Anencefalia e um novo STF
Luís Roberto Barroso*
Fetos anencefálicos são aqueles que não possuem os hemisférios cerebrais e, conseqüentemente, sem nenhuma viabilidade de vida extra-uterina. Esse quadro é irreversível, sendo normalmente detectado nos três primeiros meses de gravidez. A posição do STF, que tem caráter liminar e ainda depende de ratificação, é a de que a antecipação terapêutica do parto nessas situações não constitui crime de aborto, à vista da ausência de potencialidade de vida do nascituro.
Embora tal entendimento se afigure natural e óbvio, ele enfrenta a resistência respeitável de instâncias religiosas de grande representatividade, que acorreram ao debate plural e democrático. É certo, no entanto, que em um Estado laico, a interpretação da Constituição e das leis não pode subordinar-se aos dogmas da fé.
A dignidade da pessoa humana foi alçada ao centro dos sistemas jurídicos contemporâneos. A Constituição de 1988 se integra ao movimento doutrinário pós-positivista, caracterizado pela reaproximação entre o direito e a ética, pelo resgate dos valores civilizatórios e pela primazia dos direitos fundamentais. Pois bem: obrigar uma mulher a conservar no ventre, por longos meses, o filho que não poderá ter impõe a ela sofrimento inútil e cruel. Adiar o parto, que não será uma celebração da vida, mas um ritual de morte, viola a integridade física e psicológica da gestante, em situação análoga à da tortura.
O meio utilizado pela CNTS para levar a matéria ao STF foi uma ação constitucional relativamente nova e pouco explorada: a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Por esse instrumento, havendo violação de determinados princípios ou direitos constitucionais de especial significação, causada por ato do poder público, é possível alçar a discussão do tema diretamente à Corte Suprema, desde que preenchidos determinados requisitos. O mais sutil deles é a inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão causada. O STF tem tido uma posição de cautela na admissão dessa nova ação, por motivo compreensível: já não há mais condições de aumentar a carga de processos que chegam ao tribunal. Abre-se aqui espaço para uma última reflexão.
Em meio a suas múltiplas virtudes simbólicas e reais, inclusive a de dar um papel de destaque ao Judiciário, a Constituição de 1988 criou, por outro lado, uma imensa dificuldade operacional para o STF. De fato, congestionou a mais alta corte com um elenco inadministrável de competências, impondo-lhe o exame de dezenas de milhares de processos por ano, banalizando a jurisdição constitucional no varejo das miudezas. Em toda parte do mundo, cortes constitucionais apreciam algumas centenas de processos anualmente. Pronunciam-se acerca de poucas questões, apenas as verdadeiramente importantes, para que sejam ouvidas e para que o cidadão comum possa ter seu interesse despertado e acompanhá-las.
O drama dos fetos anencefálicos teve o melhor final possível, materializado na decisão aqui comentada. Foi a vitória redentora de um grupo de pessoas e organizações que trouxeram o problema para a luz do dia e investiram sua melhor energia para diminuir o sofrimento vão de milhares de mulheres. Mas a visibilidade, transcendência e repercussão desse debate podem ter representado muito mais: uma virada decisiva no próprio papel do Supremo Tribunal Federal no Brasil. É preciso transformá-lo com urgência em um tribunal de grandes causas — não as financeiras, mas as que definem os rumos da cidadania, da sociedade e dos direitos fundamentais. Também aqui, estamos atrasados e há pressa.
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* Advogado do escritório Luís Roberto Barroso & Associados