A inscrição de débitos tributários da União nos cadastros de órgãos de proteção ao crédito e sua legitimidade
Maria Leonor Leite Vieira*
Olívia Tonello Mendes Ferreira**
Não nos causa surpresa a repercussão que isso vem provocando. Não bastasse a alta carga tributária que nos é imposta, sem praticamente retorno, a preocupação do Fisco parece estar voltada cada vez mais para a arrecadação e menos para o modo como se gasta o produto obtido com a tributação. É uma verdadeira voracidade arrecadatória, que parece não ter fim.
Essa idéia da Procuradoria da Fazenda Nacional não é mais do que um belo exemplo disto. O que se pretende, na verdade, é aumentar a arrecadação, por meio da coação, constrangendo o devedor com a inscrição de seu nome no Cadastro de órgãos de proteção ao crédito, como é o caso do Serasa. Ou seja, a Procuradoria vai instalar um segundo modo de cobrança de seus créditos tributários, sem que, todavia, exista qualquer previsão legal para tanto.
Aliás, cumpre observar que os órgãos de proteção ao crédito, regidos pelo Código de Defesa do Consumidor - CDC (clique aqui), objetivam o registro de banco de dados referentes à consumidores, assim qualificadas as pessoas físicas e jurídicas que adquiram ou utilizam produto ou serviço como destinatário final, consoante determina o artigo 2º, do CDC, categoria na qual não se inclui o sujeito passivo da obrigação tributária, ou seja, a pessoa obrigada ao pagamento de tributos ou penalidade pecuniária.
Com efeito, cuidam-se de relações jurídicas completamente distintas e reguladas por diferentes diplomas normativos, que não lhes são reciprocamente aplicáveis. Isto é, as relações de consumo são regidas pelo CDC, ao passo que as obrigações decorrentes da relação jurídico-tributária, pelo Código Tributário Nacional – CTN (clique aqui) e outros diplomas relacionados, conforme o caso.
Se, todavia, admitirmos a aplicação do CDC às relações tributárias, como pretende a Procuradoria da Fazenda Nacional, ao inscrever as dívidas ativas da União no cadastro de órgãos de proteção ao crédito, então as implicações serão ainda maiores do que eles esperam. Isto porque, aquele diploma legal, em seu artigo n°. 71, qualifica como infração penal utilizar de coação ou constrangimento moral na cobrança de dívidas.
Nesta hipótese, a pretensão da Procuradoria da Fazenda Nacional de inscrever os débitos tributários em órgãos de proteção ao crédito encontraria óbice no próprio CDC, de forma que o Procurador que provocar a inscrição de débito tributário com a intenção de coagir o sujeito passivo a pagar o tributo devido incorreria na infração penal ali prevista.
A esse propósito, aliás, cumpre observar que a pretensão da Procuradoria da Fazenda Nacional de inscrever os débitos tributários em órgãos de proteção ao crédito encontra óbice no próprio CDC, que qualifica como infração penal utilizar, na cobrança de dívidas, de coação ou constrangimento moral, consoante resta consubstanciado em seu artigo n°. 71.
In casu, a coação, por parte da Fazenda, é evidente. Sua intenção não é outra que não o aumento da arrecadação aos cofres públicos. Basta ver que está sendo anunciada, com empolgação, a expectativa do aumento da adimplência dos créditos tributários, após as inscrições no Serasa começarem a ser efetuadas. Desta forma, resta inconteste que a inscrição dos débitos tributários da União nos cadastrados de órgãos de proteção ao crédito não pode ser realizada nos termos em que pretendido.
Mas este não é o único problema que se vislumbra. Como há muito já lecionava Hely Lopes Meirelles, "na Administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza"1. Ou seja, o Agente Administrativo tem suas atribuições limitadas pelo Princípio da legalidade, não podendo estendê-las a seu critério.
