O cerceamento de defesa, pelo Poder Judiciário, é a violação de sagradas garantias constitucionais, vale dizer, os princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como do devido processo legal, nos termos do art. 5º, incisos LIV e LV, da CF/88, aliás, conquistadas com muita luta, ferro e fogo.
Ô seu juiz, deixa-me falar! Tenho direito à prova! O cala-boca já morreu!
A prova é de todo o mundo! A prova pertence ao processo
Ora, é direito da parte produzir as provas que entende relevantes à comprovação de suas alegações; pois é seu o direito material em debate. Todos têm poderes de iniciativa instrutória.
Em consequência, devem ser admitidas as provas, privilegiando, por isso, é claro, o direito constitucional, e não a vontade arbitrária do magistrado quando, às vezes, diz que: não são necessárias e que há provas suficientes.
À vista disso, pela grande importância do debate, comento aqui uma decisão novíssima, na ação rescisória nº 0069342-30.2022.8.19.000, em 8/11/2024, da Seção de Direito Privado, do TJ-RJ. Trata-se de uma crítica epistemológica, que, aliás, deve sempre ser feita pela doutrina, academia e advogados. A propósito, cabe à doutrina encontrar respostas adequadas à Constituição.
Por isso, é preciso, sim, debater com o Poder Judiciário, que é o guardião dos direitos fundamentais. Mas é preciso coragem para se opor aos equívocos, que os tribunais dizem.
É preciso que acordemos do pesadelo do negacionismo jurídico. Não se pode jamais afrontar a Constituição. Não dá para ficar em cima do muro. Direito é escudo e lança!
Não bastasse, em regra, o “copiar e colar”, das decisões, sentenças e acórdãos e a resposta padrão nos embargos de declaração, recurso especial e recurso extraordinário. Incrível: o juiz não erra. O causídico nunca tem razão.
É um faz-de-conta de que há fundamentação...
Vejam, então, o imbróglio, o qual trago à baila pelo simbolismo. A questão de fundo é a violação de uma garantia constitucional: direito à prova. Não dá para passar batido. Está em jogo a democracia.
Entenda o caso
A demandante requereu o depoimento pessoal de uma parte (prova nova) para que fosse ouvida na ação rescisória, pois, havia relevância e pertinência da sua oitiva e, também, necessidade de esclarecer e jogar luz em fatos relevantes.
Como é sabido, na ação rescisória, observar-se-á, no que couber, o procedimento comum (art.970 CPC) e cabe à parte requerer o depoimento pessoal da outra parte, a fim de que esta seja interrogada. (art. 385 do CPC)
Sendo mais claro: isso importa dizer que o art.385 do CPC aplica-se a ação rescisória.
Além do que, na ação rescisória, se os fatos alegados pelas partes dependerem de prova, o relator poderá delegar a competência ao órgão que proferiu a decisão rescindenda, fixando prazo de 1 (um) a 3 (três) meses para a devolução dos autos. (art.972 do CPC)
Alguma dúvida?
Uma coisa importante: na fundamentação da apelação civil, da ação declaratória de união estável, rescindenda, o relator aduz.
“A narrativa de que o casamento com (...) teria perdurado por apenas um mês não é crível (...) “Assim, não está claro quando houve a separação de fato indispensável ao reconhecimento da união estável”
É sempre assim: não é crível, a meu sentir... Ora, isso é juízo moral. Subjetivismo e achismo que rimam com ativismo que, por sinal, faz prevalecer o desejo do julgador e não a vontade da Constituição e a lei.
Não obstante, a decisão do relator gerou imensa perplexidade:
“Outrossim, não vejo necessidade da tomada do depoimento do Sr. (...) por considerá-la desnecessária, já constando dos autos prova suficiente dos fatos em discussão”
Indago: não há necessidade? Prova suficiente? Como assim? E a garantia constitucional? Começa por aí o problema. Nada de novo. Se vê muito dessas decisões todos os dias. Há uma violação escancarada ao direito fundamental à prova.
