O direito aos alimentos na culpa recíproca
Luciana Diniz Nepomuceno*
No sistema do Código Civil de 1916 (clique aqui), ao marido competia a chefia da sociedade conjugal (art. 232) e, dentre suas funções, incumbia-lhe prover a manutenção da família.
Consoante esse vetusto diploma legal, a obrigação do marido de sustentar a mulher somente encontrava seu termo quando ela, injustificadamente, abandonasse o lar conjugal, recusando-se a ele retornar. O encargo alimentar incumbia, portanto, ao homem para com a mulher, expungindo-se apenas nesta situação fática (abandono injustificado do lar).
Com a Lei de Divórcio - art. 19 (clique aqui), atribuiu-se o encargo a ambos os cônjuges, condicionado, porém, ao reconhecimento da culpa. Apenas ao consorte culpado pela separação do casal competia o dever de prestar alimentos ao inocente que deles necessitasse, e este, em contrapartida, não tinha a correlata obrigação para com o culpado, ainda que necessitado.
A culpa era, portanto, um dos fatores determinantes da responsabilidade alimentar. Somente o inocente tinha direito aos alimentos e, para pleiteá-los, incumbia-lhe provar, além da necessidade, a responsabilidade de seu consorte pelo término da sociedade conjugal.
O novo Código Civil (clique aqui) disciplinou de forma distinta a questão, admitindo a possibilidade do cônjuge culpado pela separação receber alimentos do inocente (§2º do art. 1694), os quais, no entanto, limitar-se-ão aos necessários à sua sobrevivência (os denominados alimentos naturais) e dependerão da inexistência de parente que possa prestá-los (§ único do art. 1704).
A lacuna deixada tanto pela lei pretérita quanto pela em vigor pertine, no entanto, à hipótese de ambos os consortes serem declarados culpados pela dissolução da sociedade conjugal.
A omissão legal abriu ensanchas para que a jurisprudência solucionasse a questão, porém, trata-se ainda de matéria controversa.
De um lado, depara-se com os partidários da tese de que a culpa recíproca expunge a obrigação alimentar, ou seja, o direito de ambos os cônjuges à percepção dos alimentos fica excluído, porquanto as responsabilidades se compensariam. De outro, posicionam-se aqueles que defendem a subsistência do dever alimentar, ainda que diante da reciprocidade de culpas.
Aí a problemática pois, com devida vênia aos doutos posicionamentos em contrário, não se deve negar os alimentos em favor do cônjuge que deles necessitar, ainda que verificada a culpa de ambos pelo fim do casamento.
A culpa recíproca equipara-se, em verdade, a ausência de culpa. Em casos tais, a separação ocorre em razão da deterioração da convivência, que culmina na impossibilidade de continuidade da vida conjugal, e não por um fator preponderante como, v.g., a infidelidade, atribuível apenas a um dos consortes.
Portanto, em casos tais, a responsabilidade dos cônjuges não pode ser graduada, já que não se pode apurar quem realmente foi o culpado, pois cada qual, a seu modo, concorre com mágoas e ressentimentos para o fim do casamento.
Neste contexto, insisto, deve subsistir a obrigação alimentícia. A uma, porque desde a égide da Lei de Divórcio não eram os alimentos excluídos quando se tratasse de culpa recíproca. Seu artigo 19 apenas previa, como de fato ainda prevê, que eles devem ser prestados pelo culpado pela dissolução da sociedade conjugal ao inocente. A duas, porque o artigo 1704, parágrafo único, do Código Civil de 2002, como visto, os viabiliza em favor do cônjuge necessitado e que não tenha parentes em condições de prestá-los, ainda que seja ele o responsável pela separação.
Como a lei torna possível o direito aos alimentos ao cônjuge cuja conduta desonrosa foi preponderante para o rompimento (observadas, é claro, as demais condições legais do artigo 1704, § único, do Código Civil), como muito mais razão devem eles subsistir quando inexistir causa específica e eficiente para o desenlace, que resulta da "falência matrimonial".
Neste caso, as culpas se compensam. Impossível é a continuidade da vida conjugal. Assim, ainda que a mulher (ou o marido) tenha contribuído para a separação judicial, os alimentos devem ser a ela deferidos, desde que comprovada sua necessidade além, é claro, da possibilidade daquele a quem se pede, pois não se deve negar alimentos a quem deles os necessite, a não ser mediante a violação à própria dignidade da pessoa humana.
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*Conselheira Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil e Diretora Departamental do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais
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