A Procuradoria da Fazenda Nacional já dispõe do instituto da execução fiscal para cobrar seus créditos tributários, gozando a dívida ativa da presunção de certeza e liquidez, havendo, ainda, a possibilidade de constrição legitima de bens do devedor, caso este se mantenha inerte no pagamento da dívida. Não pode, pois, ao seu bel prazer, criar novas formas de exigência do crédito tributário, sob pena de afrontar o próprio Princípio da legalidade.
Para que se pudesse cogitar de eventual inscrição de créditos tributários em cadastros de órgãos de proteção ao crédito, seria imprescindível a existência de lei autorizando tal inscrição, o que não foi feito até o presente momento. E nem se argumente que Portaria do Ministro da Fazenda tem o condão de suprir tal ausência.
A Constituição da República (clique aqui) determina, em seu art. n°. 61, § 1º, inciso II, alínea "b", ser de iniciativa do Presidente da República as leis que disponham sobre "organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios."
O mesmo diploma legal, prevê, ainda, em seu artigo n°. 84, inciso VI, alínea "a", ser de competência privativa do Presidente da República dispor, mediante decreto, sobre "organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesas nem criação ou extinção de órgãos públicos."
Assim, eventual alteração das atribuições da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional deve, necessariamente e por disposição constitucional, ser definida por lei ou, excepcionalmente, na hipótese de não implicar aumento de despesas, por exemplo, por decreto.
Desta forma, caso o convênio firmado entre a Procuradoria da Fazenda Nacional e o Serasa implique aumento de despesas da Procuradoria, necessitará de lei autorizando sua instituição, e, por via de conseqüência, a inclusão dos débitos inscritos em divida ativa no cadastro do citado órgão. Por outro lado, se tal convênio não causar aumento de gastos à Procuradoria, necessitará que a autorização para tanto venha por meio de decreto e não simples Portaria Ministerial. Afinal, haverá alteração na organização e funcionamento da Procuradoria e nas atribuições deste órgão.
A esse respeito, aliás, impende observar que essa iniciativa da Procuradoria da Fazenda Nacional não é nova; alguns Estados já chegaram a instituir lei, autorizando a inclusão dos nomes de pessoas físicas e jurídicas inadimplentes com a Secretaria da Fazenda do Estado, em bancos de dados de órgãos de proteção ao crédito, como é o caso do Estado do Espírito Santo, cuja Assembléia Legislativa criou a Lei n°. 6.835/01 (clique aqui) com tal objetivo.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal - STF2, em julgamento realizado no dia 30.8.2007, apreciando a ADIn nº. 2857 (clique aqui), reconheceu a inconstitucionalidade formal do mencionado diploma legal – Lei n°. 6.835/01. Neste julgamento, o STF aplicou o "princípio da simetria": se a Carta Constitucional prevê a iniciativa do Presidente para propor leis que disponham sobre organização administrativa, também caberia ao governador do Espírito Santo, no âmbito estadual, a iniciativa de leis da mesma espécie.
Não obstante os problemas já mencionados, outro ponto deve ser observado. O sigilo fiscal é garantia do contribuinte, que não pode ser flexibilizada por mera vontade da Administração Pública. O artigo n°. 198, do CTN, obsta a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.
E embora o § 3º, inciso II, do citado dispositivo legal, não proíba a divulgação de informações relativas à inscrição na Dívida Ativa da Fazenda Pública, tal dispositivo deve ser entendido de forma restrita, não se podendo conceber que a situação fiscal dos contribuintes seja exposta a qualquer um, sem o menor critério.
As informações fiscais dos contribuintes tanto não podem ser divulgadas a qualquer pessoa, que a Procuradoria da Fazenda Nacional só emite Certidão Negativa de Débitos ou Positiva à própria parte interessada ou a representante desta.
A situação é preocupante e certamente dará ensejo a inúmeras discussões e, ao que é mais preocupante, a diversas ações judiciais. Se a intenção da Fazenda Nacional é justamente diminuir as ações executivas para arrecadação dos tributos, os efeitos podem ir muito além do esperado.