Triste. Decide-se contrariamente à Constituição! É o arbítrio judicial!
Partes são titulares de direito subjetivo de produzir prova que lhes pareçam relevantes
É de uma obviedade óbvia que, pela engenharia constitucional, às partes são titulares de direito subjetivo de produzir prova que lhes pareçam relevantes. Não cabe ao Estado-juiz meter a colher, dizendo que “não vejo necessidade do depoimento por considerá-la desnecessária.”
Apesar do grande poder que o magistrado tem, jamais poderá impedir um depoimento pessoal. Juiz não pode ser protagonista. Querer ser o dono do mundo. Não há discricionaridade. Caso contrário, será despotismo judicial! Às vezes, deveriam calçar as sandálias das humildades.
Ora, a prova é de todo mundo! Deixa a testemunha falar! Qual o problema?
Vale lembrar que a Seção Civil do TJ-RJ tem mais 14 julgadores. Logo, a oitiva da parte pode, sim, ajudar no convencimento do relator e dos outros desembargadores, não é?
Fundamentação deficitária
Com a cordialidade e respeito de sempre, permito-me discordar do relator. Há um grande equívoco na sua decisão. Por quê? Primeiro, porque é, sim, uma decisão com fundamentação deficitária. Aliás, com três linhas, a qual pode servir para qualquer decisão.
Segundo: fundamentar uma decisão envolve explicar por a + b, o porquê. Por que não há necessidade da prova? Por que há prova suficiente? Porém, nada disso foi explicado.
Aliás, a fundamentação completa das decisões não é favor. É dever! É uma garantia do cidadão na democracia! Não basta dizer, “já constando dos autos prova suficiente dos fatos em discussão”, como diz o relator.
Terceiro, quais seriam às provas suficientes? Pois é. A “fundamentação” não diz. É omissa!
Quarto, e última, constatação: é de uma obviedade óbvia que: às partes caberá pedir a produção de provas que lhes pareçam relevantes, pois, como falado, são titulares do direito subjetivo de produzir prova, não é?
Explico: não se pode jamais impedir a parte de produzir prova que, em tese, poderia comprovar seu direito.
Isso tudo nos leva à pergunta de um milhão de dólares: às supostas “provas suficientes” alegadas pelo relator são favoráveis à parte autora, podendo justificar uma decisão que a beneficie?
Ou será o julgamento antecipado, vale dizer, um pré-julgamento, com o “livre convencimento”?
Pode uma decisão ser “fundamentada” no livre convencimento? Procurei no CPC. Não encontrei nada. No artigo 371 do CPC não existe a palavra livre.
Verdade seja dita, decidir de acordo com o livre convencimento não é decidir conforme a Constituição e a Lei. Em nome da ficção do livre convencimento milhares de pessoas estão perdendo direitos!
Do Direito Fundamental à produção da prova
A Constituição garante à ampla defesa, o contraditório (art.5º LV) e o devido processo legal (art.5º LIV), o qual teve origem no art.39 da Magna Carta de 1215, assinada pelo rei João Sem-Terra.
A propósito, sempre com todo o respeito, os tribunais não podem deixar de aplicar leis sem fazer jurisdição constitucional. Não existe a alternativa “não concordo com o legislador”, como fala o genial professor e jurista Lenio Streck.
Assim, há o direito subjetivo à prova; imprescindível à solução justa do litígio. Não há o mais ou menos. Não vale a ladainha de que não é necessária à prova. Ponto final.
Desse modo, a decisão proferida está, sim, na contramão das garantias constitucionais do direito à prova. É um escancarado cerceamento de defesa. Isso gera nulidade absoluta.
Em outro caso, no TJ-RJ, olha o problema-dos grandes- onde a fundamentação da decisão foi a seguinte:
“Indefiro a prova pericial requerida, por desnecessária. A mídia acautelada em Cartório demonstra plenamente não ter o autor conseguido cumprir as exigências do Edital”.
