Investigações criminais pelo Ministério Público
Silvio Teixeira Moreira*
1. Registre-se, de início, que o presente texto é resumo de trabalho apresentado na reunião de 16 de julho de 2004 do MMFD, o qual foi por este aprovado como sua posição oficial, na discussão que estudiosos e entidades vêm travando sobre o tema.
Tratava-se de ordem impetrada, diante do fato inusitado de as ações do paciente estarem sendo investigadas, no âmbito criminal, pela Polícia Civil, pela Polícia Militar e pelo Ministério Público.
Entendeu a Câmara que o procedimento, em realização pelo Ministério Público, feria dispositivos constitucionais e ordenou ao Senhor Procurador Geral que determinasse sua imediata interrupção.
Esta a ementa do respectivo acórdão, publicado no D.O.RJ de 18/9/96:
“A ação de habeas corpus controla não somente o direito à liberdade, senão também a validez do procedimento de que possa resultar a restrição a esse direito.
A Função de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares, são privativas das polícias civis.
Ao Ministério Público cabe o monopólio da ação penal pública, mas sua atribuição não passa do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar.
Somente quando se cuidar de inquéritos civis é que a função do Ministério Público abrange também a instauração deles e de outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes, aqui incluídas as diligências investigatórias.”
No corpo do voto, argumentava-se:
"Das informações do Exmo. Sr. Dr. Procurador Geral da Justiça (fls. 104/105), realçadas pelas também prestadas pelo Exmo. Sr. Secretário de Estado da Segurança Pública (fls. 136/140), verifica-se que o Ministério Público, no seu âmbito, fez instaurar procedimento investigatório, que seria previsto no art. 26, inciso I, da Lei nº 8.625/93".
"...Mas, da análise combinada dos arts. 127 e segts. E 144, § 4º, da Constituição Federal, bem como do art. 26 da Lei nº 8.625/93, tem-se a nítida impressão de que o Ministério Público está avançando além dos limites que a Constituição e a lei lhe impuseram.
E, se assim for – e parece a este Relator que está sendo – o princípio do devido processo legal sofre arranhão inconcebível.
O art. 127 da CF cuida do Ministério Público, sendo que do artigo 129, em nenhum de seus incisos e parágrafos, consta a função de investigação policial ou de polícia judiciária, que é exclusiva da Polícia Civil, como se vê do art. 144, § 4º."
"...Vê-se – é o que parece – que as funções do Ministério Público, em termos de diligências investigatórias ou de inquérito policial, devem limitar-se à sua requisição, não podendo ele passar da condição de seu acompanhante."
"...A função de polícia judiciária não condiz com a titularidade da ação penal pública, que o MP bem e ciosamente resguarda".
"O Ministério Público só pode, no seu âmbito, promover inspeções e diligências investigatórias, se destinadas à formação de inquéritos civis e outras medidas procedimentais pertinentes (grife-se: pertinentes ao inquérito civil).
As diligências investigatórias, destinadas ao inquérito policial, refogem ao âmbito de atuação interna do Ministério Público, exatamente porque devem ficar afetas a quem tenha a titularidade de instaurar esse tipo de procedimento, isto é, a polícia civil."
"...É necessário que as funções fiquem bem delimitadas. Cada Poder, cada órgão ou membro de Poder com suas atribuições e competências bem definidas, sob pena de se descumprir a regra, também constitucional, do devido processo legal".
"Quando se define, estabelecem-se limites. Não deve haver funções ou atribuições superpostas. Se as há, ou serão conflitantes (devido processo legal ferido), ou serão desnecessárias (economia processual desprezada, com desgaste da máquina estatal).
Por essas razões, concede-se parcialmente a ordem, tão somente para determinar ao Exmo. Sr. Dr. Procurador Geral da Justiça que se limite o Ministério Público a requisitar o inquérito policial, fazendo-o acompanhar, caso queira, por seu órgão de atuação respectivo, abstendo-se, contudo, de praticar atos que se insiram entre os de atribuição da Polícia Judiciária, tais como ouvir reservadamente testemunhas, vítima, ofendido, suspeito ou indiciado. Para tanto, deverá o Ministério Público encaminhar à Polícia Judiciária documentação que eventualmente ainda se encontre em seu poder e que repute do interesse da investigação policial."
2. Os princípios constitucionais
Por aí se pode verificar que estão em jogo diversos princípios constitucionais.
