente na ABIN.

Pelo contrário, esse acontecimento é substancialmente mais complexo, constituindo o ponto culminante de longo processo de banalização do sigilo das comunicações telefônicas neste País.

Com efeito, a melhor doutrina jurídica ensina que a interceptação de comunicações telefônicas ostenta natureza jurídica de meio de busca de prova, cuja finalidade, portanto, é tão-só permitir a descoberta e localização de elementos de prova relevantes. O que se vê na prática, entretanto, é a malversação desse instituto, usado como principal, senão único, meio de prova contra o acusado, ante a dificuldade da Polícia Judiciária em usar, de modo eficaz, outros meios de prova na investigação de crimes.

Além disso, tal interceptação é uma medida cautelar que corre em segredo de justiça, a fim de preservar a intimidade e o sigilo das comunicações, não só do próprio investigado como de terceiras pessoas. Na prática, ocorre com freqüência divulgação ilegal dessa medida, que é usada indevidamente para fins simbólicos, notadamente o de fazer propaganda institucional de órgãos públicos.

Do ponto de vista normativo, esse fatídico e recente episódio evidencia a precariedade da atual legislação sobre interceptações telefônicas, a qual permite essa medida extrema na apuração de número desproporcionalmente amplo de crimes (grande parte deles de pequena gravidade) e não prevê mecanismos eficazes de controle sobre a necessidade e fundamentação da medida em apreço.

No aspecto jurisprudencial, o caso demonstra claramente as conseqüências desastrosas da orientação dos nossos tribunais – contrária, diga-se de passagem, ao teor literal da Constituição da República - clique aqui (artigo 136, § 1º, I, c e § 2º) e da legislação ordinária (artigo 5º da Lei 9.296/96 - clique aqui) – que tolera a perpetuação das interceptações telefônicas autorizadas judicialmente muito além do prazo legal máximo.

Institucionalmente, tal escândalo demonstra os efeitos nefastos da ausência de apuração da autoria dos crimes de interceptação telefônica clandestina e de submissão dos responsáveis à persecução penal ou à punição administrativa, seja por incapacidade dos órgãos públicos, falta de vontade política ou influência de interesses corporativos. É espantosa a constatação de que muito provavelmente inexiste qualquer cidadão brasileiro condenado de forma definitiva pelo crime de grampo clandestino (artigo 10 da Lei 9.296/96).

No plano midiático, o fato integra as conseqüências do fenômeno da fetichização do poder punitivo do Estado, que hoje constitui a referência hegemônica do discurso dos meios de comunicação de massa, na lição do Professor Nilo Batista. Reflexo disso é o vazamento proposital e a subseqüente divulgação espetaculosa de trechos de comunicações telefônicas que deveriam estar submetidas a segredo de justiça.

No que tange ao caldo cultural que viceja no País, o caso demonstra, ainda, a existência de uma insensibilidade difusa – espraiada por segmentos expressivos, quiçá majoritários, do Poder Judiciário, do Ministério Público, das Polícias, da imprensa e da sociedade civil – quanto à importância dos direitos fundamentais dos cidadãos (em geral) e dos investigados pela suposta prática de crimes (em particular).

De fato, aparenta prevalecer na sociedade brasileira de hoje a concepção de que os direitos fundamentais, tais como o sigilo de comunicações telefônicas, são subterfúgios cujo propósito é acobertar atos criminosos, a exigir pronto sacrifício no altar da defesa social contra a criminalidade. Tal deformação cultural impede a percepção da importância desses direitos como instrumentos de proteção da cidadania contra o arbítrio, a onipotência e o exercício abusivo do poder estatal.

Oxalá a comprovação que chegamos a um verdadeiro Estado de Polícia, que espiona tudo e todos de forma descontrolada tal qual profetizado por George Orwell, desperte em todos os segmentos da sociedade brasileira um profundo debate acerca das múltiplas causas (doutrinária; normativa; jurisprudencial; institucional; midiática; cultural etc.) do problema, que possa fornecer o senso de perspectiva necessário para solucioná-lo. Antes que seja tarde demais.

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*Doutor em Processo Penal pela USP, Professor da PUC/Rio e Advogado





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