Migalhas de Peso

O juiz e o cidadão

O objetivo da atividade pública não se confunde com o horizonte da ação privada; enquanto esta busca fundamentalmente lucros, a outra reclama boa prestação de serviço. Este deve ser o objetivo de todos os servidores públicos em todas as esferas do poder.

31/8/2007


O juiz e o cidadão

Antonio Pessoa Cardoso*

O objetivo da atividade pública não se confunde com o horizonte da ação privada; enquanto esta busca fundamentalmente lucros, a outra reclama boa prestação de serviço. Este deve ser o objetivo de todos os servidores públicos em todas as esferas do poder.

O empresário deve explicações ao dono da empresa, através de seus prepostos, enquanto o funcionário público tem a obrigação de prestar contas ao povo; aquele quer aumentar o patrimônio que administra, enquanto o ganho do outro se situa na facilitação da vida do cidadão. Ambos, empresário e prestador de serviço na área pública, não podem ser prepotentes, antipáticos, extravagantes, arrogantes, mas inserir em seu perfil o cavalheirismo, a simpatia, a humildade.

Ouvido o povo entende ser a justiça antiquada, acomodada, lenta, elitista e ineficiente. Ninguém nega o mau relacionamento entre o cidadão e o Judiciário e este afastamento inicia-se internamente, pois o próprio servidor não tem fácil acesso ao magistrado. Imagine-se o cidadão comum! Esta distância não pode nem deve prevalecer, pois a perfeita democratização do Judiciário situa-se exatamente na confiança do povo na Justiça que tem.

A estrutura emocional do homem altera-se na medida em que obtém maiores poderes. Quando isto acontece e a autoridade não consegue reprimir este instinto prejudicial ao exercício da função pública, ingressa-se no terreno da futilidade. Na magistratura, o fenômeno impede a aproximação cidadão/Judiciário. Na verdade, como já se disse, "o juiz deve sentir o que o povo sente, perceber sua angústia, as dores, não se ausentar do mundo para ser mero aplicador da lei".

Em tempos nos quais a Associação dos Magistrados Brasileiros busca aproximação do Judiciário com a sociedade, através de várias frentes de trabalho, a exemplo da Campanha pela Simplificação da Linguagem Jurídica, o juridiquês, da Campanha Contra a Corrupção, oportuna é a conscientização do magistrado de que ele é um homem e, portanto falível.

É obsoleta a expressão de que "a Justiça tarda, mas não falha"; verdadeira, real é a outra expressão de que "a Justiça falha, quando tarda".

Assim, nós magistrados temos de assumir parte da culpa pelo atraso na prestação jurisdicional. Insuficientes as motivações de más leis, de falta de estrutura, etc; prevalecem tais alegações, mas se o juiz cumprisse sua parte no sistema, certamente, o clamor público contra a instituição diminuiria. Quantas vezes o julgador tem condições de dirimir conflitos por meio de simples decisões! Faltam, em alguns, coragem para resistir às tentações das benesses oferecidas pelos poderosos em prejuízo do mais fraco.

O magistrado deve ter a certeza de que a reconsideração de uma decisão não é covardia, mas revisão de convicção, não admitida pelos teimosos que insistem em permanecer no erro para salvar as aparências; a humildade que deveria ser elementar, torna-se qualidade, dada a prática deste atributo por poucos.

Os juízos não são fábricas de injustiças. As pesquisas mostram a descrença do povo no Judiciário; este posicionamento não é isolado, mas conseqüência da desilusão do cidadão em todos os serviços prestados pelo poder público. A expectativa que se tem desses serviços é de eficiência, mas a prática mostra outro universo.

A litigiosidade contida cresce e o cidadão não entende a morosidade para solução de pequenas causas, desentendimentos do dia-a-dia. As boas práticas, a exemplo do sistema dos Juizados de Pequenas Causas, depois Juizados Especiais, são interrompidas pelo legislador ou até mesmo pelo operador do direito.

O parlamentar busca inovação para acomodar as pretensões de quem sustentou sua campanha política e inova mudando regras ainda não testadas; por outro lado, o julgador mantém a forma artesanal no trabalho e não absorve as alterações, porque convive melhor com as práticas mecânicas e tradicionais. Assim mudam-se as leis antes mesmo de se constatar seus resultados; assim, deixa-se de aplicar a lei, porque a tradição indica outro caminho.

A expressão "eu te processo", em uso por ocasião da instalação dos Juizados de Pequenas Causas, Lei 7.244/84 (clique aqui), perdeu força com a alteração de 1995, Lei 9.099 (clique aqui), e posteriores mudanças, responsáveis pela acomodação da outra expressão mais conhecida e apreciada pelos poderosos: "vá procurar seus direitos".

O juiz, no emaranhado de leis que traça seu procedimento, distancia-se do cidadão, sedento para receber o que lhe foi retirado pela violência do mais forte. A incoincidência do direito material com o direito formal, a existência da verdade processual e da verdade real, a competência de um juízo para julgamento do povo e de outro para julgamento das autoridades; os privilégios conferidos ao Estado quando em demanda com o cidadão, a exemplo de prazos mais elásticos, de precatórios, tudo isto e muito mais, não é entendível pelo cidadão.

O futuro, entretanto mostra novo perfil do juiz, na expressão de Maurice Aydalot e Jacques Charpentier:

"Não é proibido sonhar com o juiz do futuro: - cavalheiresco, hábil para sondar o coração humano enamorado da Ciência e da Justiça, ao mesmo tempo em que insensível às vaidades do cargo; arguto para descobrir as espertezas dos poderosos do dinheiro; informado das técnicas do mundo moderno, no ritmo desta era nuclear, onde as distâncias se apagam e as fronteiras se destroem, onde, enfim, as diferenças entre os homens logo serão simples e amargas lembranças do passado."

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*Desembargador do TJ/BA






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