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Os direitos do cliente do advogado devem ser invioláveis?

Em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo de 1/7/2005, o Presidente da OAB/SP, Luiz Flávio Borges D´Urso, repele as invasões a escritórios de advogados baseadas em mandados judiciais de busca e apreensão genéricos, informando que eles seriam ilegais e inconstitucionais, por macularem o Estado Democrático de Direito.

18/8/2008


Os direitos do cliente do advogado devem ser invioláveis?

Tânia Nigri*

Em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo de 1/7/2005, o Presidente da OAB/SP, Luiz Flávio Borges D'Urso, repele as invasões a escritórios de advogados baseadas em mandados judiciais de busca e apreensão genéricos, informando que eles seriam ilegais e inconstitucionais, por macularem o Estado Democrático de Direito.

A inviolabilidade dos escritórios de advocacia, segundo afirma, estaria garantida não só pelo artigo 133 da Constituição Federal (clique aqui), mas também pela Lei nº. 8.906/94 (Estatuto da Advocacia - clique aqui), o que, por si só, impediria a expedição de mandados genéricos, sem a especificação dos objetos a serem buscados e apreendidos. Assim, a prática tem causado enorme transtorno aos advogados, além de expor os dados de clientes, que nenhuma relação guardam com o inquérito, arranhando a credibilidade desses escritórios.

O artigo 7º, inciso II, da Lei nº. 8.906/94, na versão que vigora atualmente, assegura a inviolabilidade do escritório ou local de trabalho do advogado, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, salvo no caso de busca e apreensão determinada por magistrado e acompanhada por representantes da OAB.

O projeto de lei complementar nº 36/06, que busca alterar o inciso II do art. 7º da Lei nº. 8.906, de 1994 torna mais robusta essa inviolabilidade, classificando como instrumento inviolável do advogado "todo e qualquer bem imóvel ou intelectual utilizado no exercício da advocacia, especialmente seus computadores, telefones, arquivos impressos ou digitais, bancos de dados, livros e anotações de qualquer espécie, bem como documentos, objetos e mídias de som ou imagem, recebidos de clientes ou de terceiros".

Presentes os indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade em decisão motivada, expedindo mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB, sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes, o que somente poderá ocorrer na hipótese desses mesmos clientes estarem sendo formalmente investigados, como partícipes ou co-autores do advogado, pela prática do mesmo crime que teria dado causa à quebra da inviolabilidade.

Da leitura da norma, conclui-se que, ao contrário do que se tem afirmado vastamente pelos meios de comunicação, o projeto não "blinda" o advogado criminoso, já que contra ele poderá ser cumprido o mandado de busca e apreensão. O projeto, em realidade, protege o cliente criminoso (desde que não seja partícipe ou co-autor do advogado), não sendo possível, nem mesmo por ordem judicial, acessar seus documentos (quaisquer que sejam), desde que eles estejam albergados no escritório do advogado.

Parte do projeto de lei que se busca seja sancionado pelo Presidente da República, está na contramão do profundo anseio, que viceja neste país, de combate à impunidade, além de dificultar e em alguns casos, inviabilizar por completo a persecução penal.

Não parece difícil concluir, pela leitura do seu texto, que alguns escritórios de advocacia serão vistos como uma espécie de embaixada, onde a lei que se aplica ao cidadão comum ali não poderá entrar, local perfeito para a guarda de todo e qualquer documento comprobatório dos ilícitos perpetrados pela clientela.

Não se questiona aqui a necessidade de se preservar o sigilo profissional do advogado, pedra angular da sua atividade e condição para a confiança plena do cliente. O sigilo profissional é, para o advogado, não só um dever, mas verdadeiro direito, devendo se negar a prestar declarações sempre que daí advenha a violação desse segredo, mas não se pode, sob pena de acolhimento de odioso e temerário privilégio corporativo, estabelecer inviolabilidades não autorizadas pela Constituição Federal.

Não se pretende aqui, sob o argumento de combate ao crime, defender a adoção de práticas ilegais ou inconstitucionais, o que seria absurdo, mas parece claro não ser possível, sob pena de perigosíssima e inadmissível inversão dos valores albergados pelo Estado de Direito, que uma lei complementar pretenda limitar o poder do juiz, impedindo a prática de atos tão inerentes às suas atribuições, como a expedição de mandados de busca e apreensão, quando ocorra a hipótese versada no mencionado projeto de lei.

Se o que preocupa o legislador é a salvaguarda do sigilo profissional, parece óbvio que tal "prerrogativa" deveria ser expressamente prevista em outras normas àqueles que lidam com médicos, psicólogos, jornalistas, psiquiatras, padres, etc...

Parece absurdo que o projeto de lei considere inviolável o escritório do advogado, mesmo quando nele haja indícios de ocultação de instrumentos de crime cometido por cliente. Acaso prevaleça tal entendimento, a sociedade terá que se conformar com a impossibilidade de ordem judicial determinar, por exemplo, a busca e apreensão de fotografias de crianças sendo vítimas de pedofilia, quando elas estiverem sob o "manto protetor" do escritório do advogado do suspeito.

O estabelecimento de restrições à expedição de mandados judiciais de busca e apreensão, sem previsão do artigo 5º, inciso XI da Lei Maior, torna parte do mencionado projeto de lei irremediavelmente inconstitucional, o que, caso não seja assim considerado, tornaria os escritórios de advocacia mais intocáveis do que a casa do cidadão, já que ela é inviolável, mas lá se pode ingressar para o cumprimento de decisão judicial.

O Código de Processo Penal (clique aqui), de forma bastante lúcida e criteriosa, já dispõe acerca da impossibilidade de apreensão de documentos do cliente em poder do defensor do investigado, salvo quando eles constituam elemento do corpo de delito (art. 243, § 2.), ponderando, de forma satisfatória, o dever de sigilo profissional e a desejada efetividade da persecução penal.

Não parece lógico que grandes nomes da advocacia brasileira defendam, de forma tão contundente e reiterada, a sanção integral do projeto que aqui se discute. Resta evidente que ele não pode merecer sanção total, o que, caso ocorra, criará hipótese não prevista no artigo 5º, inciso XI da Lei Maior, fulminando irremediavelmente parte da norma, que deverá ser declarada inconstitucional, sob pena de ser cometido o intolerável equívoco de interpretação da Constituição, fonte primária, a partir de normas infraconstitucionais, o que não se pode admitir sem gravíssima mácula ao Estado Democrático de Direito.

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*Advogada, formada pela UERJ, especializada em Direito de Empresas pela PUC/RJ e mestre <_st13a_personname w:st="on" productid="em Direito Econômico">em Direito Econômico pela UGF/RJ




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