Que a Fazenda Pública possui prerrogativas ao litigar em juízo não é novidade. Neste texto, trataremos de seu tratamento diferenciado não somente em fase de cognição, mas também quando figura como executada.
A Fazenda Pública possui um tratamento diferenciado ao litigar em juízo, as chamadas prerrogativas, ou seja, direito especial concedido em razão de sua posição de representante do interesse público e da coletividade, bem como para garantir a isonomia material entre os litigantes e a proteção ao erário público.
a) Prazo em dobro para a prática de atos processuais e citação e intimação pessoal
De acordo com o art. 183 do CPC, a Fazenda Pública goza de prazo em dobro para todas as suas manifestações processuais, cuja contagem terá início a partir da intimação pessoal. Ou seja, o CPC assegurou ao Poder Público o prazo em dobro para suas manifestações, prerrogativa já constante do CPC/73, mas redimensionada em sua extensão, pelo menos, no tocante à resposta (antes o prazo quadruplicava, agora dobra). Ainda, o CPC exige a cientificação pessoal, sendo a eletrônica equivalente e preferencial para tal finalidade (art. 246, V, §§ 1.º e 2.º, do CPC), competindo ao ente público a realização do cadastro nos sistemas processuais eletrônicos para recebimento das comunicações (arts. 246, §§ 1.º e 2.º, e 270, parágrafo único, do CPC)1.
b) Isenção de custas e despesas processuais
Nos termos do art. 39 da lei 6.830/80 e do art. 91 do CPC, a Fazenda Pública é isenta do pagamento das custas processuais, inexistindo também dever quanto ao ressarcimento das despesas processuais quando a parte adversa for beneficiária da assistência judiciária gratuita e não houver feito adiantamento das custas processuais. A Fazenda Pública somente irá efetuar o dispêndio da importância concernente a custas e emolumentos, na eventualidade de quedar vencida ou derrotada na demanda. Nesse caso, a Fazenda Pública não vai arcar com o pagamento das custas, pois estaria a pagar a si própria, caracterizando a confusão como causa de extinção das obrigações. Mas, em sendo vencida, irá reembolsar ou restituir ao seu adversário, que é a parte vencedora, o quantum por ele gasto com as custas e emolumentos judiciais2. As duas únicas despesas que devem ser antecipadas pela Fazenda Pública são as necessárias para realização de perícia3 e para o cumprimento de diligência por oficial de justiça4.
c) Remessa necessária contra sentenças proferidas em seu desfavor com condenação acima de 60 salários-mínimos
Nos termos do art. 496 do CPC, a sentença proferida contra a Fazenda Pública deve ser submetida a reexame necessário, ou seja, remessa obrigatória à segunda instância para confirmação de seu teor, quando então passará a produzir efeitos. Ressalvadas estão, contudo, as hipóteses dos §§ 3º e 4º do art. 496 do CPC, sendo que, não ocorrendo tais situações, qualquer condenação imposta à Fazenda Pública deve se sujeitar à remessa necessária, ainda que seja apenas relativa a honorários de sucumbência, nos termos da súmula 325 do STJ5.
O texto legal dispõe que deve haver remessa necessária quando a sentença for proferida contra a Fazenda Pública. A jurisprudência do STJ entende que não se admite a remessa necessária relativamente às sentenças que não resolvem o mérito6. Se a Fazenda Pública for autora da demanda, e for extinto o processo sem resolução do mérito, não haveria, segundo esse mesmo entendimento, uma sentença proferida contra o ente público. Para o STJ, só há remessa necessária se a sentença contrária ao Poder Público for de mérito.
A sentença que rejeita os embargos da Fazenda Pública, por outro lado, não se submete à remessa necessária (nesse mesmo sentido, Enunciado 158 da II Jornada de Direito Processual Civil). Isso porque a hipótese prevista no art. 496, I, deve ser interpretada restritivamente, referindo-se a um novo título executivo formado contra a Fazenda Pública. Esse não é o caso da sentença de rejeição dos embargos, que apenas autoriza a continuidade de execução amparada em título executivo previamente constituído7.
d) Honorários advocatícios diferenciados
O CPC, em seu art. 85, §3º, traz um novo regramento para as causas envolvendo a Fazenda Pública, encerrando o modelo vigente no CPC/73 que lhe era extremamente favorável, pois permitia que os honorários fossem fixados de 10% a 20% quando fosse vencedora, mas autorizando o juiz a fixar valores “por equidade” quando vencida.