A Carta Constitucional, em seu artigo 5º, inciso V, alça à garantia constitucional o direito à indenização por dando material, moral ou à imagem. Nesse sentido, são inúmeras as ações existentes em curso no Poder Judiciário, em que se discutem indenizações decorrentes da indevida inscrição em cadastros de órgãos de proteção ao crédito.
Em determinadas situações, as pessoas sofrem prejuízos não só de índole moral, mas também material, uma vez que, não raramente, são obstadas de realizar negócios em função da inscrição de seu nome no cadastro de inadimplentes, quando, em verdade, a inscrição não tem razão de ser. Aqueles que se sentem lesados têm o direito de recorrer ao Poder Judiciário para ser indenizado, sendo que a jurisprudência tem se manifestado favoravelmente às suas causas.
Transportando tal possibilidade para os supostos débitos tributários a serem inscritos em eventuais cadastros de órgãos de proteção ao crédito e levando em consideração que grande parte dos supostos créditos da Fazenda Pública, ao serem discutidos judicialmente, ou mesmo na esfera administrativa, são derrubados, seria recomendável que a Procuradoria da Fazenda repensasse sua intenção.
A indevida inscrição do nome de um cidadão nestes cadastros, conforme resta pacificado na jurisprudência, por si só, caracteriza o dano moral, gerando, por conseguinte, direito à indenização. Assim, todo contribuinte que, porventura, tenha seu nome inscrito no cadastro de inadimplentes em razão de crédito tributário que venha a ser desconstituído, ainda que posteriormente à inscrição, terá o direito constitucional a postular indenização.
A situação se complica ainda mais se o contribuinte sofrer danos materiais em razão de tal inscrição, pois, nesta hipótese, a União deverá recompor o prejuízo causado à parte.
Além do que, é fato público e notório a deficiência no quadro funcional da Procuradoria da Fazenda, havendo poucos procuradores para o elevado número de processos ali existentes, afora as outras atividades pelas quais são responsáveis. Atribuir-lhes mais esta função, de selecionar e enviar os débitos a serem inscritos em cadastros como o do Serasa, não só lhes dificultará a realização da enorme carga de trabalho que já possuem, como ainda implicará uma responsabilização civil e penal por eventual inscrição indevida que venham a realizar. Isto porque, embora a Administração responda objetivamente por danos que seus agentes causarem a terceiros, há o direito de regresso.
Fato é que, ao invés de resolver um suposto problema na arrecadação de tributos, a medida pretendida pela Procuradoria da Fazenda Nacional, se instaurada, acabará por gerar inúmeros outros problemas (proliferação de ações e abarrotamento do Poder Judiciário, acúmulo de atribuições aos procuradores, dentre outros) e prejuízos ao Erário, o que pode ser evitado, se mantida a forma de arrecadação legalmente prevista, isto é, o procedimento de execução fiscal.
Como não sabemos o teor do ato normativo que a Procuradoria da Fazenda editará, na tentativa de legitimar essa questionável atitude, nos limitaremos a essas considerações. No entanto, cabe advertir que a situação pode ser ainda mais critica. Serão os sócios, administradores ou gerentes inscritos como co-responsáveis pelos débitos tributários de suas empresas, nestes cadastros? E os sucessores? Quais os critérios a serem adotados para a inscrição?
Vários são os questionamentos que nos vem em mente ao tratar do assunto, o que só nós faz por em dúvida a eficiência do procedimento a ser adotado, bem como pensar nas conseqüências que advirão com esta medida. Diante do exposto, não vemos, como aceitar, passivamente, este projeto da Procuradoria da Fazenda Nacional, mas, ao contrário, o consideramos um verdadeiro retrocesso.
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1 Direito Administrativo Brasileiro, 2ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1966, p. 55
2 Informação obtida no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal.
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*Advogada e sócia do Barros Carvalho Advogados Associados
**Advogada do Barros Carvalho Advogados Associados
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