1. Dissociação introdutória
“Se não têm pão, que comam brioches” é uma frase costumeiramente atribuída a Maria Antonieta, que a teria proferido, de maneira frívola, ao ser comunicada de que os camponeses não teriam o que comer.1
Os historiadores afirmam que muito provavelmente a emblemática figura guilhotinada na Revolução Francesa, não proferiu a frase que lhe é atribuída.2
Este artigo, por outro lado, é menos sobre guilhotinas, Maria Antonieta e Revolução Francesa e mais sobre as garantias processuais, devido processo legal e acesso à justiça.
2. Democracia, contraditório efetivo e devido processo legal
Enquanto o sacerdote surgir como um tipo superior de homem, esse negador, caluniador e envenenador da vida por profissão, não haverá resposta para a pergunta: o que é a verdade?3
Friedrich Nietzsche
Afastando-nos de verdades reveladas e inabaláveis, dos dogmas, incontestáveis, precisamos falar sobre devido processo legal, contraditório efetivo, democracia, e Estado Democrático de Direito, com paixão, mas não como o sacerdote crente de sua verdade e que nega a própria realidade, a vida.
Nomear procedimento que disciplina julgamento eletrônico assíncrono e sem a possibilidade de debates efetivos entre os julgadores, a realização de sustentação oral síncrona pelo advogado, e de interrupções pela ordem, de “sessão de julgamento eletrônico” não torna o ato “sessão de julgamento”.
O sentido pretendido não suplanta aquele inerente à realidade, pois não se nega o fenômeno fático se negando a percebê-lo ou a compreendê-lo.4-5
Esta discussão se liga, em alguma medida, à discussão do fenômeno quântico, à ideia de que a nossa realidade é uma representação dentre diversas possíveis e que a matéria se comporta simultaneamente de todas as maneiras até que seja observada.6
O centro seria o observador, que na condição de receptor da realidade a significa a partir de seus sensores, seus mecanismos de percepção possíveis da realidade.
A informação, o mundo fenomênico, sem o observador, estaria em standby7; na percepção residiria a sua validação e a validação de seus fenômenos.
Nada existe se não for observado e significado. A existência, não mais filosófica, mas física, se pautaria na significação. A própria realidade, enquanto bits de informação pairaria como no paradoxo do gato de schrödinger em múltiplos estados, coexistentes, antitéticos, porém harmônicos, até que a observação da informação tornasse a coexistência dos fenômenos, antitéticos, insuportável.
Este artigo não é menos sobre Nietzsche, metafísica e filosofia do que sobre Direito. Então, ao pretendermos nos afastar do sacerdote, crente de sua verdade e “envenenador da vida”, pois em essência, “negador”, chegaríamos numa antítese: como observadores dos fenômenos, quanto mais nos distanciamos do sacerdote, mais sacerdote somos (crentes de nossa realidade, do significado que imprimimos a ela, mesmo que negadora da vida e da realidade).
A maleabilidade e a descrença, ou a crença ponderada pela razão, pressupõem, da mesma forma, um “tipo superior de homem”.
É neste super-homem, antítese do super-homem sacerdote, que se encontra a negação da negação, portanto, em alguns momentos, um retorno à tese.
Aquele que questiona, portanto, essencialmente questionador, afirmará, numa negação da negação que pressupõe a “unidade sobre o dilaceramento”8, menos como uma conformação entre a complementaridade dos papéis antitéticos numa luta pelo poder que se constitui para a gestão de um mesmo sistema, a partir de falsas lutas espetaculares e mais sob o aspecto de receptor da realidade, que ao percebê-la, transforma a informação, num dado interpretado, um discurso, que circulará junto aos demais; o “além-do-homem” também pressupõe, ao que nos parece, a tentativa de fixar o seu discurso como monumento.
Numa perspectiva da arqueologia do saber, transformamos discursos enquanto documento, em monumento9, compreensão, fixação da realidade subjetiva, pois realidade percebida e compreendida num determinado momento histórico.
Tomando, aqui, a “unidade sobre o esfacelamento” e aceitando alguma contradição no discurso, precisamos compreender que, afastando-nos do sacerdote, precisamos, também, sermos, nós, crentes da razão. Mesmo que isto pressuponha alguma dose de “super-humanidade”.
3. Democracia, contraditório efetivo e devido processo legal: Continuação
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
[...].
Carlos Drummond de Andrade
O que se defende é que, não se deve ser poeta de um mundo caduco10, sendo tão grande o presente e enorme a realidade, como no poema de Drummond.
