1. Suprema Corte e credibilidade
A Suprema Corte dos EUA continua a se destacar como símbolo do estado de direito e do triunfo da justiça naquele país. Paira sobre o prédio de mármore uma aura de austeridade, severidade e retidão. Mesmo quando recentemente os juízes mais conservadores passaram a dominar aquela Casa, e foram, lógico, alvos de ataques ferrenhos da imprensa progressista — em particular o único juiz negro da Suprema Corte, Clarence Thomas — o tribunal saiu fortalecido.
Ocorre que mesmo por trás da fachada imponente podem ocorrer lutas internas e até mesmo situações passíveis de serem confundidas com intriga. O Juiz Oliver Wendell Holmes Jr. supostamente teria descrito a corte como “nove escorpiões em uma garrafa”.
Erwin Chemerinsky professor emérito de Direito na Berkeley Law, em recente evento no The Constitution Center, ao analisar o “ano judiciário” passado, brincou com a frase do Justice Holmes. Disse Chemerinsky que naquele ano houve um julgado no qual os Juízes da Suprema Corte votaram não apenas como “escorpiões na garrafa de vidro”, mas, adicionou: ali estavam “escorpiões venenosos numa garrafa de vidro que foi sacudida”.
2. Diversidade de pensamento
São nove juízes na Suprema Corte. E mesmo com uma composição de seis justices conservadores e três justices mais liberais (no sentido americano para a expressão liberal, o que traduziríamos — quase pejorativamente — como “progressistas”), ainda assim há julgamentos que podem ser considerados bem divididos. Em 59 casos do último “período” de julgamento 23 foram decisões de 6 a 3; outros 5 casos foram 5 a 4. Mas mesmo nas decisões 6 a 3 a divisão era no campo ideológico.
Ocorre que houve outras decisões de combinação de votos 6 a 3, inclusive com a epítome do conservadorismo na Corte — Thomas e Alito — e um dos mais novatos — Gorsuch — votando não com uma posição super conservadora, mas apenas “conservadora”, algo como uma moderação para aqueles padrões esperados.
Isso sem contar com casos unânimes ou quase unânimes (8 x 1, por exemplo) nos quais havia um número substancial de “opinions” — ou, abrasileirando, de “votos” — divergentes entre si em fundamentação ainda que pudessem levar a uma mesma conclusão ou a uma conclusão mediana comum.
3. United States v. Rahimi
Um dos exemplos de julgamento por 8 x 1 pode ser colhido em United States v. Rahimi. Eis o caso: uma lei federal proibia o acesso a armas de fogo para pessoas com histórico de violência doméstica. A pergunta respondida pela Suprema Corte no caso era se uma lei que proíbe a posse de armas de fogo por pessoas sujeitas a ordens de restrição por violência doméstica viola a Segunda Emenda, que trata do “direito do povo de manter e portar armas”.
Vamos aos fatos: Entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, Zackey Rahimi se envolveu em uma série de incidentes violentos em Arlington, Texas, incluindo vários tiroteios e um atropelamento. Rahimi estava sob uma ordem de proteção civil por suposta agressão contra sua ex-namorada, que o proibia explicitamente de possuir armas de fogo. A polícia revistou sua casa e encontrou um rifle e uma pistola, levando à acusação de Rahimi por violar a lei federal que torna ilegal para alguém sob uma ordem de restrição de violência doméstica possuir armas de fogo. Rahimi se defendeu alegando que a acusação por motivos constitucionais violaria seus direitos à segunda emenda, mas foi negada sua defesa. Rahimi continuou a discutir a lei em termos constitucionais, até chegar o caso no tribunal de apelações dos EUA para o 5º Circuito, que concordou com a defesa anulando a condenação.
O governo americano recorreu à Suprema Corte.
Aqui entra a questão novamente do título desse artigo. A Suprema Corte numa decisão quase unânime — 8 a 1 — unindo tanto o justices mais conservadores — afora Clarence Thomas, que foi o voto vencido — quanto as três Justices mais liberais, ainda assim pareceu “dividida”. O que surpreende no caso é o número de votos (“opinions”) escritos. Houve sete votos escritos diferentes. Por exemplo, o voto do Justice Roberts validou a lei, mas com uma leitura originalista do texto constitucional, avaliando o que seria aquela proibição em 1791. Roberts recorda que a história legal da common law não desconheceu regras de limitação de uso de armas, especialmente em casos como o de indivíduos “cavalgando ou andando armados, com armas perigosas ou incomuns, [para] aterrorizar[ ] o bom povo da terra.”
Chief Justice Roberts, foi responsável pela opinião do tribunal, algo como o voto vencedor, com o qual os justices Alito, Sotomayor, Kagan, Gorsuch, Kavanaugh, Barrett e Jackson, aderiram. Mas justice Sonia Sotomayor apresentou uma opinião concordante, todavia com outro approach: avaliando o caso sobre a perspectiva meramente atual, com a necessidade contemporânea dessas leis para a proteção de vidas inocentes, especialmente de mulheres em casos de violência doméstica. A justice Elane Kagan, aderiu.
Mesmo para concordar, os argumentos são divergentes.
Ao final, discordância de mérito, mesmo, apenas em Clarence Thomas. Para ele após a decisão de outro caso, em New York State Rifle & Pistol Assn., Inc. v. Bruen (2022), a diretriz da Suprema Corte foi clara: Uma regulamentação de armas de fogo que viole o texto direto da Segunda Emenda é inconstitucional, a menos que seja consistente com a tradição histórica da Nação quanto à regulamentação de armas de fogo. Para Thomas nenhum fato histórico e, especialmente, nenhuma regulamentação histórica justificaria a legislação federal em questão. Mesmo a leis e regulamentos citados por Roberts foram afastados por Thomas, especialmente pelo fato de a lei atual converter em crime — punível com até 15 anos — simplesmente ter e portar arma com uma restrição por violência doméstica sem qualquer julgamento específico sobre o estado atual do cidadão ou da cidadã que estejam portando a arma. E ainda estas pessoas há muito tempo não tenham sequer o mínimo contato com a parceira ou o parceiro alegadamente vítimas da agressão doméstica.
Como se nota as discussões são acaloradas. Mas, ao final e ao cabo, os escorpiões na garrafa chacoalhada constroem a jurisprudência constitucional americana de forma muito mais autocontida do que os Tribunais brasileiros. Especialmente com maior respeito ao legislador. Trazendo a expressão do juiz Holmes para um jargão bem brasileiro: naquela Suprema Corte “o pau come na casa de Nóca”, mas, o respeito impera à repartição republicana de poderes e às liberdades.