Em agosto de 2020, o atleta Bruno Medeiros Grassi, atualmente goleiro do Al-Ain Football Club, dos Emirados Árabes Unidos, demandou judicialmente a SEGA GAMES CO. LTD, uma desenvolvedora e publicadora japonesa de jogos eletrônicos e consoles, para condená-la ao pagamento de indenização por danos morais em razão da exploração indevida da imagem do futebolista, no valor de R$ 7,5 mil (sete mil e quinhentos reais) à época, para cada uma de suas doze aparições no jogo, sem prejuízo da condenação da empresa a realizar o pagamento do montante relativo ao enriquecimento sem causa para cada uma das respectivas aparições destacadas.
Nas razões de fato e de direito aduzidas, o atleta sustenta que, no início de 2020, descobriu que sua imagem, apelido desportivo e características pessoais vinham sendo, desde 2005, veiculadas nas edições do jogo eletrônico Football Manager, produzido, desenvolvido e comercializado pela SEGA, sem que o autor ou qualquer outro atleta nas mesmas condições tivesse recebido qualquer contrapartida pela utilização de sua imagem em quaisquer dos anos em que o jogo foi comercializado. Nesse cenário, sustentou ter havido violação ao seu direito de personalidade, o que ensejaria o arbitramento de danos morais em seu favor, bem como de danos patrimoniais, devido à ocorrência de locupletamento ilícito, à medida em que nunca foi remunerado por ter sua imagem comercializada, vinculada ao videogame.
Essa discussão não inaugura os debates acerca do tema, tampouco é a única nas instâncias ordinárias e superior e, após acalorados debates a respeito da resolução definitiva de controvérsias alusivas a esse imbróglio, sua afetação foi reconhecida pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 29/10/2024, no âmbito dos feitos a seguir, sob relatoria do ministro João Otávio de Noronha: REsp 2.112.558-SP, REsp 2.112.553-SP, REsp 2.112.566-SP, REsp 2.112.575-SP, REsp 2.112.563-SP, REsp 2.112.572-SP e REsp 2.130.751-SP.
Por ordem do STJ, ainda em 2021, na Suspensão em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas nº 79-SP (2021/0206612-0), foram suspensos todos os processos sobre indenização por danos extrapatrimoniais e patrimoniais por uso indevido de dados biográficos de profissionais do futebol no mesmo Football Manager, em atenção a um pedido da própria SEGA, formulado ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Em ulterior análise, já em instância Superior, o ministro Relator, Paulo de Tarso Sanseverino, aventou a hipótese de julgamentos divergentes em relação às mesmas questões jurídicas em outros estados da federação, de modo que a tramitação de feitos nos outros tribunais poderia gerar risco à segurança e à isonomia.
Hoje, munido dos recursos representativos da controvérsia do Tema 1289, a Corte Cidadã reconheceu a afetação dos recursos mencionados adrede ao rito previsto nos arts. 1.036 e 1.037 do Código de Processo Civil, bem como aos arts. 256 a 256-X do Regimento Interno do STJ, suspendendo a tramitação, em primeiro e segundo graus, dos processos, individuais ou coletivos, que versam sobre a mesma matéria, entre eles o do goleiro Bruno Grassi.
No voto, o Relator, ministro João Otávio de Noronha, consignou que a característica multitudinária da controvérsia foi identificada, visto que no acórdão de admissibilidade do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) 45/TJ/SP (0011502-04.2021.8.26.0000) constava informação sobre a propositura de 1.055 ações de indenização por indevido uso de imagem no mesmo Football Manager, propostas por ex-jogadores de futebol residentes em vários estados contra a SEGA, de janeiro de 2020 a março de 2021, apenas no Foro Central de São Paulo. Também destacou o impacto da presente discussão, ao passo que a versão de 2023 do jogo Football Manager está disponível, a princípio, em plataformas digitais como iOS, Android, Steam, Epic Games, PC Game Pass, Microsoft, Playstation 5, Xbox, Nintendo Switch, passíveis de aquisição no território.
