Migalhas de Peso

Estado: Credor Incompassivo

"Havia um rei que resolvera ajustar contas com os seus servos. Trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil moedas. Não tendo, porém, com que pagar, ordenou que fossem vendidos ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possuía para pagar a dívida. Então, o servo, reverente, rogou: Sê paciente comigo, e tudo te pagarei. E o rei, compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou um de seus conservos que lhe devia cinco moedas e, agarrando-o, sufocava-o, dizendo: Paga-me o que deves. O conservo, caindo-lhe aos pés, implorava que fosse paciente porque seria pago. Ele, entretanto, não quis, e lançou o conservo na prisão, até que saldasse a dívida."

20/12/2007


Estado: Credor Incompassivo

Sobre o protesto de Certidões da Dívida Ativa

Alexandre Mazza*

"Havia um rei que resolvera ajustar contas com os seus servos. Trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil moedas. Não tendo, porém, com que pagar, ordenou que fossem vendidos ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possuía para pagar a dívida. Então, o servo, reverente, rogou: Sê paciente comigo, e tudo te pagarei. E o rei, compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele servo, encontrou um de seus conservos que lhe devia cinco moedas e, agarrando-o, sufocava-o, dizendo: Paga-me o que deves. O conservo, caindo-lhe aos pés, implorava que fosse paciente porque seria pago. Ele, entretanto, não quis, e lançou o conservo na prisão, até que saldasse a dívida."

O relato acima é conhecido, nas Escrituras, como "a parábola do credor incompassivo" (Mateus 18:23-35) e foi a primeira imagem que nos veio à mente quando, por esses dias, a imprensa noticiou que a Fazenda Paulista está protestando, em cartório, Certidões da Dívida Ativa (CDAs) referentes a débitos de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

A polêmica medida já vinha sendo utilizada há cerca de três anos por alguns Municípios, como Araraquara e Londrina, com o objetivo declarado de compelir contribuintes inadimplentes a pagar as dívidas fiscais, sob pena de envio de seus nomes para cadastros de proteção ao crédito. Em termos práticos, antes do início da execução fiscal, o débito é protestado, comunicando-se o contribuinte para que apresente defesa administrativa ou efetue o pagamento, no prazo de três dias, após o que o nome é enviado ao Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e à Centralização de Serviços dos Bancos S.A. (Serasa).

O objetivo do presente artigo é enumerar alguns argumentos técnicos, entre tantos, que permitam ao amigo leitor formar sua convicção a respeito do momentoso tema:

1 – O protesto de títulos é regulado pela Lei Federal n°. 9.492/97 (clique aqui), cujo art. 1º declara que: "protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida". Consoante lição dos mais renomados doutrinadores pátrios, o protesto é um meio extrajudicial destinado a incorporar ao título de crédito a prova de fato relevante para as relações cambiais1. Ora, sendo instrumento próprio para produzir efeitos na seara do Direito Cambiário, o protesto não pode ser aplicado no âmbito tributário porque a CDA, que é ato administrativo com presunção de veracidade, já contém todos os elementos comprobatórios da inadimplência do contribuinte (art. 3º da Lei n°. 6.830/80 - clique aqui -);

2 – A Lei n°. 9.492/97 foi promulgada como lei ordinária, não podendo ter sua aplicabilidade estendida para o campo tributário, na medida em que a disciplina normativa de assuntos relacionados com obrigações e créditos de natureza fiscal está constitucionalmente reservada ao legislador complementar (art. n°. 146, III, "b", da CF - clique aqui -);

3 – Não existe, no ordenamento jurídico brasileiro, autorização legislativa permitindo que o Fisco utilize o protesto como instrumento para cobrança de dívidas. Como ao Estado só é dado fazer aquilo que a lei autoriza – ao contrário dos particulares, que podem fazer tudo o que a lei não proíbe –, torna-se inevitável concluir que o protesto de CDAs contraria o princípio da legalidade (art. n°. 37, caput, da CF);

4 – A Lei n°. 6.830/80 estabelece o procedimento por meio do qual o Estado realiza judicialmente a cobrança de débitos de natureza tributária, nela não havendo nada semelhante à possibilidade de lançar o nome do contribuinte em listas públicas de devedores inadimplentes. Por isso, se a lei prevê mecanismo específico com esse fim, não pode a Fazenda, por sua conta, optar por caminho mais gravoso para o contribuinte, sob pena de violação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade previstos no art. 2º da Lei do Processo Administrativo (Lei n°. 9.784/99 - clique aqui -).

Bom esclarecer, caro leitor, que não estamos, aqui, fazendo apologia à inadimplência tributária. Bem ao contrário. Parte significativa da culpa pela baixa qualidade na prestação de serviços públicos essenciais, como saúde e educação, pode ser atribuída à sonegação fiscal. Deve-se, entretanto, ponderar que nem sempre os tributos deixam de ser pagos por má-fé do contribuinte, e sim pela sufocante carga tributária brasileira.

Há, no entanto, um aspecto que parece estar sendo esquecido pela imprensa, e que, segundo cremos, submete a questão do protesto de CDAs a reflexões de caráter ético e moral: o Estado é um péssimo devedor. Recorde-se que o Estado de São Paulo ainda não terminou de pagar precatórios alimentares de 1998. Assim como o servo incompassivo referido no título deste artigo, existe algo estranho no fato de um devedor confesso ser implacável quando ocupa a posição de credor.

Outras medidas simples e legítimas aumentariam a arrecadação, como ajuste da carga tributária, melhores condições de trabalho a servidores do setor fiscal, maior número de procuradores. O Estado, com isso, não teria necessidade de recorrer a soluções ilegais e abusivas.

Do modo como foi feita, a novidade faz lembrar outra passagem bíblica: "Por que olhas a palha que está no olho do teu irmão e não vês a trave que está no teu?" (Mateus 7:3).

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1COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial. 4. ed. São Paulo: Saraiva. v. 1, p. 415.
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*Professor no CJDJ - Complexo Jurídico Damásio de Jesus







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