Legalidade versus Constitucionalidade
O caso da expulsão do jornalista americano pelo governo brasileiro
Valerio de Oliveira Mazzuoli*
O ato expulsório, subscrito pelo Ministro da Justiça interino, Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto (o Ministro da Justiça titular Márcio Thomaz Bastos encontrava-se em viagem oficial à Suíça, para firmar um acordo de cooperação), fundamentou-se no art. 26, combinado com o art. 7º, inciso II, do referido “Estatuto”. Nos termos do art. 26 da Lei, “o visto concedido pela autoridade consular configura mera expectativa de direito, podendo a entrada, a estada ou o registro do estrangeiro ser obstado ocorrendo qualquer dos casos do artigo 7º, ou a inconveniência de sua presença no território nacional, a critério do Ministério da Justiça”. O art. 7º, inciso II, referido pelo art. 26, dispõe que “não se concederá visto ao estrangeiro considerado nocivo à ordem pública ou aos interesses nacionais”.
O art. 65 da Lei, por sua vez, diz ser “passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais” (Textos da lei encontrados em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Coletânea de Direito Internacional, 2ª ed. São Paulo: RT, 2004, pp. 749, 751 e 756).
Em nota divulgada pelo Ministério da Justiça, do dia 11 deste mês, o Ministro interino afirmou que “em face de reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do presidente da República Federativa do Brasil, com grave prejuízo à imagem do país no exterior, publicada na edição de 9 de maio passado do jornal The New York Times, o Ministério da Justiça considera, nos termos do artigo 26 da lei nº 6.815, inconveniente a presença em território nacional do autor do referido texto”.
Num primeiro momento, sem nos adentrarmos no problema atinente à constitucionalidade, não nos parece que a conduta do jornalista, ainda que ofensiva à honra pessoal do Presidente, possa ser enquadrada dentre as que a lei considera nocivas “à ordem pública ou aos interesses nacionais”. Como destaca Dardeau de Carvalho, o conceito de nocividade é bastante relativo, devendo a proibição, neste caso, “atingir os estrangeiros que, por sua conduta no país de origem ou em outros países, se revelem potencialmente capazes de ofender a nossa ordem pública” (DARDEAU DE CARVALHO, Alciro. Situação jurídica do estrangeiro no Brasil. São Paulo: Sugestões Literárias, 1976, p. 27).
Pode ser expulso, de acordo com o citado art. 65, o estrangeiro “cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais”. Como explica Mirtô Fraga, “a jurisprudência brasileira ‘unânime em declarar que compete exclusivamente ao Presidente da República julgar se o estrangeiro é nocivo à conveniência ou aos interesses nacionais”, podendo o Judiciário “reexaminar, não o mérito da decisão presidencial, mas, apenas a sua conformidade formal com a legislação em vigor” (FRAGA, Mirtô. O novo Estatuto do Estrangeiro comentado. Rio de janeiro: Forense, 1985, p. 230).
Poderia, então, o Ministro da Justiça interino autorizar o cancelamento do visto do estrangeiro? E ainda que pudesse, poderia um visto ser revogado pelo fato de o estrangeiro ter exercido um direito assegurado pela própria Constituição, que é a liberdade de expressão e de imprensa?
Evidentemente, não é qualquer “procedimento” do estrangeiro que pode ser considerado “nocivo à conveniência e aos interesses nacionais”. Nocividade é um conceito complexo que exige uma interpretação atenta, ligada ao que dispõe o texto constitucional. Um jornalista não pode ser tratado como “inimigo” do país e submetido a uma medida dessa natureza, que deve valer para casos realmente graves e que afetem os interesses do país como um todo, o que não é o caso da reportagem publicada no jornal The New York Times.
O ato praticado pelo Executivo é inconstitucional, por violar o disposto no art. 5º, inciso IV, da Constituição brasileira de 1988, que diz ser livre a manifestação de pensamento, e art. 220, também da Constituição, que proíbe qualquer possibilidade de censura à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, seja qual for a sua razão (política, ideológica, artística, religiosa etc).
O art. 26 da Lei nº 6.815/80, ademais, está em total desacordo com o parágrafo 1º, do art. 220, da Constituição, que declara expressamente que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”.
Tudo isto somando vem mostrar, a nós cidadãos brasileiros, que o nosso Executivo federal tornou-se incapaz de tolerar a livre manifestação de pensamento e a liberdade de imprensa, que são uns dos direitos assegurados a quaisquer cidadãos, pela Constituição brasileira.
Quem sai perdendo com todo este desconforto, envolvendo retaliações do executivo e demandas judiciais? A resposta é: a própria imagem do Brasil no exterior, que passa, cada vez mais, a cair em descrédito perante as demais potências estrangeiras. A repercussão do caso em toda a imprensa mundial – visto como uma nova forma de censura, na sua forma mais severa –, depois do alarde feito pelo do próprio governo, serve para que o Brasil se torne alvo de desconfianças em relação à plenitude de nossa democracia e respeito para com os direitos humanos. Com isto tudo, perde o Direito, perde a Justiça e perde a Constituição.
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* Advogado
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