No contexto ora apresentado, ausente orientação jurisprudencial firme dos órgãos do Superior Tribunal de Justiça que vise à formação de um precedente judicial dotado de segurança jurídica, a afetação foi reconhecida e as questões postas a julgamento são quatro, conforme se verá a seguir.
Minudenciando a controvérsia, tem-se que, no que se refere à competência, cinge-se a discussão acerca do foro competente para processar e julgar a ação de reparação de danos - se será o foro do domicílio do autor ou do lugar em que ocorreu o ato ou fato ilícito. Muito embora algumas cortes locais tenham se perfilhado por orientação diversa, há uma malha jurisprudencial no STJ cuja orientação é pela competência do foro do lugar do ato ou fato, de acordo com a regra do art. 100, V, "a", do CPC/73 (correspondente ao art. 53, inciso IV, alínea a, do CPC/15) (AgInt no AREsp 1403554/MS, Rel. ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 31/05/2021, DJe 04/06/2021. Nesse mesmo sentido: AgInt no REsp n. 1.686.393/MG, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe de 11/9/2018; AgRg no AREsp n. 561.480/RJ, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe de 26/8/2015, REsp 533556/SP, relator ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em 02/12/2004, DJ 17/12/2004, p. 556; REsp 191169/DF, relator ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 06/04/2000, DJ 26/06/2000, p. 178).
Quanto à prescrição, a discussão remanesce no momento em que o prazo previsto a teor do art. 206, §3º, V, do Código Civil, passa a transcorrer. Em 2018, a Segunda Seção do STJ teria encerrado a controvérsia existente na aludida Corte desde a entrada em vigor da legislação civil vigente no que se refere aos prazos de prescrição de obrigações contratuais e extracontratuais. Reconheceu-se que, nas hipóteses em que o referido diploma se refere a “inadimplemento contratual”, não há menção à expressão “reparação civil”. Desse modo, é de se concluir que o termo “reparação civil”, que vinha servindo de base para aplicação do prazo trienal (CC, V, § 3º do art. 206) foi utilizado pelo legislador apenas quando pretendeu se referir à responsabilidade extracontratual. Prevaleceu, destarte, a tese pelo prazo de dez anos para a responsabilidade civil decorrente do inadimplemento contratual e o trienal para obrigações extracontratuais (STJ, EREsp 1.280.825-RJ, 2ª Seção, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 2-8-2018).
No caso em apreço, a insurgência é em virtude da actio nata, se objetiva, isto é, aquela materializada no art. 189, do Código Civil, quando do momento em que violado o direito, o que dá azo para violações sucessivas e continuadas quando as imagens são comercializados em revistas, álbuns ou veiculadas em versões atualizadas e revendidas de jogos eletrônicos, ou quando o titular passa a ter ciência da vulneração de seu direito (actio nata subjetiva).
No tocante à supressio, caracterizada como a perda do direito subjetivo diante da inatividade do titular, face a circunstâncias idôneas a determinar, na contraparte, um investimento de confiança merecedor de proteção com base no princípio da boa-fé, questiona-se, então, se o período em que os atletas não se manifestaram a respeito de seus respectivos direitos não ensejaria a confiança das empresas em seguir comercializando e auferindo lucros à revelia dos futebolistas.
À guisa de exemplo, no julgamento do REsp 1.643.203, o instituto da supressio foi aplicado em litígio acerca de pedido de indenização de direitos autorais pelo uso por mais de quarenta anos de determinada obra sem qualquer espécie de cobrança. A indenização foi negada pela Terceira Turma sob o fundamento de que, “no caso concreto, foi reconhecida a existência de contrato válido entre as partes acerca da utilização gratuita de vinhetas protegidas pelos direitos de autor, uma vez que, à época dos fatos, não havia exigência legal quanto à forma escrita. O acordo foi observado pelas partes, de modo pacífico e tranquilo, ao longo de mais de 4 (quatro) décadas, com convivência amistosa entre elas. A modificação de comportamento abrupta por uma das partes não condiz com a boa-fé objetiva, fazendo incidir a suppressio, a despeito da vitaliciedade dos direitos autorais” (REsp 1.643.203-RJ, 3ª T., rel. Marco Aurélio Bellizze, DJe 1-12-2020).
