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A arrematação judicial como aquisição originária: Efeitos do Tema 1.134 do STJ

Com a recente decisão do STJ sobre o Tema 1134, a jurisprudência brasileira redefiniu os parâmetros de responsabilidade tributária sobre bens arrematados em leilão judicial.

5/11/2024

1. Introdução

A arrematação judicial possui raízes profundas na história do Direito brasileiro e remonta aos sistemas jurídicos europeus, especialmente ao Direito português e ao Direito romano, que influenciaram amplamente a estrutura normativa do Brasil. No período colonial, o ordenamento português aplicava-se no Brasil, e já existiam mecanismos que permitiam a expropriação de bens de devedores, sendo os leilões públicos uma prática recorrente. Inspirado nas tradições europeias, o sistema brasileiro adotou e adaptou a arrematação como um instrumento de satisfação de créditos, buscando equilibrar a proteção do credor e do adquirente.

Com o CPC de 1939, o instituto da arrematação foi incorporado de forma mais sistemática ao ordenamento jurídico brasileiro, estabelecendo-se uma estrutura formal para os leilões judiciais. A partir dessa legislação, a arrematação consolidou-se como um meio de aquisição que não transfere ao adquirente os ônus e responsabilidades do antigo proprietário, caracterizando-se como uma aquisição originária. Essa característica, por sua vez, fortaleceu a segurança jurídica no processo de execução, garantindo que o arrematante receba o imóvel sem obrigações preexistentes que possam comprometer sua titularidade.

A reforma do CPC, em 1973, trouxe novos aprimoramentos ao processo de arrematação, com a finalidade de torná-lo mais célere e eficiente, e buscou assegurar maior proteção ao arrematante. O CPC de 2015 consolidou essa proteção, regulamentando a transferência de propriedade desimpedida de ônus, conforme previsto nos arts. 886 a 903. Atualmente, a arrematação é reconhecida como uma das formas mais seguras de aquisição de bens em processos de execução, uma vez que proporciona ao arrematante uma titularidade livre de vínculos anteriores.

Recentemente, o STJ, ao julgar o Tema 1134, reformulou aspectos fundamentais da responsabilidade tributária do arrematante, estabelecendo que débitos tributários preexistentes não podem ser transferidos ao arrematante, mesmo que indicados no edital. Segundo a decisão, esses débitos devem ser sub-rogados no valor da arrematação, reforçando o caráter originário da titularidade adquirida e consolidando a segurança jurídica do arrematante.

Este estudo revisita a arrematação judicial à luz desse novo entendimento do STJ, explorando os efeitos da decisão quanto à responsabilidade tributária e à extinção de gravames. Também se examina a importância da transparência no edital de leilão, especialmente no que se refere a débitos condominiais propter rem, visando assegurar uma aquisição informada e protegida, conforme os princípios de boa-fé e segurança jurídica. A análise proposta ressalta a arrematação como um instituto fundamental do Direito brasileiro, que evoluiu para atender à função social da propriedade e à efetividade dos processos de execução.

2. Aquisição originária e os fundamentos da arrematação judicial

A arrematação judicial é reconhecida no Direito brasileiro como uma forma de aquisição originária de propriedade, caracterizada por permitir ao arrematante a obtenção de titularidade plena e desimpedida sobre o bem adquirido. Regulada pelos arts. 886 a 903 do CPC, a arrematação configura-se como um ato expropriatório, no qual os direitos do proprietário anterior são extintos, transferindo-se a propriedade ao arrematante de forma independente, ou seja, sem a sucessão de obrigações ou gravames anteriores.

A norma legal consagra a arrematação judicial como aquisição originária em razão de sua natureza desvinculada das obrigações do proprietário anterior. Isso porque, o art. 908, do CPC, consagra a hipótese ao definir, no parágrafo primeiro, que no caso de adjudicação ou alienação, os créditos que recaem sobre o bem, inclusive os de natureza propter rem (própria da coisa), sub-rogam-se sobre o respectivo preço, observada a ordem de preferência.

