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Legalidade versus Constitucionalidade

Lamentavelmente, em pleno Estado Constitucional e Democrático de Direito, o governo brasileiro cancelou o visto do jornalista americano William Larry Rohter Junior, do jornal The New York Times, pelo fato de ter sido ele autor de matéria jornalística que atribuiu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva problemas com o uso de bebida alcoólica.

19/5/2004

Legalidade versus Constitucionalidade

O caso da expulsão do jornalista americano pelo governo brasileiro


Valerio de Oliveira Mazzuoli*

Lamentavelmente, em pleno Estado Constitucional e Democrático de Direito, o governo brasileiro cancelou o visto do jornalista americano William Larry Rohter Junior, do jornal The New York Times, pelo fato de ter sido ele autor de matéria jornalística que atribuiu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva problemas com o uso de bebida alcoólica. Em retaliação, o governo brasileiro cancelou o visto temporário de permanência do jornalista no Brasil, causando um alarde em toda a imprensa mundial e sérios prejuízos às relações internacionais brasileiras.

Este fato coloca nos dois lados da balança dois conceitos que o operador do Direito conhece bem, ou, pelo menos, deveria conhecer: legalidade e constitucionalidade. A norma em que se fundamentou o governo para cancelar o visto do jornalista William Junior, foi a Lei nº 6.815, sancionada em 19 de agosto de 1980, durante o governo do general João Figueiredo, o último presidente da República do regime militar, mais conhecida como “Estatuto do Estrangeiro”.

O ato expulsório, subscrito pelo Ministro da Justiça interino, Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto (o Ministro da Justiça titular Márcio Thomaz Bastos encontrava-se em viagem oficial à Suíça, para firmar um acordo de cooperação), fundamentou-se no art. 26, combinado com o art. 7º, inciso II, do referido “Estatuto”. Nos termos do art. 26 da Lei, “o visto concedido pela autoridade consular configura mera expectativa de direito, podendo a entrada, a estada ou o registro do estrangeiro ser obstado ocorrendo qualquer dos casos do artigo 7º, ou a inconveniência de sua presença no território nacional, a critério do Ministério da Justiça”. O art. 7º, inciso II, referido pelo art. 26, dispõe que “não se concederá visto ao estrangeiro considerado nocivo à ordem pública ou aos interesses nacionais”.

O art. 65 da Lei, por sua vez, diz ser “passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais” (Textos da lei encontrados em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Coletânea de Direito Internacional, 2ª ed. São Paulo: RT, 2004, pp. 749, 751 e 756).

Em nota divulgada pelo Ministério da Justiça, do dia 11 deste mês, o Ministro interino afirmou que “em face de reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do presidente da República Federativa do Brasil, com grave prejuízo à imagem do país no exterior, publicada na edição de 9 de maio passado do jornal The New York Times, o Ministério da Justiça considera, nos termos do artigo 26 da lei nº 6.815, inconveniente a presença em território nacional do autor do referido texto”.

Num primeiro momento, sem nos adentrarmos no problema atinente à constitucionalidade, não nos parece que a conduta do jornalista, ainda que ofensiva à honra pessoal do Presidente, possa ser enquadrada dentre as que a lei considera nocivas “à ordem pública ou aos interesses nacionais”. Como destaca Dardeau de Carvalho, o conceito de nocividade é bastante relativo, devendo a proibição, neste caso, “atingir os estrangeiros que, por sua conduta no país de origem ou em outros países, se revelem potencialmente capazes de ofender a nossa ordem pública” (DARDEAU DE CARVALHO, Alciro. Situação jurídica do estrangeiro no Brasil. São Paulo: Sugestões Literárias, 1976, p. 27).

Pode ser expulso, de acordo com o citado art. 65, o estrangeiro “cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais”. Como explica Mirtô Fraga, “a jurisprudência brasileira ‘unânime em declarar que compete exclusivamente ao Presidente da República julgar se o estrangeiro é nocivo à conveniência ou aos interesses nacionais”, podendo o Judiciário “reexaminar, não o mérito da decisão presidencial, mas, apenas a sua conformidade formal com a legislação em vigor” (FRAGA, Mirtô. O novo Estatuto do Estrangeiro comentado. Rio de janeiro: Forense, 1985, p. 230).

Poderia, então, o Ministro da Justiça interino autorizar o cancelamento do visto do estrangeiro? E ainda que pudesse, poderia um visto ser revogado pelo fato de o estrangeiro ter exercido um direito assegurado pela própria Constituição, que é a liberdade de expressão e de imprensa?

Evidentemente, não é qualquer “procedimento” do estrangeiro que pode ser considerado “nocivo à conveniência e aos interesses nacionais”. Nocividade é um conceito complexo que exige uma interpretação atenta, ligada ao que dispõe o texto constitucional. Um jornalista não pode ser tratado como “inimigo” do país e submetido a uma medida dessa natureza, que deve valer para casos realmente graves e que afetem os interesses do país como um todo, o que não é o caso da reportagem publicada no jornal The New York Times.

O ato praticado pelo Executivo é inconstitucional, por violar o disposto no art. 5º, inciso IV, da Constituição brasileira de 1988, que diz ser livre a manifestação de pensamento, e art. 220, também da Constituição, que proíbe qualquer possibilidade de censura à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, seja qual for a sua razão (política, ideológica, artística, religiosa etc).

O art. 26 da Lei nº 6.815/80, ademais, está em total desacordo com o parágrafo 1º, do art. 220, da Constituição, que declara expressamente que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”.

Tudo isto somando vem mostrar, a nós cidadãos brasileiros, que o nosso Executivo federal tornou-se incapaz de tolerar a livre manifestação de pensamento e a liberdade de imprensa, que são uns dos direitos assegurados a quaisquer cidadãos, pela Constituição brasileira.

Quem sai perdendo com todo este desconforto, envolvendo retaliações do executivo e demandas judiciais? A resposta é: a própria imagem do Brasil no exterior, que passa, cada vez mais, a cair em descrédito perante as demais potências estrangeiras. A repercussão do caso em toda a imprensa mundial – visto como uma nova forma de censura, na sua forma mais severa –, depois do alarde feito pelo do próprio governo, serve para que o Brasil se torne alvo de desconfianças em relação à plenitude de nossa democracia e respeito para com os direitos humanos. Com isto tudo, perde o Direito, perde a Justiça e perde a Constituição.

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* Advogado





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