O nosso direito tem como fonte o direito romano, que por sua vez tem um brocado que diz: prior in tempore, potior in iure. Esse brocardo latino pode ser traduzido como "que for primeiro no tempo, é mais forte no direito".
É intuitivo que numa fila a prioridade é de quem chegou primeiro. Vemos isso quando notamos que normalmente a prioridade dos créditos é determinada pela anterioridade da penhora do bem, quando a preferência de trânsito em uma rotatória é de quem nela chega primeiro ou ainda a prioridade para estacionar é de quem numa vaga antes estaciona. Os exemplos do dia-a-dia seriam muitos. E no registro de imóveis não é diferente. Nele há o princípio da anterioridade, que estabelece qual direito deve prevalecer quando dois direitos contraditórios colidirem.
Isso está previsto na Lei dos Registros Públicos (lei 6.015/73), no art. 186, que diz: o número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente. Há raras exceções, mas igualmente previstas em lei (arts. 189 e 192).
Além de ser intuitiva a prioridade de um documento primeiro apresentado, esse princípio da anterioridade é desdobramento de outro princípio ainda maior, que é o princípio da segurança jurídica. Todo o sistema notarial e registral é sustentado por esse verdadeiro princípio mãe. Se compararmos com uma árvore, o princípio da segurança jurídica é o tronco, do qual saem vários os galhos de outros princípios, como o da anterioridade, da disponibilidade, da especialidade, da unitariedade da matrícula, etc.
Todos os juristas sabem que um princípio é muito mais importante que uma norma isolada, pois ele é fundamento de todo um sistema lógico e coeso. O princípio jurídico, comparativamente a uma construção, é uma coluna de sustentação ou uma viga muito importante. É possível retirar de um prédio uma janela, uma porta ou até uma parede inteira. Mas a retirada de uma coluna ou de uma viga pode causar graves danos ou até a ruína do edifício.
Infelizmente, o Conselho Nacional de Justiça, neste mês de dezembro de 2024, ao editar o provimento 188, estabeleceu no § 3º do art. 320, I que:
"A superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, salvo exista na ordem judicial previsão em contrário".
Assim nasceu a regra de que a ordem de indisponibilidade superveniente se sobrepõe a qualquer título, como uma escritura de compra e venda que tenha sido feita num tabelionato e protocolada no cartório de imóveis.
Essa previsão é desastrosa, pois não há o menor sentido em ser proibido o registro de uma escritura feita quando nenhuma indisponibilidade existia, especialmente se essa escritura já tinha sido protocolada no registro de imóveis antes mesmo de a indisponibilidade existir.
Imagine que você queira comprar um imóvel, além da escritura, é do nosso sistema que ela tenha que ser registrada no cartório de imóveis. Você toma todas as cautelas do mundo para que o negócio não tenha riscos, paga todo seu dinheiro pelo bem, inclusive tributos, leva a escritura para o cartório de imóveis e lá, dentro de alguns dias o registro será feito. Digamos que dois dias depois disso, surge uma ordem de indisponibilidade, que chega de imediato pela via eletrônica. Segundo a regra aqui criticada, não poderá o imóvel ser registrado em nome de quem o comprou e pagou: você. Isso é um absurdo.
Não se pode presumir a má-fé ou o conluio de quem agiu com todo o cuidado e diligência. Se a justiça identificar algo errado, pode dar uma ordem para que um título certo e determinado não seja registrado. Igualmente, em certos casos, pode ser a matrícula do imóvel bloqueada. Mas ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal. Isso é assegurado pela nossa Constituição (Art. 5º, LIV), entre os direitos e garantias individuais, que são cláusulas pétreas, que nem podem ser objeto de supressão por emenda constitucional. Com maior razão, não é uma regra administrativa que poderá fazer isso, ainda que proveniente do CNJ.
Evidentemente, por mais respeito que mereça o Conselho Nacional de Justiça, cujos membros integram a elite intelectual do direito nacional, não pode esse órgão, de natureza administrativa, por um Provimento, ir contra a Constituição Federal, contra a lei 6.015/73 e os mais basilares e importantes princípios de direito em geral e notarial e registral em particular.
O Provimento em questão tem vários méritos e aprimoramentos. O seu propósito foi o de melhorar o regramento anterior (provimento 39) sobre o mesmo tema: a Central Nacional de Indisponibilidade de Bens. Esse objetivo foi alcançado e merece elogios.
Porém, a regra de que a superveniência de ordem de indisponibilidade impede o registro de títulos, ainda que anteriormente prenotados, é um tumor maligno que foi inserido num organismo até aqui sadio e plenamente funcional, pois havia 10 anos que a CNIB vinha produzindo ótimos resultados, sem essa regra draconiana, que ameaça direitos civis fundamentais.
