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Os cartões corporativos e o dever de licitar

As recentes notícias abordando o uso indevido dos cartões corporativos por autoridades e demais integrantes do governo federal e do governo paulista reacenderam o debate na sociedade a respeito do aparelhamento do Estado e do mau uso dos recursos públicos, mostrando, de forma mais clara, a confusão entre o público e o privado que durante décadas – para não se dizer séculos – dilapida os cofres públicos.

5/3/2008


Os cartões corporativos e o dever de licitar

Percival José Bariani Junior*

As recentes notícias abordando o uso indevido dos cartões corporativos por autoridades e demais integrantes do governo federal e do governo paulista reacenderam o debate na sociedade a respeito do aparelhamento do Estado e do mau uso dos recursos públicos, mostrando, de forma mais clara, a confusão entre o público e o privado que durante décadas – para não se dizer séculos – dilapida os cofres públicos.

Esse debate a respeito do uso dos cartões corporativos é salutar e necessário. Todavia, no presente artigo lançaremos luzes sobre outra questão de extrema relevância concernente a essa problemática e que tem ficado ao largo das discussões, qual seja, a fuga do dever de licitar, o qual é regra à Administração Pública e tem sido corriqueiramente desrespeitado pela proliferação desse tipo de gastos.

Diversos serviços pagos por meio de cartões corporativos, segundo notícias veiculadas pela mídia, pela própria natureza, podem e devem ser objeto de procedimento licitatório específico, nos termos da Lei nº. 8.666/93 (clique aqui).

Se por um lado os cartões corporativos de fato oferecem maior transparência aos gastos públicos, tendo em vista a possibilidade de qualquer cidadão acompanhá-los, por outro denotam que de pouco adianta essa transparência se a fiscalização das Cortes de Contas e do Poder Legislativo é falha e se as normas vigentes e, principalmente, o princípio da moralidade são constantemente desrespeitados.

O Decreto nº. 5.355, de 25 de fevereiro de 2005 (clique aqui), que regula a utilização dos cartões corporativos pelos órgãos e entidades da administração pública federal, dentre outras disposições, determina que as despesas com pagamentos de diária, locomoção e alimentação dos agentes públicos somente podem ser feitos por meio de cartões corporativos se extraordinários, ou seja, somente as despesas imprevisíveis ou emergenciais podem ser custeadas com esses cartões.

Isso porque as despesas ordinárias da Administração devem ser objeto de devido processo licitatório, nos termos da Lei nº. 8.666/93, o qual visa garantir a seleção da proposta mais vantajosa e a observância do princípio da isonomia entre os interessados.

Ocorre que, sempre segundo a mídia, há diversas despesas pagas com cartões corporativos que não preenchem os requisitos legais, em especial aquelas efetuadas com aluguel de carros e hospedagem, para ficarmos nos exemplos mais simples.

É cediço que os agentes públicos possuem compromissos em diversas localidades do País. Contudo, difícil admitir-se que toda e qualquer viagem por eles realizada não se encontra previamente agendada, impedindo uma previsão e uma provisão dos gastos.

Ora, o sistema de Registro de Preços, previsto no artigo 15 da Lei nº. 8.666/93 e regulamentado, em nível federal, pelo Decreto nº. 3.931/2001 (clique aqui), presta-se, exatamente, a facilitar o planejamento e o custeio das despesas que não tenham uma data específica para ocorrer, mas que podem se desenvolver no decorrer do ano, como é o caso das acima mencionadas.

Assim, mais do que possibilidade, é dever da Administração valer-se desse sistema para selecionar empresas que possam prestar os serviços de transporte ou de hospedagem aos agentes políticos nas mais diversas localidades de País.

Inconteste que, dessa forma, a economia aos cofres públicos será significativa, pois se presume que em um certame em que diversas empresas participam em igualdade de condições obtém-se uma proposta mais vantajosa ao interesse público.

Não obstante, o procedimento licitatório impede que a escolha do prestador de serviços ou do fornecedor fique ao crivo único e exclusivo da conveniência do administrador - o que, a tomarmos como exemplos os últimos acontecimentos políticos é uma "porta aberta" para os favorecimentos indevidos -, garantindo assim o mínimo de moralidade, ética e imparcialidade necessárias a todo e qualquer agente que trate com dinheiro público.

Não se afirma aqui que todas as despesas com esses tipos de serviços podem ser atendidas por empresas devidamente cadastradas por meio de um Registro de Preços, mas não observar esse procedimento, quando este for efetiva e juridicamente possível, caracteriza grave afronta ao dever de licitar e ao princípio da legalidade.

Insta destacar, por oportuno, que os baixos valores dessas despesas não as enquadram na hipótese de dispensa de licitação como se apregoa, mais especificamente, no artigo 24, inciso II, da Lei nº. 8.666/931 .

O dispositivo legal expressamente determina que a dispensa de licitação em razão do valor não é admitida se utilizada para a contratação de parcelas de um mesmo serviço de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez.

Ou seja, o fracionamento de serviço de mesma natureza em diversas parcelas de pequeno vulto, por meio dos cartões corporativos, desfigura o instituto de dispensa de licitação em razão do valor.

Parece claro que a única razão para a não utilização do procedimento licitatório para custear as despesas ordinárias e previsíveis da Administração é a falta de planejamento, que, infelizmente, espraia-se por todas as esferas de governo.

Portanto, não só os gastos excessivos com os cartões corporativos devem ser trazidos ao conhecimento da opinião pública e devidamente combatidos, mas também a conduta inadequada daqueles agentes públicos que por falta de planejamento não cumprem o dever legal de realizar licitação e de curar adequadamente o interesse público.

Apesar do panorama assaz conturbado a respeito desse tema, não é razoável a tese daqueles que defendem a extinção dos cartões corporativos, vez que, como bem já anotou o Ministro Marco Aurélio de Mello, do STF - Supremo Tribunal Federal, esses cartões proporcionam, efetivamente, maior transparência e controle dos gastos públicos quando comparados com outros instrumentos. O problema efetivo não reside nos cartões em si, mas sim na falta de planejamento administrativo e no deficiente controle dos gastos.

Por tudo isso, é válido o esforço, ainda que hercúleo, de acreditarmos que a Comissão Parlamentar de Inquérito, que se encontra na iminência de ser instalada no Congresso Nacional, pode, se encarada com seriedade, trazer sugestões para o aperfeiçoamento do controle das despesas efetuadas por meio de cartões corporativos, em especial os relativos ao planejamento administrativo, de forma a melhor preservar o patrimônio público, assim entendido como aquele pertencente a toda a população e não apenas àqueles que exercem, momentaneamente, um cargo público.

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1
Art. 24. É dispensável a licitação:

II - para outros serviços e compras de valor até 10% (dez por cento) do limite previsto na alínea "a", do inciso II do artigo anterior e para alienações, nos casos previstos nesta Lei, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez;

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*Advogado do escritório Dal Pozzo Advogados





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