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A herança de um cientista e o futuro da humanidade

Neste ano de 2004, entramos no 50o aniversário do falecimento de Theillard de Chardin, paleontólogo e cientista francês que aprofundou o conhecimento da terra e pesquisou as origens do universo, levado por sua profunda fé em Deus. Era cristão, padre e místico. Viveu em uma época na qual, mais ainda do que atualmente, as Igrejas cediam à tentação de sempre reagir negativamente às novas pesquisas da ciência.

21/6/2004

A herança de um cientista e o futuro da humanidade

 

Marcelo Barros*

 

Na noite de 21 de junho, em toda a cordilheira dos Andes e em alguns outros pontos da América do Sul, as comunidades autóctones celebram o ano novo andino. A passagem de ano é marcada pelo solstício do inverno que, no hemisfério norte ocorre no final de dezembro e no sul neste momento de junho. Para as culturas indígenas, mais do que para a sociedade secularizada do Ocidente, a passagem de uma estação a outra é símbolo e significa a entrada de um tempo novo não só na natureza, mas na vida da comunidade e de cada pessoa. Há povos nos quais um dos ritos de ano novo é jogar fora roupas e objetos velhos para expressar as coisas mais profundas e íntimas com as quais cada um/a aceita rompe interiormente e, assim, estar aberto a acolher o novo.

 

Neste ano de 2004, entramos no 50o aniversário do falecimento de Theillard de Chardin, paleontólogo e cientista francês que aprofundou o conhecimento da terra e pesquisou as origens do universo, levado por sua profunda fé em Deus. Era cristão, padre e místico. Viveu em uma época na qual, mais ainda do que atualmente, as Igrejas cediam à tentação de sempre reagir negativamente às novas pesquisas da ciência. Ele sofria com o fato de que, para muitos, o cristianismo parece ter na história um papel repressor e de favorecer o obscurantismo. Ele não compreendia porque Jesus Cristo anunciou o Evangelho como boa notícia de vida e libertação para todos e algumas Igrejas parecem pregar mais a lei, o pecado e as proibições do que a graça e o amor de Deus. No seu tempo, o papa Pio XII escreveu uma encíclica defendendo a interpretação da Bíblia ao pé da letra e ensinando que Deus criou o mundo de um só casal, Adão e Eva. Os católicos eram proibidos de aceitar a teoria da evolução. Ele sabia que, no século XIX, padres católicos e pastores protestantes tinham pregado contra o trem, o automóvel e até o sistema métrico decimal como sendo invenções do diabo.

 

Conforme o pensamento do padre Theillard de Chardin, quanto mais uma pessoa acredita em Deus, mas se sente impulsionada pelo Espírito a ser corajosa e amorosamente aberta a toda a evolução humana. Para ele, cristão reacionário era igual a falar em “guerreiro pacifista”. Na sua época, o mundo ensaiava os primeiros intentos de viagens espaciais e muitos eclesiásticos diziam que isso seria um pecado. Segundo eles, Deus criou o ser humano na terra e este tem de se contentar em ficar aonde foi colocado. Uma compreensão teológica da cruz de Jesus como aceitação passiva do sofrimento e também da salvação como mera sobrevivência depois da morte em um paraíso situado entre as estrelas, fazia muitos cristãos verem qualquer esforço para transformar o mundo como presunção e concorrência com Deus.

 

Theillard de Chardin insistiu: “Deus nos criou à sua imagem e para nos tornar semelhantes a ele. A própria semelhança divina leva o ser humano a sempre buscar novos desafios e abrir-se a novos horizontes da ciência e da conquista da vida. Deus nunca seria ciumento da evolução humana. Ao contrário, sempre a verá como realização do seu projeto de amor que nos criou criadores”.

 

A fé em um Deus Amor levou Theillard a acreditar que a própria ciência pode descobrir, por si mesma, os sinais desta presença divina no universo. Ele pesquisou e escreveu que todo o universo está em evolução permanente, partindo de um ponto Alfa e marchando para um ponto Omega. Como cristão, ele viu a pessoa e a palavra de Jesus Cristo, presente como este ponto de partida e ponto de chegada, em uma evolução que pode se descrever como um processo de amorização cósmica.

 

Ao entrar no cinqüentenário do seu falecimento, é bom nos darmos conta da herança espiritual que este cientista nos deixou. Eis alguns pontos de seu ensinamento: “A ciência tem todo o direito à autonomia de pesquisa e quanto mais ela avança, mais descobrirá a profunda conexão que existe entre todos os seres. Todos os seres do universo são atraídos por uma energia divina, toda matéria é sagrada e converge para Deus. A forma mais profunda da pessoa adorar a Deus é defender a vida da humanidade e da natureza. A fé se expressa no amor. Por isso não pode nos descomprometer da política nem das preocupações do mundo. Ao contrário, ela nos leva a nos consagrar aos outros e ao futuro melhor para a humanidade. Quem é de Deus, em qualquer religião que seja, não pode apenas suportar ou aceitar a vida como ela é, mas deve aproveitá-la e aprender a vivê-la intensamente”.

 

Para o padre Theillard, viver profundamente é sinônimo de arriscar novos rumos e abrir-se ao desconhecido. O ser humano é um peregrino da história e sua vida muda quando descobre que seu destino está ligado ao de todas as criaturas do universo. Neste sentido, concluo citando uma palavra do próprio Theillard de Chardin: “Duvido que haja, para o ser pensante, minuto mais decisivo do que aquele no qual, caindo-lhe a venda dos olhos, descobre que não é um elemento perdido nas solidões cósmicas, mas que uma energia universal de amor à vida converge e se humaniza dentro de seu próprio ser. Cada pessoa não é um centro estático do mundo - como durante muito tempo se julgou – mas eixo e flecha da evolução. Isso é muito mais belo”.

 

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*Monge beneditino e autor de 26 livros, dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas". Ed. Rede-Loyola, 2003.

 

 

 

 

 

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