O fundamento jurídico da arrematação como aquisição originária também se relaciona com o princípio da publicidade registral. Nos arts. 1.245 e 1.227 do CC, é estabelecido que a propriedade de bens imóveis somente se transfere com o devido registro no Cartório de Registro de Imóveis, e que os direitos reais sobre imóveis dependem de inscrição para serem oponíveis a terceiros. No caso da arrematação, ao ser registrado o título aquisitivo – a carta de arrematação –, extinguem-se automaticamente os gravames incidentes sobre o imóvel, em conformidade com o caráter originário dessa aquisição.

É dever anotar que a arrematação, por sua natureza, não apenas extingue o vínculo do bem com o proprietário anterior, mas também promove a proteção do arrematante contra eventuais credores do antigo titular. Dessa forma, o procedimento judicial assegura que o arrematante receba o bem livre de passivos ocultos, consolidando a titularidade plena e protegida, em linha com os princípios de boa-fé e segurança jurídica.

O CPC, ao estruturar o instituto da arrematação, objetiva garantir que a transferência ocorra de maneira eficaz e livre de impedimentos, promovendo a confiança do arrematante no processo expropriatório. Essa proteção é essencial para o funcionamento dos leilões judiciais como mecanismos legítimos de circulação de bens no mercado, conferindo previsibilidade e estabilidade ao sistema jurídico brasileiro.

3. Extinção de gravames na arrematação judicial

A arrematação judicial representa uma das formas mais seguras de aquisição de propriedade, pois promove a extinção dos gravames e ônus que anteriormente oneravam o imóvel, como penhoras, hipotecas e indisponibilidades. A extinção de gravames, contudo, exige o cumprimento de formalidades processuais específicas, que são essenciais para preservar a validade e a eficácia da arrematação. Entre as formalidades mais relevantes está a intimação prévia dos demais credores (se existentes), procedimento indispensável para garantir que o processo de expropriação ocorra dentro dos parâmetros da legalidade e da transparência. A intimação adequada assegura que os credores tenham ciência da alienação judicial, permitindo que possam habilitar seus créditos perante o fruto da arrematação (dinheiro), e não mais sobre bem imóvel, em razão do rompimento do vínculo obrigacional por ocasião da arrematação judicial.

É fundamental que o arrematante, após a aquisição do imóvel em leilão, tome medidas diligentes para comunicar ao juízo responsável pelas demais constrições existentes na matrícula do bem. Essa comunicação visa comunicar formalmente a realização da arrematação e permitir que os credores interessados possam se habilitar no crédito proveniente do valor da arrematação. Além disso, é imprescindível que o arrematante solicite ao juízo a baixa dos gravames registrados, garantindo que a matrícula do imóvel seja atualizada e livre de restrições, consolidando assim a sua titularidade plena e desimpedida.

4. A decisão do STJ sobre o Tema 1134: Responsabilidade tributária do arrematante

A recente decisão do STJ sobre o Tema 1134 trouxe uma interpretação significativa sobre a responsabilidade do arrematante em relação aos débitos tributários incidentes sobre o imóvel. A Corte firmou o entendimento de que os tributos anteriores à arrematação devem ser sub-rogados no preço pago pelo imóvel, de forma que tais débitos não podem ser transferidos ao arrematante, ainda que mencionados no edital.

Referido entendimento jurídico consolida a proteção do arrematante contra passivos tributários ocultos e promove a previsibilidade e a segurança no processo de arrematação judicial. A sub-rogação dos débitos no valor da arrematação está em consonância com o art. 908 do CPC, que prevê a sub-rogação de créditos que recaem sobre o bem arrematado, assegurando que o arrematante não seja diretamente responsabilizado por obrigações fiscais anteriores. Essa disposição reforça o princípio da boa-fé e a proteção do adquirente, elementos fundamentais para garantir a confiança e a estabilidade no mercado de leilões judiciais.

A modulação dos efeitos dessa decisão pelo STJ, que os aplicou apenas a leilões futuros, foi uma medida prudente que preservou a segurança jurídica das arrematações já realizadas. Tal modulação evita impactos retroativos que poderiam gerar litígios e insegurança sobre os procedimentos passados, ao mesmo tempo em que promove a regularidade jurídica das novas aquisições.

