O registro da distribuição da execução (CPC, art. n°. 615-A) e a fraude à execução
Mirna Cianci*
Rita Quartieri*
Não sobrevive, todavia, essa exegese a uma análise histórica e sistemática do instituto, cujo aprofundamento revela total inadequação dessa afirmação que vem predominando na doutrina recente das reformas do processo1, com o argumento de que a hipótese se amoldaria no inciso III do art. n°. 593 do CPC, que prevê a fraude "nos demais casos expressos em lei". No entanto, como a expressão revela, tais hipóteses devem ser expressamente previstas em lei, como é o caso da presunção de fraude quando a alienação for posterior à inscrição da dívida ativa (art. n°. 185 do Código Tributário Nacional - clique aqui -). Não é o caso do art. n°. 615-A.
No contexto n°. histórico temos que o reconhecimento da fraude à execução pelos Tribunais e em especial pelo Superior Tribunal de Justiça2 sempre alinhavou, como pressuposto, a exigência da pendência de demanda capaz de reduzir à insolvência o devedor. Essa conduta, inclusive, sempre foi muito criticada pela doutrina, na medida em que favorecia conluios entre devedor e terceiro, mas, é de se admitir, foi orientação que predominou naquela Corte, revelando que, numa análise histórica da evolução jurisprudencial, a citação na execução deve anteceder o reconhecimento dessa causa de ineficácia.
Se tivesse pretendido o legislador aderir à tendência doutrinária e contrariar a jurisprudência dominante, teria simplesmente modificado o ordenamento de modo a considerar em fraude à execução a alienação de bens feita após a simples distribuição da execução, independente de citação. Não o fez e essa omissão traduz justamente a mens legis, que, tudo indica, preferiu manter a orientação jurisprudencial.
Num exame sistemático, que melhor se adapta a qualquer estudo hermenêutico, temos a conjugação dos artigos n°. 593, inciso II e 615-A, onde dois requisitos permanecem no sistema, a basear todo e qualquer reconhecimento da fraude à execução, seja na ordem processual, seja na legislação extravagante ou superveniente:
(i) a pendência da demanda e
(ii) a redução do devedor ao estado de insolvência.
Esses requisitos permanecem válidos em nosso sistema e o afastamento de tais exigências resultaria em desvirtuamento do instituto, com seu deslocamento apenas e tão somente nos casos de averbação, especialmente levando em conta tratar-se de ato de iniciativa exclusiva da parte, sem qualquer rigor em sua limitação inicial e portanto sujeito a posterior adequação ao volume da dívida, capaz de comprometer, muitas vezes de modo inadequado, a totalidade do patrimônio do devedor.
A vingar aquela orientação, a alienação de quaisquer bens averbados já configuraria fraude. E é direito fundamental do executado, diante da superioridade de seu patrimônio em relação ao débito exeqüendo, a livre disposição de bens que estejam fora da garantia da execução, descaracterizada a situação de insolvência exigida pelo texto legal.
Diante da harmonia do sistema processual, o art. n°. 615-A merece trato de convivência com os demais dispositivos que regulam a matéria, mesmo porque a averbação dá-se em momento posterior ao ajuizamento da ação e antes da citação.
Ademais disso, se considerado como marco da fraude a data da averbação não haveria tratamento idêntico ao tema, pois teríamos momentos distintos para delimitar o regime de ineficácia, a depender do desejo do exeqüente em promover ou não a averbação, já que se trata de faculdade, e não de dever.
Nem socorre ao intérprete a previsão de responsabilidade do credor por eventuais excessos que possam resultar em prejuízos ao devedor, posto que não será garantia de pleno e adequado ressarcimento. Leve-se em conta que o devedor possa ter a possibilidade de engatilhar negócios vantajosos e que a simples averbação sequer lhe traga ao conhecimento as perdas a que venha a ser submetido, posto que o interessado, apenas tomando conhecimento dessa nota, certamente deixará de tomar a iniciativa de manifestar sua intenção.
A precariedade do ato também não recomenda a antecipação da fraude. Não há vinculação dos bens averbados à futura penhora, podendo o exeqüente indicar bens de maior liquidez (como o dinheiro, que é preferencial na ordem de bens penhoráveis), o que desaconselha tenha o instituto conseqüência tão grave como a ineficácia ab initio.
Na verdade, a correta exegese do art. n°. 615-A recomenda ser considerado como mais uma hipótese de inversão do ônus da prova, interpretação que viria a aperfeiçoar o sistema, e não a contrariá-lo.
O registro da penhora (CPC, art. n°. 659, § 4º) idêntica polêmica trouxe a debate, e a respeito se firmou entendimento de que essa providência revelaria apenas o resultado da ciência a terceiros, não sendo o ato integrativo da penhora, como não é a averbação integrativa da fraude.
Antes da modificação ao art. n°. 659 do CPC os Tribunais exigiam para reconhecer a fraude prova de que o adquirente conhecia a demanda em curso capaz de reduzir o devedor a insolvência, atribuindo o encargo probatório ao exeqüente. A dificuldade de prova, no entanto, desaguava na prevalência do negócio jurídico em prejuízo da fraude, em desprestígio à atividade jurisdicional desenvolvida na execução.
Diante disso, reforma processual anterior fez constar do referido dispositivo (art. n°. 659) previsão de inscrição da penhora no registro imobiliário, criando presunção absoluta, neste caso, de conhecimento de terceiros a respeito do ato de constrição. Em hipótese de ausência de registro a presunção seria relativa, cabendo ao adquirente a prova de que não tinha ciência da demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência.
Com o mesmo desígnio, o registro da distribuição da execução cria presunção absoluta (§ 3º, art. n°. 615-A) a respeito do conhecimento de terceiros sobre a demanda em curso, e, por conta disso, este fato independe de prova (CPC, art. n°. 334, inciso IV).
Esta interpretação é a que melhor se adapta à tendência que inspirou a reforma, de uma atuação jurisdicional efetiva e ao mesmo tempo conciliadora dos direitos fundamentais de ação e defesa, como forma de outorga do justo e adequado processo.
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1 Nesse sentido: ASSIS, Araken. Manual da Execução. 11. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 259. BUENO, Cassio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 3, p. 51.
2 Direito processual civil. Execução de alimentos. Fraude de execução.
3 Requisitos. Citação válida do devedor. Prova da Insolvência. Ciência dos adquirentes a respeito da ação <_st13a_personname productid="em curso. Embargos" w:st="on">em curso. Embargos de declaração.
Reexame de provas vedado.
- Inviável o recurso especial quando o Tribunal Estadual decidiu fundamentadamente as questões necessárias ao deslinde da controvérsia, sem omissões, contradições, tampouco obscuridades no julgado, embora em sentido diverso do pretendido pela parte.
- Para caracterização da fraude de execução prevista no art. n°. 593, inc. II, do CPC, ressalvadas as hipóteses de constrição legal, necessária a demonstração de dois requisitos: (i) que ao tempo da alienação/oneração esteja em curso uma ação, com citação válida;
(ii) que a alienação/oneração no curso da demanda seja capaz de reduzir o devedor à insolvência. Precedentes.
- Dessa forma, se o Tribunal de origem entende que os requisitos da fraude de execução estão presentes, a modificação do julgado esbarra na proibição de se analisar fatos e provas em sede de recurso especial.
Recurso especial não conhecido.
(REsp 862.123/AL, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 07.05.2007, DJ 04.06.2007 p. 351)
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*Procuradoras do Estado de São Paulo e Coordenadoras da Escola Superior da Procuradoria do Estado de São Paulo – ESPGE/SP