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Emendas parlamentares: Mais do que uma questão de transparência

A tensão entre os poderes no Brasil cresce com a gestão orçamentária. Emendas sem transparência levantam preocupações sobre corrupção e fragmentação.

24/9/2024

A fronteira entre as atribuições do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Judiciário tem sido continuamente tensionada nas últimas décadas, tornando cada vez mais delicada a harmonia entre os Poderes e certamente inquietando Montesquieu em seu túmulo e os estudiosos que acompanham a dinâmica da Teoria da Separação dos Poderes.

No Brasil, em matéria orçamentária, a atuação do Poder Executivo era preponderante até 2015, quando a Emenda Constitucional nº 86 conferiu ao Poder Legislativo maior autonomia por meio das emendas parlamentares.  Desde então, parlamentares têm buscado aumentar sua liberdade de interferir na elaboração e execução do orçamento, culminando com a possibilidade das chamadas emendas do relator e emendas pix, emendas individuais que permitem a destinação de valores do orçamento ao sabor da negociação política de cada deputado ou senador. Em 9 anos, o valor das emendas impositivas passou de 9,7 bilhões para 28,9 bilhões1, fazendo do Legislativo brasileiro o que possui maior controle sobre o orçamento federal, em comparação a 30 países da OCDE2.

As emendas do relator, porque não apresentavam o nome de quem as requisitava, a destinação da verba, nem critérios isonômicos para a distribuição, foram classificadas como orçamento secreto e declaradas inconstitucionais (ADPF 854). Este ano, o Ministro Flávio Dino suspendeu as emendas impositivas até que o Congresso fixe parâmetros para atender requisitos de transparência, rastreabilidade e eficiência. A decisão monocrática foi confirmada pelo Tribunal (ADI7697). Diante do elevado interesse dos parlamentares na gestão das verbas e do poder político que aportam, o julgado gerou tensão entre os Poderes, tendo sido seguido de reunião pouco usual entre seus integrantes para negociação sobre os parâmetros decisórios do STF3.

A questão vem sendo enfrentada sobretudo sob a ótica da transparência, mas há outros aspectos jurídicos que precisam ser destacados. O uso de valores do orçamento, da forma como vem sendo realizado, viola materialmente os princípios orçamentários da unidade (art. 165, § 5º da CF/88) e da universalidade, além de ofender o princípio republicano e prejudicar a governabilidade.

Os princípios da unidade e da universalidade demandam um controle racional e responsável da totalidade das verbas públicas empregadas, e requerem um planejamento estratégico da distribuição dos valores à disposição do Poder Público. O princípio republicano, por sua vez, ao exigir a separação entre o interesse dos governantes e o interesse público, demanda que o orçamento seja planejado considerando políticas públicas que precisam estar alinhadas em todos os orçamentos e não fragmentadas em iniciativas pontuais. 

Assim como vem sendo votado e executado, apesar de o orçamento ser formalmente único, na prática, com as emendas parlamentares assumindo a destinação que têm, ele se transforma numa colcha de retalhos, convertendo-se em um jogo de negociação individual e não em uma estratégia de política pública. Na prática, desvios tem se revelado possíveis com a suspeita de prática de corrupção na negociação de emendas.4

 A autonomia parlamentar é uma autonomia constitucional, dentro de uma atuação que possibilite o planejamento e a concretização dos direitos fundamentais e dos demais interesses públicos. Portanto, apesar da forma como o STF busca impor limitações ao Congresso, essas restrições correspondem a imposições jurídicas válidas para impedir que o dinheiro público seja disperso em jogo de interesses particulares, evitando que o país, já tão repleto de desafios na aprovação de políticas públicas, transforme o debate público e as questões públicas em ajustes privados.

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1 IREE. Emendas parlamentares: histórico e influência. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2024. 

2 ESTADÃO. Emendas de parlamentares brasileiros são 20 vezes maiores do que em países da OCDE. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2024. 

3 STF. Nota conjunta sobre reunião entre ministros do STF, Câmara, Senado e Executivo sobre emendas parlamentares. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2024.

4 UOL. PGR denuncia deputados do PL por corrupção em emendas parlamentares. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2024. Essas citações estão formatadas de acordo com as diretrizes da ABNT, com o nome da instituição ou autor, título do documento, a indicação de que é um site, seguido do link e a data de acesso. 

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil. Integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher.

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