Inacreditável. Vem sempre a palavra mágica “desnecessária”. Muito pelo contrário. A mídia acautelada no cartório mostrava que o candidato cumpriu às exigências do edital fazendo 53 (cinquenta e três) abdominais, no tempo de 1 minuto, vale dizer, bem além dos 40 abdominais determinados pelo edital, estando, assim, por óbvio aprovado.
É assustador ver decisões como essas. Dá um arrepio na alma. Não são pontos fora da curva. Expõe o tamanho do problema. E a doutrina? Quem se preocupa por isso?
Mas existe coisa boa no Direito. Uma ótima notícia. O professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e desembargador Luiz Roldão de Freitas Gomes Filho, no agravo de instrumento, nº 0004672-46.2023.8.19.0000, deu uma aula de direito constitucional processual ao juízo, que indeferiu a prova pericial, mandando chamar o VAR. Observem:
“Com efeito, a Constituição da República estabelece como garantia fundamental o acesso à justiça (art. 5º, XXXV CRFB), que se materializa por meio da adequada prestação jurisdicional assegurado o devido processo legal. Nesse diapasão, a busca da verdade real é corolário do princípio do devido processo legal, como instrumento necessário para que se concretize o acesso à ordem jurídica justa. Assim, não se pode fazer justiça sem entender, com segurança, o quadro fático trazido à consideração do órgão judicante. Na medida em que a justiça da prestação jurisdicional se vincula ao compromisso do processo com a verdade real, e a essa só se chega mediante a instrução probatória, ao julgador é lícita a determinação de produção de provas a fim de que o conjunto probatório resulte completo”.
Da relevância probatória do depoimento pessoal
A principal finalidade do depoimento pessoal, como meio de prova, consiste em obter esclarecimentos e/ou a confissão sobre fatos relevantes à solução justa da causa.
Desse modo, esse meio de prova é de grande utilidade à boa instrução processual. Cumpre trazer, neste ponto, a doutrina do professor Alexandre Câmara:
“Sendo juiz e partes destinatários da prova, a todos eles são reconhecidos a existência de poderes de iniciativa instrutória. Às partes evidentemente caberá postular a produção de provas que lhes pareçam relevantes, pois é delas o direito material em debate e, por isso, são titulares de interesse de produzir prova.”
Todos são destinatários da prova
Conforme leciona o desembargador Alexandre Câmara:
“A prova possui dois tipos de destinatários: um destinatário direto, o Estado-juiz, e destinatários indiretos, as partes. A prova levada aos autos, pertence a todos, isto é, pertence ao processo, não sendo de nenhuma das partes (o que costuma ser chamado de “princípio da comunhão da prova”. (...) Na verdade, a prova tem por destinatários todos os sujeitos do processo (FPPC, Enunciado nº 50: “os destinatários da prova são aqueles que dela poderão fazer uso, sejam juízes, partes ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz’’.
Por outras palavras, todos atuam com o mesmo fim, qual seja, um processo justo. Uma Justiça justa. Em consequência, a atividade probatória deve ser destinada ao processo para que haja o melhor debate. Em consequência, o destinatário da prova não é somente o juiz.
Conclusão
O juiz jamais pode indeferir a produção de provas que achar desnecessárias, impertinentes e irrelevantes, ao seu bel-prazer, com subjetivismo e livre convencimento.
A prova é de todo o mundo! A prova pertence ao processo!
Há o direito subjetivo à prova pelas partes, pois é delas o direito material em debate. Logo, o destinatário da prova não é somente o juiz. Todos têm poderes de iniciativa instrutória!
Não se pode impedir a parte de produzir prova que, em tese, poderia comprovar seu direito. É óbvio que essas decisões não passam por uma filtragem hermenêutica-constitucional.
Cabe à doutrina encontrar respostas adequadas à Constituição, na proteção dos direitos fundamentais.
Ô seu juiz, deixa-me falar! Tenho direito à prova! O cala-boca já morreu!
Por favor, não altere a Constituição tanto assim! Mais respeito às garantias! Isso é pedir muito?
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CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2023, p.416/417, Gen/Atlas)