As tecnologias podem ser utilizadas em favor da melhoria da prestação jurisdicional, do acesso à justiça, as sessões de julgamento híbridas, síncronas, são um exemplo disto.
Como crentes da racionalidade e questionadores de uma (não)razão imposta, não podemos ser poetas de um mundo caduco e aceitar que a imposição de um significado é capaz de alterar a própria coisa, como se impor que “sustentação oral” gravada, peticionada através do sistema eletrônico do tribunal, pudesse tornar a gravação sustentação oral.
A palavra e o discurso significam a realidade, mas a definição do fenômeno, em ato normativo, doutrina ou jurisprudência, contrariamente à sua essência, não tem o condão de alterar a sua natureza e percepção.
Sustentação oral por peticionamento eletrônico, assíncrona, é mais um registro histórico do que sustentação oral.
É um dado, um registro, que existe numa contradição entre existência e inexistência, até que seja atentamente assistida pelos julgadores.
Precisamos ser sacerdotes da realidade e defendê-la, que não significa negar o potencial transformador e a crença no futuro. A lei ou o ato normativo não são capazes de modular a percepção do mundo fenomênico e dos significados historicamente construídos. A lei não é uma lente que altera a realidade, embora a lei seja cogente.
Sejamos a Antígona que questiona a lei de Creonte11 e tomemos em conta Drummond para que não nos tornemos poetas de um mundo caduco.
4. Conclusão
[...]
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Carlos Drummond de Andrade
Defendamos com a paixão de um sacerdote crente a natureza de uma sessão de julgamento e da sustentação oral.
A paixão do sacerdote crente nem sempre é negadora da realidade e, algumas vezes, é necessário ser poeta de um mundo caduco, no sentido de um tempo pretérito, para que possamos ancorar a realidade.
Compreendamos que o contraditório efetivo e o poder de influência nas decisões judiciais como acepção moderna deste componente democrático do devido processo legal não existem num vídeo peticionado e desacompanhado da certeza de um olhar atento e interessado.
Não sejamos cantores de uma história, da paisagem vista da janela, nem distribuamos entorpecentes ou cartas suicidas.12
Estejamos presos à vida e fitemos nossos companheiros, taciturnos, mas nutrindo grandes esperanças. Entre esses companheiros, consideremos a enorme realidade; o presente é tão grande, vamos de mãos dadas, como diz Drummond.13
Este artigo é menos sobre Maria Antonieta, Carlos Drummond de Andrade e Friedrich Nietzsche e mais sobre a necessidade de se resistir aos poetas de um mundo caduco.
Sobre Maria Antonieta fica a lição: ditas ou não ditas, as palavras, muitas vezes surgidas da compreensão de um estado de espírito, real ou não, perduram e, por vezes, se sobrepõem à realidade.
Não é preciso verbalizar que na falta do pão se coma brioche se se impõe que na falta da sustentação oral síncrona se aceite um simulacro de sustentação oral.
“Ecce hommo"14, eis o homem, sou eu. Afirmamos a todo custo a nossa verdade, nossa superioridade, a superioridade de nossas ideias.
Entre crentes sacerdotes, poetas de um mundo caduco e brioches, pairam algumas reflexões.
________
1 Disponível em:. Acesso em: 18 de dezembro de 2024.
2 Disponível em:. Acesso em: 18 de dezembro de 2024.
3 NIETZSCHE, Friedrich, 1844-1900. O anticristo / tradução de Artur Morão. – Reimp. – Almedina (Edições 70): Lisboa, 2019, p. 20.
4 “O mundo verdadeiro foi por nós destruído: que mundo resta? talvez o aparente?... Mas não! Com o mundo verdadeiro destruímos igualmente o aparente!”
NIETZSCHE, Friedrich, 1844-1900. Crepúsculo dos ídolos. – (Textos Filosóficos; 3) / tradução de Artur Morão. – Almedina (Edições 70): Lisboa, 2017, p. 34.
5 “Os sentidos — que são tão imorais — enganam-nos acerca do verdadeiro mundo.”
NIETZSCHE, Friedrich, 1844-1900. Crepúsculo dos ídolos. – (Textos Filosóficos; 3) / tradução de Artur Morão. – Almedina (Edições 70): Lisboa, 2017, p. 27.
