Não existe um estado democrático onde brechas de pretensão democrática permitam que a luz da justiça passe, mas guetos de desigualdade coexistam, perpetuados pela própria estrutura estatal.
Uma das facetas do regime democrático é a igualdade entre homens e mulheres, consagrada normativamente e já buscada há anos em inúmeros espaços da vida social. À medida que se delineia o panorama da desigualdade e se reconhece a capacidade das mulheres para ocupar todos os espaços, mais esforços civilizatórios são direcionados para que essas posições sejam efetivamente alcançadas.
Uma vez inseridas em todos os âmbitos, é igualmente importante garantir que a estabilidade nos cargos conquistados com tanta luta não seja mais dificultosa do que a permanência dos homens, o que ressalta a necessidade de ser desenvolvida uma dinâmica pela manutenção de cargos e de se combater a violência política.
A busca por representação na política é apenas uma das dimensões da luta democrática pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. De fato, há algum tempo, discute-se que a democracia não se limita à política representativa1. A democracia deve ser institucional2 por várias razões.3
Primeiro, porque as mesmas ligações e estruturas arcaicas machistas de poder que justificam o afastamento da mulher dos espaços da política representativa estão presentes nas outras relações institucionais em que a nomeação para o cargo não se dá apenas por mérito, mas decorre de um jogo de influências e pressões políticas.
Segundo, porque os diversos espaços institucionais possuem a mesma força representativa e inspiradora que os cargos eletivos, e, portanto, merecem proteção jurídica similar.
Terceiro, porque a norma jurídica não é só o texto anunciado pelo Legislativo. Para que tenha eficácia, ela precisa ser interpretada pelo Judiciário e implementada pelo Poder Executivo. O reconhecimento dos direitos das mulheres civis, políticos e sociais demanda que elas pensem por si e representem todo o potencial, a sensibilidade e a capacidade que têm para decidir, deixando mais claro o conjunto normativo que as protege.
Assim, não adianta lutar por um Legislativo com a presença feminina se os outros Poderes carecem de mulheres para dar continuidade ao trabalho de implementação da Justiça com vozes e olhares que lhes são próprios.
Recentemente, duas ministras se aposentaram do STJ4 e novas listas já foram formadas com nomes de homens e de mulheres. Numa consideração muito ampla da questão, política e juridicamente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem liberdade para nomear homens para as vagas que já foram ocupadas por mulheres. Mas, considerando a importância da igualdade institucional, as nomeações devem priorizar as mulheres. Não se trata de impedir que homens sejam nomeados para vagas já ocupadas por mulheres, mas avançamos ainda muito pouco para retroceder, aceitando como natural o fato nesse momento histórico, especialmente ao refletirmos sobre a representatividade de uma instituição importante para todo país, inclusive na unificação do Direito.
Uma democracia que não seja uma democracia institucional, ou que não tente ser uma democracia igualitária em todos os espaços de poder estatal, dificilmente será uma democracia efetiva, mesmo sob a perspectiva representativa. O Estado precisa de mulheres para interpretar suas normas, ainda mais quando dispõe de um quadro competente de cidadãs aptas a exercer essa função.
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1 São exemplos de esforço para realização da democracia institucional a Resolução 5/20, que alterou o Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB para estabelecer paridade de gênero (50%) e a política de cotas raciais para negros (pretos e pardos), no percentual de 30%, nas eleições da OAB, a Resolução CNJ n. 255/2018, que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, o Ato Normativo 0005605-48.2023.2.00.0000 que alterou a Resolução CNJ 106/2010 que trata dos critérios de promoção de magistrados e magistradas e aprovou a criação de política de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Poder Judiciário.
2 Essa é uma expressão que já venho empregando em outros textos escritos sobre o assunto, e que significa a vivência democrática coerente nas instituições, principalmente nas estatais, com respeito à igualdade e à liberdade no diálogo não apenas no Parlamento e nos cargos eletivos, mas também nos demais órgãos estatais.
3 Já há algum tempo defendemos a necessidade de democracia institucional e a presença de mulheres nos tribunais, como nos seguintes textos Distorções de gênero na elaboração de listas para tribunais - Migalhas e O espaço insubstituível das mulheres na democratização da justiça - Migalhas
4 A ministra Laurita Vaz, que era integrante do Ministério Público, e a Ministra Assusete Magalhães que exercia antes o cargo de desembargadora federal.