O provimento 188 do CNJ é bom e merece vários elogios. Ele melhorou a CNIB. Mas a regra em questão precisa ser urgentemente suprimida ou ao menos ter sua eficácia suspensa, para maiores estudos, debates e para evitar prejuízos e males maiores.
Vamos citar um exemplo hipotético, mas perfeitamente factível. Uma pessoa vende na mesma escritura dois imóveis, situados nas áreas de diferentes cartórios. A escritura é protocolada eletronicamente, no mesmo dia, nos dois cartórios. Ambos trabalham dentro dos prazos legais, mas um consegue ser mais ágil e registra a aquisição no dia 5. No dia 7 chega no sistema uma ordem de indisponibilidade. O outro cartório vai fazer o registro no dia 9, dentro do prazo legal. O que ocorre, segundo essa terrível regra? O comprador dos dois imóveis adquirirá de forma válida o imóvel registrado no dia 5, mas estará impedido de adquirir o outro, que seria registrado no dia 9. Como explicar isso a alguém? Por que a aquisição do segundo imóvel deve ser sacrificada? O comprador vai precisar mover um processo para conseguir ter o bem em seu nome? Quanto tempo isso vai demorar? Ele terá que desfazer o negócio e pedir o dinheiro de volta? O vendedor ainda terá o dinheiro para poder devolvê-lo? Vejam que essa regra cria problemas, que vão gerar processos, que até aqui eram evitados. O conflito entre direitos não pode gerar mais conflitos ainda. Isso vai na contramão da finalidade dos serviços extrajudiciais.
No nosso sistema, a aquisição de um imóvel exige o título e o modo, ou seja, é preciso que se tenha um documento que retrate um negócio e que esse documento, normalmente uma escritura, seja levado ao cartório de imóveis para ser registrado e assim produzir todos os efeitos legais, inclusive contra terceiros.
A ordem de indisponibilidade deve ser protocolada e entrar na ordem cronológica como qualquer outro documento, para que produza efeitos a partir daí e não retroativamente. A retroatividade da restrição de direitos é algo que não se admite. Imagine alguém ser proibido hoje de fazer algo e isso alcançar os negócios feitos na semana passada, no mês passado? Imagine isso alcançar e prejudicar quem negociou com a pessoa afetada e não tinha a menor condição de saber que corria tamanho risco?
A indisponibilidade é uma restrição ao direito de a pessoa dispor de seus bens. Ela é normalmente estabelecida no interesse de outra pessoa, como um credor. A pergunta que se faz é: por que um terceiro, normalmente detentor apenas de direito pessoal, deve ter seu direito prevalecendo sobre o credor de um direito real, como o direito de propriedade, mesmo tendo este já protocolado seu título aquisitivo consistente em um ato jurídico perfeito, em momento que direito do credor da indisponibilidade nem sequer existia?
Em outras palavras, por que um direito até então inexistente pode prevalecer sobre outro perfeitamente hígido? Seria preciso uma importante ponderação que justificasse essa prevalência. Mas, como é sabido, a ponderação exige a análise de um caso concreto e jamais uma regra geral, especialmente uma regra administrativa, ilegal, ilógica e inconstitucional. A regra em questão afronta o propósito de aperfeiçoamento das atividades dos serviços notariais e de registro, que é uma finalidade prevista no art. 8º, X, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça.
Entre nós vigora um novo princípio chamado de “princípio da concentração dos atos na matrícula”. Ele existe há quase 10 anos e está previsto na lei 13.097/15, nos arts. 54 a 58. Isso foi reforçado quando recentemente se instituiu a certidão de situação jurídica do imóvel, prevista na lei 14.382/22. Esse princípio estabelece que as informações a respeito da situação jurídica de um imóvel devem estar inseridas na matrícula desse imóvel.
Até mesmo as indisponibilidades são inseridas nas matrículas e depois são canceladas quando elas deixam de existir. O que juridicamente importa é a publicidade do registro e não a inserção da restrição na CNIB, que não tem a mesma publicidade que o registro tem.
A não surpresa é um princípio expressamente previsto no processo civil. Mas, a norma em questão implementa a surpresa e até mesmo o medo no processo registral imobiliário. A quem beneficia a regra que criticamos e que coloca a perder todas essas conquistas?
Em conclusão, podemos dizer que a indisponibilidade de bens trouxe inúmeras vantagens e deve ser cada vez mais aprimorada. Porém, não podemos ter a indisponibilidade retroativa. A Constituição, as leis, os direitos, a boa-fé e os princípios registrais devem ser respeitados pelo mais elevado órgão da administração da justiça do Brasil, por meio da revisão da regra em questão. Isto é o que respeitosamente defendemos neste singelo artigo acadêmico, mas escrito por pessoas especializadas que vivem teoria e a prática diária do direito notarial e registral imobiliário.