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As multas por descumprimento dos deveres instrumentais

A origem do vínculo obrigacional entre o Estado e os indivíduos, que permite àquele exigir destes o pagamento dos tributos, remonta ao nascimento e desenvolvimento da própria máquina estatal, como um ente soberano necessário à administração e promoção dos interesses coletivos.

12/11/2007


As multas por descumprimento dos deveres instrumentais: desestímulo ao ilícito tributário ou fonte de arrecadação estatal?

Leandro Augusto Cerqueira Vieira*

A origem do vínculo obrigacional entre o Estado e os indivíduos, que permite àquele exigir destes o pagamento dos tributos, remonta ao nascimento e desenvolvimento da própria máquina estatal, como um ente soberano necessário à administração e promoção dos interesses coletivos.

Em tempos remotos, todavia, a exigência desses tributos estava intimamente ligada à idéia de força, poder, de forma que o Estado, utilizando-se de seu monopólio, impunha a prestação tributária aos indivíduos porque assim desejava. Havia entre o Estado e o indivíduo, portanto, apenas uma relação de poder, fundada na força sancionatória e coercitiva estatal.

Com o surgimento do Estado Democrático de Direito, a idéia de imposição tributária como decorrência da relação de poder estatal passa a ser questionada e refutada. O dever de contribuir torna-se o alicerce das atividades estatais, voltadas para a satisfação dos interesses públicos e alcance do bem comum. O indivíduo consente em entregar parte de sua renda ou patrimônio ao Estado, objetivando, em contrapartida, o benefício estatal consubstanciado em bens e serviços públicos de seu interesse.

A relação de poder, pura e simples, torna-se verdadeira relação jurídica (relação jurídico-tributária), restando mantida, contudo, a compulsoriedade de pagamento dos tributos pelos indivíduos ao Estado.

O desenvolvimento das atividades do Estado, todavia, tornaria mais complexas as relações entre ele e os contribuintes, que deixariam de entender a necessidade crescente de recursos pela máquina estatal e se furtariam ao pagamento dos tributos, exatamente por não vislumbrar a devida contraprestação.

Visando evitar a sonegação, armou-se o Fisco de uma série de medidas – cujos objetos consistem em prestações positivas ou negativas (emitir nota fiscal, manter livro diário, escriturar livro caixa, etc.) – tendentes a assegurar a arrecadação e possibilitar a fiscalização dos tributos.

Essas medidas, chamadas de obrigações tributárias acessórias ou deveres instrumentais (artigo n°. 113, §2º, do CTN - clique aqui -), estão previstas na legislação tributária (artigo n°. 96 do CTN) e geram, se descumpridas pelos contribuintes, a imposição de multa, tal qual ocorre com o descumprimento da obrigação tributária principal (que consiste no pagamento do tributo).

Há, portanto, em nosso ordenamento jurídico, uma clara distinção entre tributo e multa. O tributo, nos termos do artigo 3º do CTN, consiste numa prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, instituída por lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada, que não constitua sanção de ato ilícito. A multa, por sua vez, surge do descumprimento da própria obrigação tributária principal (pagar o tributo) ou do descumprimento das obrigações acessórias, representando sanção pelo cometimento do ilícito tributário.

Assim, como dito, o objetivo do tributo é financiar o desenvolvimento das atividades estatais, favorecendo ao crescimento e organização da sociedade e objetivando o bem da coletividade. A multa, ao revés, tem a única finalidade de desestimular a prática do ato ilícito pelo contribuinte, ou seja, punir o descumprimento da obrigação tributária, que, repita-se, pode ser principal ou acessória/instrumental.

No Brasil, entretanto, não bastasse a elevada carga de tributos e a má utilização dos mesmos, cuja aplicação em prol da coletividade quase não é vislumbrada, as multas tributárias têm sido utilizadas como verdadeiras fontes de arrecadação pelo Estado, em completo arrepio à sua única função, que é punir e desestimular o cometimento do ato ilícito.

Nesse sentido, o que se tem observado é a instituição e imposição de novas obrigações acessórias, as mais variadas possíveis e de complexidade cada vez maior, obrigando os contribuintes a manter todo um aparato destinado ao cumprimento dos seus deveres instrumentais, que vai desde modernos programas de computador – destinados a acompanhar a evolução da legislação tributária e a processar e transmitir um sem número de declarações eletrônicas – até a manutenção de contadores e advogados voltados para a analise daquela legislação.

Fato é que a imensidão de obrigações acessórias criadas pela legislação tributária, aliada à complexidade das mesmas, tem-se traduzido no descumprimento (também crescente) desses deveres instrumentais, representando mais uma tormenta para os contribuintes. Isso porque as multas aplicadas pelo Fisco, nessas hipóteses, têm sido bastante elevadas, chegando até mesmo a superar o valor do próprio tributo exigido (obrigação principal), independentemente dos motivos que levaram ao descumprimento do dever instrumental – posto que a responsabilidade pelas infrações, salvo disposição de lei em contrário, é objetiva (art. n°. 136 do CTN).

Ocorre que a imposição de multas abusivas, sobretudo se decorrentes da inobservância de obrigações acessórias, viola frontalmente os princípios administrativos da razoabilidade e moralidade, bem como o direito de propriedade dos contribuintes, esculpido nos artigos 5º, inciso XXII, e 170, inciso II, da Constituição da República (clique aqui).

As multas, insistimos, não devem objetivar a manutenção das atividades estatais e, sim, o desestímulo da sonegação fiscal e da prática de outros ilícitos tributários. Certo é que diversos fatores podem conduzir ao cometimento do ilícito fiscal e cada situação deve ser considerada individualmente – e subjetivamente, conforme autoriza o 136 do Código Tributário Nacional1 – para fins da estipulação, mensuração e aplicação das sanções tributárias. Somente assim grandes injustiças poderiam ser evitadas!

Enquanto não muda a legislação tributária, compete ao Poder Judiciário, sempre que provocado pelos contribuintes, impor limites à voraz concepção arrecadatória do Estado, impedindo que abusos como o que foi apontado neste trabalho violem direitos assegurados constitucionalmente aos administrados.

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1 Art. n°. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.

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*Advogado do Escritório Manucci Advogados










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