Nunca é demais afirmar que "aos princípios cabe, além de mera ação imediata, quando diretamente aplicáveis a determinada relação jurídica, uma outra, de natureza mediata, que é a de funcionar como critério de interpretação e integração do texto constitucional", na lembrança de Luís Roberto Barroso, em Interpretação e Aplicação da Constituição”, Saraiva, 1996, p.142). E, ainda, que “a topografia reservada pelo constituinte aos direitos fundamentais, sua enunciação casuística e a cláusula aberta a permitir inclusão nesse elenco de quaisquer outros significa serem eles hoje, no Brasil, verdadeiros critérios morais para qualquer detentor de poder” (Renato Nalini, em Ética Geral e Profissional, RT, 1997, p. 64). São eles, pois, “a síntese dos valores mais relevantes da ordem jurídica”, na segura lição de Luís Roberto Barroso (op. cit., p. 142).
Desde que se instaurou o primado da norma constitucional, a começar pela Magna Charta, estabeleceu-se que a Constituição existe, não para cercear ou limitar a atividade do indivíduo, mas, para definir e, pois, limitar a autoridade do agente público.
O processo penal é o instrumento por meio do qual se tutela a liberdade jurídica do réu, antes mesmo de se apresentar como via adequada à aplicação da pena.
Ou, na lembrança de Adauto Suannes, “só mui impropriamente se pode afirmar, como se lê entre nós, que no processo criminal incumbe ao juiz moderno a busca da verdade real. O órgão estatal encarregado disso, em nosso sistema processual, não é o juiz, mas o Ministério Público, consoante se lê na Constituição Federal e na Lei Orgânica da instituição. Se, de fato, não se compreende que do juiz moderno se espere seja ele alguém indiferente ao que se passa à sua frente, assegurar aos litigantes tratamento tão igual quanto possível é o mínimo que se espera de alguém absolutamente desinteressado pelo resultado da demanda” (Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal, RT, 1999, p; 132).
Dentro desta visão, ética e de respeito aos direitos fundamentais do homem, é que se concebe falar-se em devido processo legal.
A exigência ética do devido processo legal completa-se com a indispensabilidade do contraditório, esteio da ampla defesa, inconciliável com toda e qualquer prova ilícita.
Daí, afigurar-se impensável a obtenção secreta da prova e fora de qualquer controle, ferindo-se a garantia constitucional do direito à prova, com todos os seus desdobramentos.
Não é, pois, sem propósito que a Constituição Federal é categórica em afirmar que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (art. 5°, LVI).
“Ao prescrever a sua inadmissibilidade processual, a Constituição considera a prova materialmente ilícita também processualmente ilegítima, estabelecendo, assim, a ponte entre a ilicitude material e a sanção processual da inadmissibilidade”, como lembra, com muita felicidade, Luiz Francisco Torquato Avólio, (Provas Ilícitas, RT, 1999, p.86).
Não se mostra, pois, razoável permitir que o Ministério Público, ao qual o legislador constituinte não atribuiu o poder de investigação criminal, possa realizá-la, quando tal função é deferida expressamente à polícia judiciária. A menos que se consagrem a balbúrdia e o desperdício como instrumento e meta da atuação do poder público.
Em matéria de interpretação da lei, ainda deve prevalecer o princípio de que aquilo que não foi expressamente contemplado foi deliberadamente excluído, até mesmo como visão para o futuro, no resguardo do direito do mais fraco.
Neste caso, mais que nunca, deverá prevalecer a interpretação conforme a Constituição, instituidora que é de nova ordem jurídica, a exigir “uma visão prospectiva do direito, criativa, democrática e interdisciplinar”, como ressalta Rubens R. R. Casara, Juiz e também fundador do MMFD (Interpretação Retrospectiva, Constituição e Processo Penal, in Revista da EMERJ, vol. 6, n° 22, p. 192/222), em contraposição à retrospectiva, quase sempre instrumento do conservadorismo e da manutenção do status quo, como por ele lembrado. Nova ordem jurídica que manteve e reforçou os pilares da proteção aos direitos fundamentais do homem, notadamente os que se relacionam com a dignidade da pessoa humana, sua vida e sua liberdade: o princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, com todos os seus consectários.
