Acidente de trabalho protegendo a imprudência
Márcia Novaes Guedes*
Em apenas dois setores da economia foram registrados mais de 28 mil acidentes no trabalho em um único ano! Mas, segundo os dados do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, foram cerca de 1,3 milhão de acidentes de trabalho registrados em 2006 no Brasil, e no mundo, o total chega a 270 milhões de casos, com um total de 2 milhões de mortes por ano. Em cinco anos de guerra no Iraque os E.U.A mataram 1 milhão de civis.
Apesar de matar mais do que guerra, muitas empresas preferem calar à enfrentar as causas que provocam os acidentes no trabalho. Acidentes maculam a imagem ética, de preservação do meio ambiente e respeito à vida, que muitas empresas propagam, sem possuir a "mercadoria". Acidente implica em responsabilidade, danos materiais e morais, e mexe com a parte mais sensível do corpo das empresas, o caixa.
A constatação da Previdência Social era previsível. Na Vara do Trabalho de Guanambi 90% das reclamações trabalhistas de cortadores de cana-de-açúcar das usinas de São Paulo são pedidos de indenizações por danos materiais e morais em virtude de acidentes.
Jovens saudáveis com menos de 30 anos de idade são arregimentados no sudoeste da Bahia e levados para as usinas. Quando retornam, na maioria das vezes, estão mutilados, sem dedos, mãos e parte dos pés. Os acidentes se multiplicam devido a desnutrição e a fadiga de jornadas exaustivas, de vez que o salário está atrelado à produção. Sabemos que hoje um cortador de cana produz 20% a mais do que 30 anos atrás. Para ser produtivo o homem deve trabalhar no ritmo da máquina colheitadeira.
Um estudo da Professora/doutora Maria Aparecida de Morais Silva para a revista NERA _ Núcleo de Estudos e Pesquisas para a Reforma Agrária (2006), relaciona o sofrimento e a morte dos canavieiros ao processo global de racionalização econômica. A universalização da intensificação da exploração e a flexibilização das relações de trabalho submetem os trabalhadores a situações de degradação tal que produz outras formas de sofrimento, até então insuspeitas __ afirma a pesquisadora. Assim, se o karoshi mata os trabalhadores da indústria automobilística no Japão, a birôla mata os canavieiros de exaustão, por overdose de trabalho, nas usinas do sudeste do Brasil!
Karoshi, segundo apurou a pesquisadora, é uma patologia do trabalho que resulta da tolerância pelo trabalhador de práticas psicologicamente nocivas e acúmulo de fadiga crônica do corpo, derivada do excesso de trabalho, que termina com o esgotamento e a morte. Para a doutora Maria Aparecida, Karoshi e birôla são termos equivalentes para designar a patologia de uma nova doença relacionada com a produção e o trabalho.
Mas cuidado, a ociosidade constrangedora num ambiente absolutamente asséptico também pode adoecer e matar, e prova disso é o assédio moral.
As gravíssimas condições de trabalho dos cortadores de cana e as contínuas denúncias de morte no local de trabalho estão sob investigação das Organizações das Nações Unidas - ONU. Mas no fórum pode estar sendo gestada uma tese infeliz e de graves conseqüências para os trabalhadores.
Não raro tenho me deparado com sentenças judiciais que reconhecem a culpa dos operários nos acidentes de trabalho. Sorrateiramente se está tentando construir uma jurisprudência __ conjunto de decisões judiciais __ a favor da racionalização econômica, premiando a negligência, o descaso do empregador e punindo o trabalhador vítima de acidente.
A invenção não é tupiniquim, apareceu inicialmente na Espanha e foi veementemente rechaçada pelo Juiz Ramón Saez Valcarcel de Los Juzgados Penales de Madrid, que numa peça exemplar se pergunta: Por Acaso os Trabalhadores se Suicidam no Trabalho?
Diante das estatísticas estarrecedoras (14 mil acidentes em um ano!) e de tudo o que se sabe acerca das condições de trabalho no corte da cana, atribuir a culpa do acidente ao canavieiro é o mesmo que admitir que os trabalhadores estejam propositadamente se suicidando no trabalho. E o que é pior, aceitar essa tese significa contrariar todos os ensinamentos oriundos das normas de prevenção de acidentes no trabalho.
A hermenêutica, quer dizer, o sentido que atribuímos às normas de segurança no trabalho, diz que a alienação do trabalho, fruto da rotina, do automatismo, da monotonia e repetitividade dos gestos, acaba fazendo com que o trabalhador relativize e desconsidere o risco. Daí porque é necessário redobrar o dever objetivo de vigilância do empregador, prepostos e encarregados para prever e neutralizar essas situações.
É dever do empregador se antecipar às possíveis negligencias do trabalhador, às suas omissões ordinárias e aos erros a que está sujeito incorrer, dada sua habitualidade com o risco. O zelo que o trabalhador emprega na realização das tarefas cotidianas faz com que se esqueça de si mesmo e descuide da própria segurança; por isso mesmo deve estar protegido para evitar o acidente.
A Constituição Brasileira (clique aqui) elegeu a dignidade humana como paradigma do direito. Portanto, saúde, segurança e qualidade de vida são direitos fundamentais do trabalhador. A CLT atribui ao empregador a responsabilidade de proteger o empregado física, psíquica e moralmente, porque a ele, empregador, cabe os riscos do empreendimento.
Canavieiro é, sem dúvida, a espécie animal mais ameaçado de extinção do planeta. Profissionalmente é uma categoria fadada ao desaparecimento em breve com a proibição das queimadas e a mecanização da lavoura. Recomendável a adoção de medidas oficiais de preservação da pessoa humana, criando-se um piso salarial decente e uma aposentadoria especial com os rotundos lucros que o setor vem amealhando.
Aos que pensam ir ao fórum advogar a tese da culpa dos trabalhadores nos acidentes de trabalho é bom lembrar que foi a separação entre direito e ética que resultou no positivismo "ad hitlerum" e se cometeram as piores atrocidades contra a raça humana. O ato de julgar continua invocando a preocupação em realizar justiça; toda sentença deve guardar a pretensão de ser uma sentença justa e, portanto, ética.
________________
*Juíza Federal do Trabalho de Guanambi/BA
_______________