6 “Desculpem eventual má-interpretação ou má-compreensão por este autor da teoria da “Interpretação de Muitos Mundos", proposta inicialmente Hugh Everett III como solução aos paradoxos da mecânica quântica, especialmente, do “colapso da função de onda”. A teoria foi posteriormente desenvolvida por diversos outros pesquisadores, ramificando-se.
7 Em escala quântica, um sistema teoricamente poderia coexistir em todos os estados possíveis, um elétron poderia estar simultaneamente em vários lugares e, ao mesmo tempo, em lugar nenhum. (Disponível em:. Acesso em: 19 de dezembro de 2024).
8 “O espetáculo, como a sociedade moderna, está ao mesmo tempo unido e dividido. Como a sociedade, ele constrói sua unidade sobre o esfacelamento. Mas a contradição, quando emerge no espetáculo, é, por sua vez, desmentida por uma inversão de seu sentido; de que modo a divisão é mostrada unitária, ao passo que a unidade é mostrada dividida.”
Debord, Guy. A sociedade do espetáculo / Guy Debord; tradução Estela dos Santos Abreu. - Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 37.
9 O documento compreenderia a circulação dos discursos, é o seu registro ou apresentação, enquanto o monumento consistiria em uma sedimentação histórica, uma representação, que fixa um discurso, embora este discurso fixado seja a representação de um discurso sedimentado da compreensão histórica de um dado momento histórico ou ideia para um determinado contexto histórico.
Foucault, Michel, 1926-1984. A arqueologia do saber/Michel Foucault; tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, -7ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
10 Tanto no sentido de um poeta nostálgico, pretendido por Carlos Drummond de Andrade, como no sentido de um mundo sem razão ou que nega a racionalidade, o sentido das coisas e a própria realidade.
11 Sófocles. Antígona / Sófocles; tradução: Millôr Fernandes. - 1. ed. - São Paulo: Paz e Terra, 2021.
12 Como diz Drummond no poema “Mãos dadas”.
13 Aqui cabe uma comparação com Nietzsche, que na obra “Assim falou Zaratustra”, escreve:
“Yo no os enseño el prójimo, sino el amigo. Sea el amigo para vosotros la fiesta de la tierra y un presentimiento del superhombre. Yo os enseño el amigo y su corazón rebosante. Pero hay que saber ser una esponja si se quiere ser amado por corazones rebosantes. Yo os enseño el amigo en el que el mundo se encuentra ya acabado, como una copa del bien, - el amigo creador, que siempre tiene un mundo acabado que regalar. Y así como el mundo se desplegó para él, así volverá a plegársele en anillos, como el devenir del bien por el mal, como el devenir de las finalidades surgiendo del azar. El futuro y lo lejano sean para ti la causa de tu hoy: en tu amigo debes amar al superhombre como causa de ti. Hermanos míos, yo no os aconsejo el amor al prójimo: yo os aconsejo el amor al lejano. Así habló Zaratustra."
Em tradução livre:
"Eu não vos ensino o próximo, mas o amigo. Seja o amigo para vós a festa da terra e um pressentimento do além-do-homem. Eu vos ensino o amigo e o seu coração transbordante. Mas é preciso saber ser uma esponja, se se quer ser amado por corações transbordantes. Eu vos ensino o amigo em quem o mundo já está acabado, como um cálice do bem, – o amigo criador, que sempre tem um mundo acabado para oferecer. E assim como o mundo se desdobrou para ele, assim voltará a se dobrar em anéis, como o devenir do bem pelo mal, como o devenir das finalidades surgindo do acaso. O futuro e o distante sejam para ti a causa do teu hoje: no teu amigo deves amar o além-do-homem como causa de ti. Irmãos meus, eu não vos aconselho o amor ao próximo: eu vos aconselho o amor ao distante."
Nietzsche, assim como Drummond, prega o presente. Fala em “futuro”, no “devenir”, mas afirma que “[o] futuro e o distante sejam para ti a causa do teu hoje”, valorizando o presente, mas sob a perspectiva da crença no amanhã. Carlos Drummond de Andrade, no poema “Mãos dadas”, afirma que “[o] tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”, mas também afirma que “Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”; nutrem, os companheiros taciturnos, esperanças no futuro”, embora não devamos nos afastar do presente (“O presente é tão grande, não nos afastemos”). Drummond fala que não será porta de um mundo caduco, portanto, não se prenderá ao passado, mas, também, que não se prenderá no distanciamento do futuro, face a à vastidão da realidade e do hoje. Trata-se da necessidade de viver o presente com esperanças para o futuro.
14 “Eis o Homem”, em tradução livre.