3. Decisões dos Tribunais
Registra-se, quase de passagem, que a posição aqui preconizada, garantista e de resguardo e obediência ao princípio do devido processo legal, tem-se mostrado majoritária nos Tribunais.
No mesmo sentido vem-se decidindo no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, como ocorreu na Seção Criminal, no julgamento do HC n° 2458/2000, em 27/9/2000, sendo relator o Des. Eduardo Mayr (DOERJ de 1/8/2001).
Bastante sintomático, emblemático mesmo, o voto do Ministro Nelson Jobim, no julgamento do RHC n° 81326-DF, pelo qual se verifica que o Poder Constituinte rejeitou e vem reiteradamente rejeitando propostas legislativas de inclusão de poderes investigatórios criminais nas funções institucionais do Ministério Público.
Ao longo de seu voto, em que historia a discussão da controvérsia, lembra o atual Presidente do Supremo Tribunal Federal que a solução adotada, quer pelo legislador, quer pelo excelso Pretório, é no sentido de que a investigação criminal não se insere nas atribuições institucionais do Ministério Público.
Por economia de espaço não se transcrevem trechos, Mas se remete o leitor ao Informativo nº 314 do STF, que publicou a íntegra do voto.
Lembra o Ministro Jobim seu voto vencedor no RE 233.072, resumido na seguinte ementa:
“O Ministério Público (1) não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos; (2) nem competência para produzir inquérito penal sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos; (3) pode propor ação penal sem o inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Recurso não conhecido.
Conclui o eminente Ministro Jobim o já citado voto (HC nº 81.326-DF):
“A Constituição Federal dotou o MINISTÉRIO PÚBLICO do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, inciso VIII). A norma constitucional não contemplou, porém, a possibilidade do mesmo realizar e presidir inquérito penal. Nem a Resolução 32/97. Não cabe, portanto, aos seus membros, inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime, mas requisitar diligências à autoridade policial.”
4. Posição do CDDPH
Em sessão realizada em l8/2/2004, o CDDPH – Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – aprovou parecer do Professor Luís Roberto Barroso, que concluía:
“Desse modo, e de lege ferenda, é de todo conveniente disciplinar, por meio de ato legislativo próprio, as hipóteses e a forma em que será legítima essa atuação eventual e excepcional do Ministério Público”.
Segundo nota constante do parecer já referido, o CDDPH acrescentou uma série de hipóteses que se classificariam como excepcionais e legitimadoras da atuação do M. Público.
Deixando de lado qualquer comentário quanto à abrangência das exceções aventadas, bem como da preocupação do CDDPH em relação a possíveis reflexos externos de violações internas, notoriamente não combatidas pelo Estado, ou só combatidas em textos legais (“que importa mais um?”), ressaltamos que o parecer não pôde fugir de algumas conclusões inevitáveis:
1) Estar fora de dúvida que o modelo instituído pela Constituição de 1988 não reservou ao Ministério Público o Papel de protagonista da investigação penal. 2) Não parecer adequado reconhecer como natural o desempenho dessa atribuição específica pelo Ministério Público, com fundamento em normas constitucionais que dela não tratam; 3) À luz da teoria democrática e considerando jamais ter havido deliberação constituinte ou legislativa em favor do desempenho de competência investigatória criminal pelo Ministério Público, não se afigura legítimo inovar nessa matéria por via de interpretação extensiva, pois se estaria subtraindo o tema da discussão política.
Inegável, pois, que, atualmente, no campo constitucional ou das leis infraconstitucionais, a investigação criminal pelo Ministério Público soa, no mínimo, não edificante, pois o desvio parte de quem deveria velar pelo fiel cumprimento de toda e qualquer lei.
5. Posição do MMFD
O MMFD – Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia, até mesmo por sua verticalidade de princípios, jamais poderia esquivar-se ao debate, mas o quer numa visão aberta, criativa e interdisciplinar, ciente o povo.
Mas, enquanto não se estabelece discussão democraticamente legítima, o MMFD proclama o seu dever de pugnar por interpretações conforme a Constituição vigente, inclusive o de opor suas reservas quanto à constitucionalidade de atos normativos internos, no âmbito do Ministério Público ou de qualquer braço do poder estatal, que se arvorem em substitutivos do poder constituinte e tenham por escopo, velado ou não, mascarar violações a princípios constitucionais, notadamente o do devido processo legal.
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* Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em exercício na 5ª Câmara Criminal e Membro fundador do MMFD - Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia