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O verdadeiro juiz

Recentemente, ocorreu a tragédia da morte de uma criança que caiu da janela de um prédio. O trágico fato passou a ser notícia na televisão e ganhou espaço certo nos programas que se dedicam ao escândalo e ao espalhafato. Nesse clima de busca deliberada de um apressado clamor público, aparece diante dos holofotes da televisão, em diversas oportunidades, o Promotor encarregado das investigações e diante de simples suspeitas diz que seria possível concluir pela culpabilidade de alguém. Surge no cenário a decretação da prisão temporária do pai e da madrasta da menina, tragicamente, morta.

17/4/2008


O verdadeiro juiz

Ovídio Rocha Barros Sandoval*

Recentemente, ocorreu a tragédia da morte de uma criança que caiu da janela de um prédio. O trágico fato passou a ser notícia na televisão e ganhou espaço certo nos programas que se dedicam ao escândalo e ao espalhafato. Nesse clima de busca deliberada de um apressado clamor público, aparece diante dos holofotes da televisão, em diversas oportunidades, o Promotor encarregado das investigações e diante de simples suspeitas diz que seria possível concluir pela culpabilidade de alguém. Surge no cenário a decretação da prisão temporária do pai e da madrasta da menina, tragicamente, morta.

A Defesa do casal impetra ordem de Habeas Corpus com o objetivo de fazer cessar a prisão temporária, com o argumento central de que não se encontravam presentes os requisitos legais para sua decretação.

Distribuída a ordem de Habeas Corpus no Tribunal de Justiça (clique aqui), foi sorteado para apreciar a liminar o eminente Desembargador Caio Eduardo Canguçu de Almeida que, em despacho superiormente fundamentado, concedeu a liminar para fazer cessar a prisão temporária, uma vez que a custódia cautelar não poderia ser mantida diante de simples suspeitas e, ainda, da inexistência de qualquer risco para a colheita de provas e da apresentação espontânea do casal, quando foi decretada a prisão.

A decisão vale, não só por suas judiciosas e corretas considerações, como também de exemplo para os Magistrados brasileiros, em uma lição imorredoura de que a Justiça deve prevalecer, quaisquer que sejam as circunstâncias a envolver um determinado caso.

Tenho a honra e a alegria de acompanhar, há 36 anos, a carreira na Magistratura do homem admirável e fantástico Juiz e Desembargador Caio Eduardo Canguçu de Almeida que ocupa, com justiça, um lugar de realce na galeria dos maiores Juízes paulistas.

A decisão levou-me a diversas reflexões, em meu ardoroso amor pela Magistratura.

Certa feita, respondendo às indagações: "Quem é o Juiz?", "Quais são os seus poderes?", De Nicola, jurista e insígne homem de Estado, assim respondeu a essas perguntas, em página notável, conforme tradução feita pelo querido e saudoso professor Vicente Ráo: "Não sei conceber nada mais alto, nem mais solene, nem mais terrível do que a missão do Juiz. Descobrir a verdade entre as mentiras que o envolvem e as astúcias que o insidiam, resistir às paixões que o cercam, ser justo sem indulgência nem rigor, conhecer o coração humano com as suas fraquezas e nas suas imperfeições, não obedecer aos ódios e não deixar-se arrastar pelas querenças, manter-se impassível ante os contrastes e os choques da vida, traçar os limites do justo com mão segura e com olhar esperto, ser intérprete não da palavra mas do espírito informador e vivificador da lei, dispor da honra, dos haveres, do futuro, da própria vida de seus semelhantes – tal o seu complexo de deveres altos e solenes que da alma arrancam este grito: Que funções sublimes!"

Eis porque, a função de julgar com a própria vida se identifica, levando Rui Barbosa a proclamar: "Eu não conheço duas grandezas tão vizinhas, pela sua altitude, tão semelhantes pelas suas lições, tão paradisíacas na eternidade como estas, a Justiça e a morte", vindo, em seqüência, a deixar imorredoura lição: "O Juiz é a consciência da lei que não obedece a ninguém."

Não existe para o Juiz o chamado clamor público. No exercício de suas funções, deve o Juiz dispor dos predicados necessários para não se deixar influenciar por questões estranhas ao caso submetido ao seu julgamento, na certeza de que a matriz do Julgador é o caso concreto, onde haverá de praticar Justiça, dizendo o Direito e aplicando a Lei. O "clamor público" não pode ser pretexto para condenações sem julgamento, "clamor público", aliás, que, há dois mil anos, exigiu a soltura do facínora Barrabás e a condenação à cruz do inocente Nosso Senhor Jesus Cristo. "Clamor público", ainda, que, em 1933, levou Hitler ao poder, trazendo tanta dor e sofrimento à humanidade.

O ato de julgar não pode, em hipótese alguma, ser pautado pela "vontade da mídia". Nesse aspecto guardo presente uma crônica escrita, no ano de 1994, pelo notável jornalista Carlos Heitor Cony: "Com o rolo compressor da mídia em cima da sociedade, em breve não serão necessários tribunais, partidas de futebol e eleições. Criado o clima, a realização de um julgamento, o jogo ou a eleição será dispensável. Há o risco de o julgamento, o jogo ou a eleição contrariar o "MOOD", o consenso das ruas. E aí, fica valendo o que?" Faz a indagação, que por si só se responde: "para que existem tribunais, jogos de futebol e eleições se os resultados não podem contrariar a opinião pública?"

Juiz não pode ter medo. A coragem é uma das virtudes primaciais do Magistrado. Para o notável Eduardo Couture, "el dia en que los jueces tienen miedo, ningún ciudadano puede dormir tranqüilo".

É atribuída ao imperador Ferdinando I da Alemanha a seguinte frase: "Faça-se justiça e pereça o mundo". Todavia Hegel não só a corrigiu como lhe emprestou a força de uma norma a que nenhum homem pode se afastar: "Faça-se justiça para que o mundo não pereça". Desde os filósofos gregos, como Platão, passando pelos pensadores cristãos, até chegarmos aos grandes pensadores ocidentais modernos, a Justiça sempre foi considerada o elemento fundamental na organização da sociedade, seja qual for a sua base histórica. Daí a grandiosidade da frase dita por Hegel, levando o ilustre e respeitado jornalista Franklin de Oliveira, certa feita, a afirmar que a correção que Hegel impôs ao ditado de Ferdinando I pode ser escrita: "Faça-se justiça para que o mundo não leve o diabo".

Por fim, não se pode olvidar a advertência feita por Anatole France, através do humorado filósofo que seu gênio criou – Bergeret: "Eu não teria muito medo das más leis se elas fossem aplicadas por juízes bons. Diz-se que a lei é inflexível, mas eu não acredito. Não há texto que se não deixe solicitar. A lei é morta. O magistrado está vivo. Ele tem uma grande vantagem sobre ela."

Todas essas reflexões afloraram, no instante em que, pela imprensa, tomei conhecimento da decisão prolatada pelo excelso Juiz e Desembargador Caio Eduardo Canguçu de Almeida.

Obrigado, eminente Desembargador, pela lição de um verdadeiro Juiz.
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*Advogado do escritório Advocacia Rocha Barros Sandoval & Ronaldo Marzagão














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