Migalhas de Peso

Planos de saúde x cobertura de serviços realizados no exterior

Serviços realizados no exterior não estão contemplados pela cobertura assistencial obrigatória prevista pela legislação vigente.

21/10/2024

Os contratos de plano de saúde estão regulamentados pela lei Federal 9.656, de 1998, a denominada LPS - Lei dos Planos de Saúde. Trata-se de uma lei que, entre vícios e virtudes, inequivocamente trouxe inúmeras regras que antes simplesmente inexistiam no setor. A base legal de questões nevrálgicas como a amplitude mínima das coberturas assistenciais, o reajuste por enquadramento etário e os direitos dos demitidos e aposentados nos planos empresariais, entre tantos outros exemplos que poderiam ser citados, está LPS. Essa lei, no entanto, não é completa, havendo diversos assuntos que, ao menos no que tange à legislação, convivem com lacunas e que dão margem para variadas interpretações.

Um exemplo de temática que não restou tão esclarecida quanto poderia (ou deveria) diz respeito à existência ou não de cobertura de serviços assistenciais prestados/realizados fora do Brasil. Afinal, os planos privados de assistência à saúde estão ou não obrigados a cobrir atendimentos realizados fora do território brasileiro?

Da leitura da própria definição legal de plano privado de assistência à saúde (art. 1, inc. I, da LPS), em que pese seja bastante abrangente, não se consegue deduzir a resposta a esse questionamento: “prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor”.

No art. 16, também da LPS, que relaciona as questões as quais devem obrigatoriamente constar com clareza nos contratos dessa natureza, há apenas a referência à “área geográfica de abrangência” (inc. X), sem esclarecer, porém, se essa noção estaria ou não necessariamente restrita aos limites territoriais do Brasil.  

Apesar dessa falta de clareza, é a própria LPS que fornece os melhores indícios de resposta para essa questão.

O art. 10, caput, ao falar do plano referência de assistência à saúde, esclarece tratar-se de “cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta lei”.

Já o art. 12, que fala das segmentações possíveis de serem contratadas (ambulatorial, hospitalar, obstetrícia e odontológica), refere, no inc. II (que versa da segmentação hospitalar – “quando incluir internação hospitalar”), alínea “e”, o seguinte: “cobertura de toda e qualquer taxa, incluindo materiais utilizados, assim como da remoção do paciente, comprovadamente necessária, para outro estabelecimento hospitalar, dentro dos limites de abrangência geográfica previstos no contrato, em território brasileiro”.

Entretanto, por não trazer a mesma previsão para os demais serviços e segmentações, a dúvida permanece.

A resposta conclusiva consta, de fato, na regulamentação da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar. A RN/ANS - Resolução Normativa 85/04, que tratava da concessão de autorização de funcionamento das operadoras de planos de saúde, dispunha que a área geográfica de abrangência (“Área em que a operadora fica obrigada a garantir todas as coberturas de assistência à saúde contratadas pelo beneficiário”) poderia ser nacional, estadual, grupo de estados, municipal ou grupo de municípios (Anexo II, item 4). A mesma norma, ademais, ao relacionar hipóteses exemplificativas de serviços e coberturas adicionais passíveis de oferecimento e contratação pelos planos de saúde, expressamente mencionada “assistência internacional” (Anexo II, item 14). 

Ou seja, a regulamentação, desde no mínimo a citada norma, sempre foi muito clara: plano de saúde pode ter, como área geográfica de abrangência, diversas opções, todas, todavia, limitadas ao território brasileiro. Serviços de assistência internacional são passíveis de cobertura, mas desde que tenham sido específica e expressamente contratados, haja vista que, assim como ocorre com tantos outros serviços (como procedimentos estéticos, assistência farmacêutica e assistência domiciliar), correspondem coberturas adicionais, não contempladas pela cobertura obrigatória. 

Em que pese a RN/ANS 85/04 tenha sido revogada, a sua substituta, a RN/ANS 543/22, atualmente em vigor, contém as exatas mesmas previsões.

Na mesma esteira, a RN/ANS 566/22, que trata da garantia de atendimento dos beneficiários, determina que área geográfica de abrangência constitui a “área em que a operadora fica obrigada a garantir todas as coberturas de assistência à saúde contratadas pelo beneficiário, podendo ser nacional, estadual, grupo de estados, municipal ou grupo de municípios”. O texto é o mesmo que existia na norma anterior, a RN/ANS 259/11.

Em setembro de 2018, o STJ se pronunciou sobre a matéria ao julgar o REsp 1.762.313/MS. Na ocasião, a 3° turma, através da relatora ministra Nancy Andrighi, entendeu que “não há se falar em abusividade da conduta da operadora de plano de saúde ao negar a cobertura e o reembolso de procedimento internacional, pois sua conduta tem respaldo na lei 9.656/98 (art. 10) e no contrato celebrado com a beneficiária”.

Recentemente, através de novo pronunciamento judicial sobre essa específica matéria, a questão envolvendo a existência ou não de cobertura para serviços realizados no estrangeiro parece estar, enfim, inequivocamente sacramentada. Em 15/10/24, a 3° turma do STJ, ao julgar o REsp 2167934/SP, firmou entendimento de que “a área geográfica de abrangência, em que a operadora fica obrigada a garantir todas as coberturas de assistência à saúde contratadas pelo beneficiário, é limitada ao território nacional”

No referido recurso, cuja relatora também foi a ministra Nancy Andrighi, a operadora do plano de saúde pretendia ver reformada uma decisão proferida pelo TJSP que manteve sentença que a condenava a ressarcir a parte autora dos custos de exame genético realizado nos Estados Unidos. No âmbito do apelo, o Tribunal paulista entendeu que a “Negativa de cobertura que se revela abusiva, pois priva a paciente de avanços tecnológicos e que podem preservar seu bem maior, a vida” e que “há abusividade na cláusula contratual que exclui tratamento, procedimento ou material imprescindível para garantir a realização de procedimento que assegura a saúde ou a vida do beneficiário”. Ao apreciar o caso, a relatora abordou precisamente as normas acima comentadas: “(...) a interpretação do art. 1°, § 1°, I, da Resolução Normativa 566/22 da ANS, à luz da regra do art. 10 da lei 9.656/98, leva à conclusão de que a área geográfica de abrangência é limitada ao território nacional”.

Também afirmou a ministra que “salvo se houver previsão em cláusula contratual, o legislador expressamente excluiu da operadora a obrigação de garantir a cobertura de tratamentos ou procedimentos realizados no exterior, não sendo aplicável, portanto, a regra do § 13 do art. 10 da lei 9.656/98 nessas circunstâncias”.

A decisão foi unânime entre os julgadores.

Custos e despesas decorrentes de serviços não cobertos, quando impostos judicialmente, acabam por favorecer a parte litigante em desfavor de toda a coletividade. Ainda que em um primeiro momento seja a operadora ré quem arque com esses custos, é a massa de beneficiários e, indiretamente, toda a sociedade que, em última instância, paga o preço – através de preços e reajustes mais caros. 

Vitória da regulamentação, da segurança jurídica e da coletividade.

Bernardo Franke Dahinten
Doutor e Mestre em Direito pela PUCRS. Advogado em Porto Alegre/RS.

Augusto Franke Dahinten
Doutorando e Mestre em Direito pela PUCRS. Advogado em Porto Alegre/RS.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024