Por fim, quanto à possibilidade de violação do direito de imagem dos jogadores apenas com a menção a desígnios representativos alegadamente de domínio público, a discussão torna-se ainda mais densa e interdisciplinar. Diariamente, nos deparamos, em diversos veículos de mídia, com inúmeras charges e caricaturas de figuras notórias, por exemplo, não sendo necessária a prévia autorização destes para a sua criação e veiculação. Tem-se entendido que tal exposição é inerente ao domínio público de suas pessoas, o mesmo para Clubes de Futebol cujos mascotes os representam.
Especialmente quanto à utilização com finalidade econômica da imagem de atletas, cuida-se de uma prática iniciada com os álbuns de figurinhas e que tem se adaptado à realidade de um mundo globalizado. Nesse sentir, em um universo no qual os jogos de futebol, basquete, baseball, entre outros, se destacam pelo realismo de seus gráficos, como EAFC, eFootball, etc., tornam-se facilmente reconhecíveis os atletas ali retratados. Muitos deles que já podem, inclusive, ser reconhecidos por seus nomes, individualmente, como um objeto de valor.
Futebolistas, principalmente, têm suas imagens transformadas em marcas. Um exemplo é o jogador Lionel Messi, com a marca “The Messi Store”, cuja coleção inspirada pelo espírito de trabalho em equipe e comunidade captura o espírito da vida casual cotidiana e projeta a imagem do ídolo mundial para além dos estádios de futebol. Há também casos emblemáticos relacionados aos elementos característicos e distintivos de um atleta. Ilustrativamente, Ronaldinho Gaúcho é identificado por elementos físicos, sendo despicienda a utilização da sua imagem para associar o retrato ou caricatura à pessoa. Daí a dificuldade nas negociações entre franquias e atletas, especialmente no Brasil, o que ainda é uma questão bastante contemporânea.
Reflexo disso é que, nos últimos anos, a presença de clubes e atletas brasileiros nos jogos de futebol tem diminuído. Primeiro, os atletas passaram a aparecer de forma genérica, isto é, suas faces e nomes pararam de ser utilizados e os times passaram a ter seus elencos formados por jogadores que não são reais. Mais tarde, encontrou-se uma quantidade cada vez menor de clubes brasileiros licenciados nos videogames. A regulamentação específica da exploração dos direitos de imagem é estabelecida pelo art. 87-A da Lei 9.615/1997, segundo a qual cada jogador deve conceder expressa autorização para a utilização comercial de sua imagem. Diante do impasse na interpretação do alcance dessa autorização e sobre a delimitação do bem jurídico tutelado, não serão vistos jogadores que atuam no futebol brasileiro no game novamente enquanto não for proposta uma solução que traga maior segurança jurídica.1
Assim apresentadas, essas são as questões submetidas a julgamento pelo Tema 1289/STJ. A conclusão a que se chegar a cada um dos pontos controversos constituirá precedente qualificado que porá fim a uma discussão datada de pouco mais de uma década, quando o ex-jogador de futebol Paulo Cezar Tosim teve reconhecido, em 2011, no âmbito do STJ, o direito à indenização por dano moral no valor de dez mil reais pela impressão de sua imagem, sem prévia autorização, em figurinha de álbum da Editora Abril.
Espera-se, portanto, a fixação de um entendimento objetivo e equânime, que concilie os interesses comerciais das empresas com os direitos dos atletas, sempre em conformidade com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, mormente por se tratar de um setor da economia que movimenta bilhões.
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1 COSTA, Igor. O uso da imagem de atletas em games: os desafios no Brasil. Disponível em: https://ibdd.com.br/o-uso-da-imagem-de-atletas-em-games-os-desafios-no-brasil/?v=19d3326f3137. Acesso em: 22 nov. 2024