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Violência nos debates: reflexões nos âmbitos dos Direitos Penal e Eleitoral

No debate eleitoral, injúrias físicas e verbais entre candidatos podem configurar abuso de poder político, comprometendo a legitimidade do pleito.

17/9/2024

No debate ocorrido na TV Cultura no último domingo, 15 de setembro, presenciamos um episódio que suscita discussões intensas no campo do Direito Penal e Eleitoral. Em questão, a atuação de José Luiz Datena, que, em resposta imediata a uma série de injúrias verbais proferidas por Pablo Marçal, recorreu à injúria real, desferindo-lhe uma cadeirada. Este episódio nos convida a uma análise cuidadosa sobre os limites da retorsão e as possíveis implicações jurídicas decorrentes do ocorrido.

O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 140, aborda o crime de injúria, incluindo a figura da injúria real, descrita no parágrafo 2º: "Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes". Esta modalidade de injúria ocorre quando a ofensa atinge a dignidade ou o decoro da vítima através de uma violência simbólica, como no caso de um tapa no rosto ou, como no episódio em análise, uma cadeirada que, segundo informações, não trouxe maiores consequências à integridade física do ofendido.

Do ponto de vista do Direito Penal, a atuação de Datena pode ser entendida como uma retorsão imediata à injúria verbal que contra ele foi lançada. A retorsão é um ato de resposta imediata a uma ofensa, e a jurisprudência muitas vezes entende que, em determinadas situações, ela pode excluir a tipicidade penal do ato praticado em reação. Neste caso, a conduta de Datena não apresenta, ante um primeiro olhar, os elementos necessários para configurar um ilícito penal, na medida em que se tratou de uma resposta instantânea a uma provocação direta e limitou-se a uma injúria real sem consequências mais graves. A este respeito, o § 1º, II, do art. 140 do CP expressamente dispõe que “O juiz pode deixar de aplicar a pena (…) no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria”.

No entanto, a análise jurídica não pode se restringir unicamente à seara penal. Devemos nos voltar para as possíveis repercussões no âmbito do Direito Eleitoral, especialmente sob a perspectiva do abuso do poder político. Os debates eleitorais são instrumentos fundamentais para o confronto de ideias e a manifestação livre dos candidatos, destinando-se a proporcionar ao eleitor um melhor entendimento sobre as propostas e posicionamentos daqueles que disputam cargos eletivos.

O poder político conferido aos candidatos para manifestarem seus posicionamentos durante a campanha, incluindo em debates, não é absoluto. Tal poder encontra-se submetido a limites que vão além da mera legalidade, abarcando princípios constitucionais de legitimidade e normalidade das eleições, conforme preconizado no parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição Federal. A legislação eleitoral, em especial a Lei Complementar nº 64/1990 (Lei de Inelegibilidades), prevê em seu artigo 22 os fundamentos para a caracterização do abuso de poder político, que pode acarretar a cassação do diploma do eleito e a sua inelegibilidade.

Ao extrapolar os princípios da razoabilidade e do decoro que devem pautar a conduta dos candidatos, como se verificou no episódio em questão, tanto José Luiz Datena quanto Pablo Marçal podem ter incorrido em práticas que configuram abuso de poder político. A atuação de Datena, ao desferir uma injúria real em resposta à provocação, desvirtua a finalidade dos debates, que é o confronto pacífico e civilizado de ideias. Estamos tratando de universos jurídicos distintos: o que se espera de alguém como indivíduo não é o mesmo que se pode exigir de uma pessoa que atua na arena da política.

Pablo Marçal, ao reiterar atos de injúria e outras ofensas contra a honra de forma reiterada e dirigida a praticamente todos os opositores, também pode haver transgredido os limites da prerrogativa conferida aos candidatos, comprometendo a normalidade e legitimidade do processo eleitoral.

Portanto, a conduta de ambos os candidatos demanda uma análise distinta na esfera eleitoral. A incidência de eventual abuso de poder político não depende exclusivamente da ocorrência de um crime, mas sim da prática de atos que ofendam a legitimidade e normalidade do pleito. A reação de Datena, ainda que imediata e de baixa lesividade, ao adentrar o campo da violência física, e as injúrias reiteradas de Marçal, desrespeitam os padrões de civilidade esperados em um debate eleitoral, podendo, em tese, configurar abusos que ensejam sanções eleitorais.

Este caso ilustra de forma paradigmática como o Direito Eleitoral possui autonomia em relação ao Direito Penal, exigindo dos candidatos uma conduta que assegure a integridade do processo democrático. Os debates são momentos fundamentais para a formação da vontade do eleitor, e qualquer comportamento que os desvirtue gravemente, seja através de injúria real ou verbal reiterada, pode ser interpretado como uma violação ao princípio da normalidade eleitoral, com possíveis consequências graves para os envolvidos.

Márlon Reis
Advogado eleitoralista, doutor em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas (Universidad de Zaragoza/Universidade de Brasília).

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