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A prisão imediata após julgamento pelo Júri - Uma usurpação de poder

Tema 1.068 Repercussão Geral - A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada (RE 1235340/SC, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 12/09/2024).

16/9/2024

Recente decisão, por estreita maioria do plenário do Supremo Tribunal Federal, mais uma vez demonstra descomedimento jurisdicional. Haverá quem diga que veio em boa hora; que a epidêmica quantidade de homicídios praticados no país precisava de maior severidade; que a punição dos homicidas invariavelmente tardava a chegar, espraiando na sociedade deletério sentimento de impunidade. São sem dúvida fatos graves, a merecer atenção e providências eficazes, mas que não podem ser combatidos com a supressão de direitos do acusado consagrados na lei ordinária e na Constituição.

Cabe observar, desde logo, que o Poder Judiciário, por meio das suas instituições, entre elas o Tribunal do Júri, não está vocacionado a combater o crime. Sua missão é julgar fatos pretéritos, cujo efeito dissuasório das suas decisões é empiricamente limitado. Não fosse assim, bastaria instituir a pena de morte para fazer cessar a criminalidade violenta, o que não sucede na experiência de outros países.

E, a despeito das muitas mazelas, entre as quais se pode ressaltar a morosidade, não é correto entender que a nossa Justiça criminal seja leniente – impressão leiga que não se confirma na realidade –, haja vista a superlotação dos presídios – comparáveis a masmorras medievais –, alçando o Brasil ao terceiro lugar no mundo em número de encarcerados, com enorme contingente de presos provisórios. E, assim mesmo, o crime cresce e se desenvolve, atingindo patamares insuportáveis, de forma que não é prendendo ainda mais que se vai debelar a criminalidade, nem mesmo o número indecente de homicídios, inclusive contra mulheres (os abomináveis feminicídios).

Contudo, a decisão da Suprema Corte que autoriza a prisão automática como efeito da condenação pelo Tribunal popular choca-se com princípios elementares do processo penal, inclusive direitos fundamentais emanados da Constituição.

Antes é preciso reconhecer que a prisão antecipada ao trânsito em julgado, mesmo anterior ao julgamento pelo Júri, sempre foi possível, continua a ser, desde que presentes os pressupostos taxativos da prisão preventiva (quando for de interesse social ou para garantir a eficácia do processo) – a ressalva foi feita pelo ministro Gilmar Mendes, ao votar pela divergência em relação ao voto do relator1, ministro Luís Roberto Barroso, que, sufragado pela maioria, estabeleceu o Tema 1068 de Repercussão Geral de que aqui se trata.

A questão surgiu com o famigerado “Pacote Anticrime”, que se transformou na Lei 13.964/2019, e acrescentou ao art. 492 do Código de Processo Penal, § 4º, com a redação: “A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo.”

E, quando se esperava da Corte Constitucional a supressão dessa possibilidade, por ser incompatível com direitos fundamentais insertos na Carta da República, sobreveio, ao contrário, decisão inusitada para retirar o efeito suspensivo dos recursos em todos os casos (não restritos às penas de 15 anos ou mais), assim  criando distorções inomináveis.

Não obstante o marco penal de 15 anos não contenha desejável parametrização sistêmica, podendo ser considerado aleatório, foi estabelecido pelo Poder Legislativo, por meio dos representantes do povo e, por essa relevante razão, não poderia ser simplesmente excluído, modificado, desprezado, a revelar séria usurpação de poder a que a maioria dos ministros se dedicou sem peias, por entender que era mais “adequado”2.

Os ministros Edson Fachin e Luiz Fux votaram pela manutenção do dispositivo, conforme instituído pelo parlamento, mas permitindo a prisão como decorrência da condenação pelo Júri em casos de feminicídio, o que também não é de sua atribuição, apesar da meritória intenção.

