O juiz, o consumo de bebida alcoólica e os crimes de trânsito
Jayme Walmer de Freitas*
1. Introdução
Cremos piamente que o juiz criminal pode ser um instrumento valioso na educação, na orientação, na advertência e na punição de nossos motoristas irresponsáveis. Isto porque, conquanto distante da nuança dos fatos, durante a fase pré-processual, tem a faculdade (senão o dever) de estudar os casos sob sua presidência e avaliar a extensão dos danos sofridos pela(s) vítima(s) e sentir quem é o autor do fato e quais as circunstâncias que permearam o evento danoso. Exemplo rotineiro de motoristas irresponsáveis pode ser tirado de indiciados em três ou quatro inquéritos simultâneos por embriaguez ao volante cumulada ou não com falta de habilitação.
Esta simples consulta, pode propiciar resultados de relevância ímpar, mormente quando se constata, meses ou anos depois, que aquela pessoa com incontáveis passagens por delitos de menor potencial ofensivo foi o causador de crime de trânsito grave.
Peço que os colegas interpretem este alerta como um apelo em prol de toda a comunidade. O juiz criminal tem poucos, talvez ínfimos meios para alcançar sucesso em sua ação. Mas se com uma conduta ponderada, cautelosa e finalista – lembre-se de Welzel –, em relação aos casos mais agudos puder evitar uma morte ou mitigar lesões graves ou gravíssimas de uma única pessoa, valeu a pena sua atenção.
A bebida alcoólica é a causa maior do péssimo desempenho dos motoristas nas vias terrestres brasileiras. Os acidentes – com resultado morte ou lesão grave – representam o efeito da inconseqüência manifesta.
2. O consumo de bebida alcoólica no Brasil
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea –, órgão vinculado à Secretaria de Planejamento do Governo Federal, calcula-se que 40 pessoas morrem todos os dias nas rodovias nacionais. Esta avaliação feita dez anos após a entrada em vigor do CTB tem como fundamento dados do Denatran e das Polícias Rodoviárias Federais.
Não é só. Dados da Agência FAPESP, de 3/9/2007, levando em conta todas as rodovias nacionais, 35 mil pessoas morrem nas estradas todos os anos, com ênfase para os finais de semana e feriados. Esta estimativa coloca o Brasil entre os países com a maior taxa de mortalidade no trânsito no mundo.
Um estudo realizado por equipe do Programa Acadêmico sobre Álcool e outras Drogas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com vítimas fatais de acidentes de trânsito, mostrou que o álcool estava presente em cerca de 75% dos casos e que, embora o Código de Trânsito Brasileiro estipule o índice de 0,6g como limite máximo permitido de concentração de álcool por litro de sangue para caracterizar infração, número significativo das vítimas apresentava índices muito inferiores.
O estudo avaliou os testes de alcoolemia realizados por legistas do IML em 94 mortos em acidentes e detectou que apenas 11 (11,77%) não haviam ingerido bebidas alcoólicas. Nas 83 vítimas restantes (equivalente a 88,3% do total), foi detectada a presença de álcool no sangue. Desses testes positivos, em 60,2% dos casos os envolvidos apresentavam nível de álcool por litro de sangue superior a 0,6g.
Curiosamente, 38,3% dos mortos estavam no nível permitido, com índices entre 0,1 g/l a 0,59 g/l de álcool no sangue, o que sugere que o limite preconizado pelo CTB poderia ser reduzido. Na França, campanhas estão sendo feitas para reduzir de 0,5g para 0,2g o nível limite de álcool por litro de sangue do motorista. Na Suécia, o índice máximo é de 0,2g e no Japão é de 0,0, isto é, tolerância zero.
Por certo, a proibição de venda de bebidas alcoólicas nas rodovias é providência fora de dúvida e fator altamente benéfico na luta contra tantas mortes.
Em 21 de janeiro de 2008, o Governo Federal baixou a Medida Provisória nº. 415 (clique aqui) que proíbe a comercialização de bebidas alcoólicas em rodovias federais, segundo a qual fica vedado, na faixa de domínio de rodovia federal ou em local contíguo à faixa de domínio com acesso direto a rodovia, a venda varejista e o oferecimento para consumo de bebidas alcoólicas. O descumprimento da norma implicará multa de R$ 1.500 ao comerciante. Em caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro e suspensa a autorização para acesso a rodovia pelo prazo de dois anos. Não é só. O estabelecimento comercial situado na faixa de domínio de rodovia federal ou em local contíguo à faixa de domínio com acesso direto a rodovia que inclua entre sua atividade a venda ou o fornecimento de bebidas ou alimentos deverá fixar, em local de ampla visibilidade, aviso da vedação de venda de bebidas alcoólicas, sob pena de multa de R$ 300.
A fiscalização ficará a cargo da Polícia Rodoviária Federal.
Ao lado da luta contra a venda de bebidas alcoólicas por bares e restaurantes na beira das estradas, o ministro José Gomes Temporão, que tem no combate ao álcool uma das suas principais bandeiras, igualmente buscava restringir a publicidade da cerveja na televisão. Todavia, como se sabe perdeu, ao menos por ora e parcialmente, as duas batalhas.
Informa Roberto Pompeu de Toledo em seu ensaio "Desceu quadrado" que o projeto de restrição da publicidade da cerveja na televisão enviado em regime de urgência ao Congresso Nacional, por acordo de lideranças, perdeu a urgência e foi remetido para "as calendas gregas". Mais, que quanto à tentativa de proibir a venda de bebidas em bares e cervejas à beira das estradas, o Congresso abriu uma exceção para bares e restaurantes situados em áreas urbanas1.