A decisão também destaca a importância do equilíbrio entre os direitos dos credores e a proteção do arrematante. Se, por um lado, a sub-rogação dos créditos no valor da arrematação assegura que os credores sejam pagos de acordo com a ordem de preferência, por outro, protege o arrematante de ter que assumir passivos que desconhecia ou que não foram claramente apresentados no edital. Assim, a jurisprudência reafirma o princípio da transparência e da previsibilidade, elementos indispensáveis para a confiança nas arrematações judiciais.

O entendimento consolidado pelo STJ reforça a segurança e a equidade do sistema jurídico, permitindo que o arrematante participe do processo de aquisição sem o temor de assumir passivos tributários ocultos, garantindo que a transferência de propriedade observe os princípios de eficiência e função social. Ademais, cabe ao Estado a responsabilidade de assegurar que o processo judicial se conclua de forma integral, por meio da entrega efetiva da tutela jurisdicional e da devida satisfação do crédito exequendo ao credor que acionou a jurisdição. Essa obrigação estatal abrange o dever de promover uma cadeia de proteção e satisfação que contemple todos os atores do processo, desde os credores até os arrematantes, garantindo que a arrematação judicial se consolide de forma justa e transparente.

5. Regularização e registro pós-arrematação

O registro da carta de arrematação no Cartório de Registro de Imóveis representa um passo crucial para a plena formalização da transferência de propriedade ao arrematante, marcando a conclusão do processo de arrematação e a extinção efetiva dos gravames que anteriormente incidiam sobre o bem. Esse registro consagra o direito de propriedade do arrematante, consolidando a aquisição originária e assegurando que o imóvel seja liberado de todos os ônus e restrições anteriores, exceto aqueles expressamente indicados no edital. O art. 903 do CPC respalda a segurança desse procedimento, determinando que “qualquer que seja a modalidade de leilão, assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo leiloeiro, a arrematação será considerada perfeita, acabada e irretratável, ainda que venham a ser julgados procedentes os embargos do executado ou a ação autônoma de que trata o § 4º deste artigo, assegurada a possibilidade de reparação pelos prejuízos sofridos”.

Além de formalizar a titularidade, o registro no Cartório de Registro de Imóveis cumpre uma importante função social ao assegurar que o bem esteja plenamente regularizado e apto para reintegração ao mercado, além do que, a regularização permite que o imóvel possa ser utilizado, transferido ou explorado economicamente pelo arrematante sem quaisquer restrições ocultas, contribuindo para a circulação segura de bens e para a dinamização do mercado imobiliário.

Assim, a arrematação judicial consolida-se como um método confiável e eficiente de execução patrimonial, promovendo a segurança jurídica e a previsibilidade dos processos de execução. O registro pós-arrematação não apenas garante a propriedade plena ao arrematante, mas também fortalece o sistema de arrematações judiciais como um mecanismo legítimo e funcional de circulação de bens, respeitando os princípios de segurança, transparência e função social da propriedade.

6. Conclusão

A arrematação judicial, na qualidade de modalidade de aquisição originária, constitui-se como um mecanismo sólido e eficaz para a transferência de titularidade, protegendo o arrematante de vínculos e ônus anteriores e garantindo-lhe a titularidade plena do bem. A recente decisão do STJ sobre o Tema 1134 reafirma esse caráter originário ao afastar a responsabilidade do arrematante por débitos tributários preexistentes, mesmo quando tais encargos estejam mencionados no edital de leilão. Esse entendimento jurisprudencial reforça a segurança jurídica e a previsibilidade do processo de arrematação, consolidando-o como uma prática transparente e protegida para o adquirente.

Dessa forma, a arrematação judicial reafirma-se como um instrumento essencial e seguro para a execução patrimonial, oferecendo proteção jurídica tanto aos credores, que buscam satisfazer seus créditos, quanto aos arrematantes, que têm garantida a aquisição de um bem livre de vínculos anteriores. O caráter originário e a recente interpretação do STJ, aliadas à exigência de transparência no processo, asseguram a circulação segura de bens no mercado imobiliário, favorecendo a eficiência do sistema judicial e contribuindo para a função social da propriedade.

Paulo Roberto Pires Ferreira
pós-graduado em Direito Imobiliário Escola Brasileira de Direito (EBRADI); MBA em Direito Tributário e MBA em Direito Empresarial, ambos pela FGV-Rio; pós graduado em Direito do Consumidor PUC-Rio.

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