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A criminalização da advocacia sob o manto da litigância predatória: Um perigo à justiça

O artigo alerta para o risco de transformar a advocacia em alvo fácil, usando a litigância predatória como pretexto. Essa prática pode sufocar o acesso à Justiça e penalizar indevidamente advogados combativos.

12/9/2024

Nos últimos anos, o CNJ e outros órgãos do poder judiciário têm levantado a bandeira do combate à chamada "litigância predatória", um conceito que, supostamente, visa impedir o ajuizamento massivo e repetitivo de ações judiciais com pouca ou nenhuma fundamentação, com o objetivo de sobrecarregar o sistema e forçar acordos.

À primeira vista, a proposta pode parecer sensata, afinal, ninguém deseja que o judiciário seja utilizado de maneira abusiva. No entanto, por trás dessa aparente intenção de proteção, esconde-se um risco significativo para a advocacia e, mais preocupante, para o próprio direito de acesso à justiça, que é um dos pilares fundamentais do estado democrático de direito.

Subjetividade do conceito de litigância predatória

O termo "litigância predatória" esconde uma armadilha: a criminalização implícita da advocacia, especialmente da advocacia combativa, que busca litigar em defesa de direitos individuais ou coletivos em causas massificadas. A criação de filtros subjetivos para determinar quais demandas são "abusivas" ou "sem mérito" coloca em risco a própria função social do advogado e a garantia constitucional de que qualquer cidadão pode buscar o judiciário para defender seus direitos.

Vale lembrar que a advocacia, conforme o art. 133 da CF/88, é essencial à administração da justiça, e seu exercício deve ser pleno e sem restrições arbitrárias. O advogado atua como defensor da legalidade e da justiça, e restringir sua atuação através de conceitos vagos pode enfraquecer seu papel constitucional.

Risco de criminalização da advocacia e impacto no acesso à justiça

O uso de elementos como "petições genéricas" ou "ações idênticas" como sinais de litigância predatória ignora a legitimidade dessas ferramentas em certos contextos. Em áreas onde a violação de direitos é sistêmica, como em ações coletivas contra grandes corporações, essas práticas são muitas vezes necessárias para garantir a eficiência e a celeridade dos processos. Criminalizar esses mecanismos representa um ataque direto à advocacia combativa e cria um ambiente onde advogados, que utilizam estratégias legítimas de litígios repetitivos, podem ser indevidamente penalizados.

Além disso, ao tentar restringir o litígio repetitivo para aliviar a sobrecarga do judiciário, corre-se o risco de limitar o direito fundamental de acesso à justiça. Litígios em massa são frequentemente a única forma de corrigir abusos sistêmicos cometidos por grandes corporações ou pelo próprio Estado. Ao adotar medidas que limitem o volume de ações, o judiciário pode estar comprometendo a proteção de direitos fundamentais, especialmente de grupos vulneráveis, que muitas vezes dependem desses mecanismos para buscar justiça.

Um exemplo relevante é a decisão do TJ/MG, que, ao julgar uma ação revisional de contrato, rejeitou a preliminar de litigância predatória suscitada pela parte ré, ao constatar que o autor tinha juntado documentos regulares e havia apenas uma ação em nome dele. Nesse caso, o tribunal rejeitou a extinção do processo com base nesse argumento, destacando a importância de não se fazer uma acusação generalizada de litigância predatória sem uma análise cuidadosa. A sentença inicial, que havia julgado o caso improcedente liminarmente, foi cassada, pois o tribunal entendeu que o litígio demandava análise mais aprofundada de cláusulas contratuais e instrução probatória adequada (TJ/MG - Apelação Cível: 5002221-72.2022.8.13.0708).

Essa decisão reforça a necessidade de se evitar julgamentos precipitados e de garantir que a Justiça seja acessível para todos, sem limitar indevidamente o direito de litigar em defesa de direitos fundamentais.

O papel da OAB: Competência e proteção das prerrogativas

É importante destacar que a captação indevida de clientela, assim como outras infrações éticas na advocacia, são questões que compete à OAB tratar. A Ordem dos Advogados do Brasil é a entidade reguladora que tem o dever de zelar pela conduta ética dos advogados e garantir que as prerrogativas da profissão sejam respeitadas. Quando o Judiciário interfere em questões de captação de clientes ou questiona estratégias processuais legítimas, como litígios massivos, ocorre uma sobreposição de funções que fere a autonomia da OAB.

Ao invés de criar restrições judiciais baseadas em conceitos vagos como litigância predatória, é crucial que o judiciário respeite a separação de competências e permita que a OAB atue na fiscalização das condutas inadequadas de seus membros. Cabe à OAB, por meio de seus processos disciplinares, avaliar e, se necessário, punir condutas que violem o código de ética, preservando assim a integridade da advocacia e o acesso à justiça.

Conclusão: O equilíbrio necessário entre advocacia e justiça

O combate à litigância predatória deve ser feito com equilíbrio e cautela. A criação de normas para evitar abusos é importante, mas não pode ser feita às custas da criminalização da advocacia ou da restrição ao direito de litigar. Advogados que utilizam estratégias de litígio em massa para proteger os direitos de grupos vulneráveis não devem ser penalizados.

Além disso, o uso excessivo de tecnologia no monitoramento de litígios, sem uma análise individualizada dos casos, traz o risco de despersonalização da justiça. A mecanização excessiva pode resultar em um sistema punitivo e menos acessível, especialmente em causas coletivas que exigem um olhar mais humano e cuidadoso.

A abordagem do CNJ deve ser repensada para garantir que o combate a abusos não limite o direito fundamental de acesso à Justiça, nem prejudique o papel essencial do advogado na proteção desses direitos.

Por fim, é fundamental que o judiciário continue a garantir o acesso pleno à justiça, focando em melhorar sua estrutura e capacidade, sem comprometer os direitos dos cidadãos de buscar a tutela jurisdicional de forma ampla e legítima, preservando o papel essencial do advogado, conforme garantido pela CF/88.

José Batista Flores
Advogado há 22 anos, sócio do escritório José Flores Advocacia, especializado em direito empresarial, planejamento patrimonial e sucessório.

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