Quem tem bom senso sabe que o ministro deve prosseguir em sua luta ainda que contra os lobbys de fabricantes, agências de publicidade e emissoras de televisão.
Em outra ponta, São Paulo e Paraná possuem leis impondo a proibição integral.
Interessante que embora a lei vede nestes estados a comercialização de bebidas alcoólicas, a fiscalização não se tem mostrado efetiva, uma vez que os acidentes fatais, repetem-se de maneira assustadora, o que exige, por certo, ajustes nas medidas de fiscalização. De todo modo, a existência do diploma legal é uma relevante conquista na luta contra o álcool no trânsito.
3. O juiz e os dias atuais
Sempre foi tema de reflexão entre os operadores do Direito a ética, a moral, a transparência e o descortino de parte dos magistrados. Homem de seu tempo, o juiz enfrenta diuturnamente desafios incessantes, dentre eles, a mutação constante das leis e a evolução dos costumes.
José Renato Nalini ao abordar o tema da constante integração do magistrado em processos de atualização expressa que "O juiz que não estuda é realidade inexistente no mundo fenomênico. O sentenciar é ato que pressupõe o processo formador do convencimento e este é antecedido pelo estudo. Lendo continuamente, colhendo subsídios nos trabalhos intelectuais dos patrocinadores das partes, dos membros do Ministério Público, na doutrina e jurisprudência, nem sempre possui o magistrado condições de um estudo sistemático e desvinculado com a urgência do caso concreto".2
Em outras palavras, para enfrentar a crescente produção legislativa federal em todos os ramos do Direito, há de ser esmerado acima de tudo, independente de ser especialista, mestre ou doutor. O estudo sistemático permite que se mantenha atualizado e apto a equacionar as controvérsias instauradas sob sua presidência.
O juiz há de ter percepção clara de seu papel na comunidade. Ainda que a carga de trabalho seja de causar estresse sem precedentes, seu papel no Estado Democrático de Direito, consagrado pela Carta Política, é o de distribuir a justiça, jamais abrindo mão de sua convicção em favor de interesses econômicos, políticos e mundanos. Aliás, se pensar assim, que não seja juiz.
O magistrado precisa ser devotado à solução de litígios. Exerce um sacerdócio. Sem vocação, a frustração será inexorável. Neste sacerdócio, clama-se pela adoção da postura de agente conscientizador, atuando de modo efetivo e incessante para, analisando caso a caso, impeça ou auxilie na redução das estatísticas dos condutores que, sob a influência do álcool, continuam desrespeitando a vida alheia.
4. O papel do magistrado na medida cautelar de suspensão de permissão ou de CNH (CTB, art. 294)
Isto posto, sugerimos que, durante a fase administrativa, o magistrado procure maior contato com os autos – até indique um funcionário de sua confiança para tal mister – e, estando presentes os requisitos cautelares do fumus boni juris e do periculum in mora, providencialmente determine a suspensão da permissão ou da CNH do motorista irresponsável.
Valendo-se da medida cautelar preconizada no art. 294 do CTB, segundo a qual:
"Em qualquer fase da investigação ou da ação penal, havendo necessidade para a garantia da ordem pública, poderá o juiz, como medida cautelar, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público ou ainda mediante representação da autoridade policial, decretar, em decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção", o juiz criminal passa a exigir do motorista infrator cautela redobrada em seus desmandos, evitando sua reincidência em outros crimes de trânsito.
Nesta senda, a medida cautelar tende a funcionar como instrumento valioso não somente para a aplicação do direito ao caso sub judice, mas e principalmente prevenindo outros crimes.
Estou convencido que os juízes criminais podem se tornar uma gota efetiva e realizadora no oceano da luta contra o excesso de bebida alcoólica e, porque não incluir as drogas, no trânsito. Em seu cotidiano, os inquéritos e processos dão conta de uma série infindável de pessoas que incidem e reincidem em crimes do gênero.
Como é cediço, o eventual excesso pode ser contrastado pela parte mostrando seu inconformismo através do recurso pertinente. Recorde-se que o art. 294, em seu parágrafo único, preconiza que:
"Da decisão que decretar a suspensão ou a medida cautelar, ou da que indeferir o requerimento do Ministério Público, caberá recurso em sentido estrito, sem efeito suspensivo".
O magistrado deve ponderar que pode colaborar com a redução das estatísticas das mortes ou lesões corporais de todas as naturezas.
A faculdade de agir com efetividade em prol da comunidade – ao aplicar a medida cautelar em questão – adquire caráter de prevenção específica, contudo preocupar-se-ão os demais condutores que dela tomarem ciência – passando a funcionar como medida de prevenção geral – beneficiando a sociedade como um todo.
5. Conclusão
As autoridades policiais e os integrantes do MP. Malgrado essa sugestão tenha como destinatário maior o juiz criminal, peço vênia que as autoridades policiais e os membros do Ministério Público também se debrucem sobre os autos em crimes de trânsito que, certamente, toda a comunidade brasileira agradecerá.
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1 Toledo, Roberto Pompeu de. Desceu quadrado. São Paulo: Editora Abril, Revista Veja n. 2060, 14 de maio de 2008, pág. 154.
2 Nalini, José Renato. O Juiz e o acesso à Justiça. São Paulo: RT, 1994, pág. 59.
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*Juiz criminal, mestre <_st13a_personname productid="em Processo Penal" w:st="on">em Processo Penal pela PUC/SP, professor de Penal Especial e Processo Penal e professor de Leis Especiais na Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes
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