Por sua vez, os ministros que formaram a maioria valeram-se, para afirmarem sua convicção, do princípio constitucional da soberania dos veredictos extraídos de julgamentos pelo Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII, “c”, da CF) – como decorrência da dita soberania, não se permite modificar o entendimento dos jurados em segunda instância. Todavia, uma coisa não implica a outra, ou seja, a soberania e a execução provisória da pena não se relacionam, e deveriam inspirar maior cuidado por se tratar de julgamento leigo3.

A soberania do julgamento popular quer dizer que o veredicto extraído do Júri, em relação ao mérito da causa, deve prevalecer pelo voto da maioria dos jurados, havendo apenas duas hipóteses de revisão por meio de apelação à segunda instância: no caso de nulidade posterior à decisão de pronúncia4; quando a decisão do conselho de sentença for “manifestamente contrária à prova dos autos”5.

Vê-se, portanto, que a própria lei concebe situações absolutamente verossímeis nas quais o Júri possa ser anulado para que outro julgamento plenário seja realizado, o que, por si, não fosse a existência de outras fortes razões, imporia a prevalência do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF), que veio de ser recentemente afirmado pelo julgamento das ADCs 43, 44 e 54 pelo próprio Supremo Tribunal Federal – não pode haver prisão em razão da condenação e para cumprimento da pena antes do trânsito em julgado, excetuadas as prisões provisórias. E os julgamentos pelo Júri não estão apartados dessa regra geral, ou não estavam até aqui.

Não há correlação direta entre a soberania das decisões extraídas do Júri popular e a eficácia imediata da condenação, com a imprópria retirada do efeito suspensivo da apelação6.

Assim, evidente que a soberania das decisões do Júri tem significado próprio e suas inerentes consequências processuais, sem afetar a presunção de inocência constitucional, que impõe a regra do art. 283 do Código de Processo Penal7, de sorte a permitir o exercício do duplo grau de jurisdição, excluída a prisão como decorrência de decisão condenatória emanada do primeiro grau8.

E, mais: outorga-se ao jurado leigo um poder que os juízes togados da primeira instância não têm, que de seu julgamento decorra execução provisória da condenação.

Por fim, cabe observar que se trata, na prisão decorrente da condenação pelo Tribunal do Júri, conforme o Tema 1068 de Repercussão Geral, de “autorização”, e não de “imposição”. Mas não se crê que os juízes presidentes de tribunais do Júri irão se manter incólumes à tentação de prender como regra automática, a partir de agora, sob orientação do Supremo Tribunal Federal.

_______

1 Os ministros, agora aposentados, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, já haviam dissentido do voto do relator em sessão anterior.

2 O mesmo ocorreu em relação ao prazo de 90 dias para a revalidação da prisão preventiva sob pena de se tornar ilegal, do art. 316, parágrafo único, do CPP, quando se decidiu que o juiz não pode ser colhido pela inércia quando decorrido esse prazo.

3 Os jurados, como se sabe, não precisam ter formação jurídica.

4 Após aquela decisão que manda o acusado a Júri, especialmente quanto a nulidades ocorridas no julgamento em plenário, por exemplo, em relação à votação dos quesitos – art. 593, III, “a”, do CPP.

5 Casos em que a decisão dos jurados atrite com todo o universo da prova, sem nenhum elemento a favor da tese vencedora – art. 593, III, “d”, do CPP.

6 Existem exceções na Lei: art. 492 do CPP – (...) § 5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o § 4º deste artigo, quando verificado cumulativamente que o recurso:  I - não tem propósito meramente protelatório; II - levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.

7 Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.

8 Apesar da nomenclatura de “Tribunal do Júri” e do julgamento colegiado, trata-se de órgão judicial da primeira instância.

Antonio Ruiz Filho
Advogado criminalista (sócio do escritório Ruiz Filho Advogados). É diretor da Federação Nacional dos Advogados (FeNAdv) e presidente da Comissão de Defesa da Democracia e Prerrogativas da mesma entidade. Foi presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), diretor da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção de São Paulo (OAB/SP) e diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP).

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