O art. 85, §3º do CPC prevê, pois, regras escalonadas de aplicação dos honorários com percentuais máximos por faixas. O § 4º, inciso I, do art. 85 define que, em qualquer hipótese de condenação da Fazenda Pública, o percentual da verba honorária deverá ser fixado em sentença quando esta for líquida. Não sendo líquida, a definição do percentual da verba honorária somente ocorrerá quando liquidado o julgado. Será, ainda, considerado o salário-mínimo vigente quando prolatada a sentença líquida ou que estiver em vigor na data da decisão de liquidação para fins de enquadramento do percentual da verba honorária dentro das faixas do valor da condenação, do benefício econômico ou da causa. O § 5º do art. 85 prevê que, na hipótese de a condenação contra a Fazenda Pública ou o benefício econômico obtido pelo vencedor ou o valor da causa for superior ao valor previsto no inciso I do § 3º, a fixação do percentual de honorários deve observar a faixa inicial e, naquilo que a exceder, a faixa subsequente, e assim sucessivamente. Ou seja, verifica-se que o dispositivo em questão trouxe uma forma escalonada do cálculo dos honorários advocatícios, devendo ocorrer o preenchimento total de uma faixa para se passar para a outra até se esgotar o valor da condenação.
O § 6º do art. 85 também se aplica às causas envolvendo a Fazenda Pública. O referido dispositivo dispõe que todos os limites e critérios definidos para apuração da verba honorária (§§ 2º e 3º) se aplicam independentemente do conteúdo da decisão, inclusive aos casos de improcedência ou de sentença sem resolução de mérito, garantindo a isonomia entre os litigantes, na medida em que o juiz deverá adotar os mesmos critérios na apuração da verba honorária tanto no acolhimento como na rejeição do pedido formulado8.
e) Restrições na concessão de tutela antecipada
O art. 1.059 do CPC determina que “à tutela provisória requerida contra a Fazenda Pública aplica-se o disposto nos arts. 1º a 4º da lei 8.437, de 30/6/92, e no art. 7º, § 2º, da lei 12.016, de 7/8/09”. Dessa forma, as tutelas provisórias requeridas contra a Fazenda Pública estão sujeitas a regime especial, com limitações próprias. Assim, em princípio, não se deve outorgar proteção provisória que esgote, no todo ou em parte, o objeto da ação que autorize compensação de créditos tributários ou previdenciários ou que autorizem a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão e aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza (art. 7º, § 2º, da lei 12.016/09). Do mesmo modo, antes de ser concedida liminar contra o Poder Público, deve-se autorizar o contraditório prévio em 72 horas (art. 2º, lei 8.437/92). As limitações à concessão de tutela provisória contra a Fazenda Pública se sujeitam a juízo de ponderação no caso concreto. Afinal, diante de efetiva urgência na medida antecipatória ou cautelar, não se justifica a vedação apriorística e absoluta à outorga da proteção liminar, sob pena de violar a garantia de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, da CF) e da duração razoável do processo (art. 5º, LXXXVIII, cf)9. Nesse sentido, STF, Pleno, ADI 4.451-REF/DF, rel. min. Ayres Brito. Dje 30.6.11; STF, Pleno, ADI 223-MC/DF, rel. min. Paulo Brossard. DJU 29.06.90, p. 6.218.
f) Vedação à execução provisória
O art. 17, caput, da lei 10.259/01 prevê a requisição do pagamento "após o trânsito em julgado da decisão". Idêntica disposição consta no art. 13, caput, da lei 12.153/09. Por conseguinte, inexiste cumprimento provisório da sentença, qualquer que seja a natureza do crédito (comum ou alimentar)10, de forma que à expedição do precatório precederá, necessariamente, o esgotamento das vias recursais. No entanto, admitindo que o art. 2º-B da lei 9.494/1997 reclama interpretação restritiva, o STJ entende que, existindo parte do crédito incontroversa, é possível a expedição de precatório, porque o entendimento contrário atentaria contra a efetividade e a celeridade processuais11. Ou seja, quando a impugnação for parcial, a parte não questionada, nos termos do § 4º do art. 535, será, desde logo, objeto de cumprimento, expedindo-se o precatório ou a RPV. Isso porque a parte questionada acarreta a suspensão imediata do cumprimento da sentença. Nesse caso, não incide a vedação do § 8º do art. 100 da CF/88, pois não se trata de intenção do exequente de repartir o valor para receber uma parte por RPV e outra por precatório12.
g) Peculiaridades na execução e regime de precatórios/RPV
A Fazenda Pública possui a prerrogativa da inalienabilidade e consequente impenhorabilidade dos bens públicos (arts. 100 e 101 do Código Civil, em conjunto com arts. 832 e 833, I, do CPC), o que gera o impedimento da aplicação dos arts. 612 do CPC (penhora), 647 do CPC (alienação) e 685-A do CPC (possibilidade de penhora e alienação na execução por quantia certa contra devedor solvente).
As obrigações pecuniárias da Fazenda Pública decorrentes de decisão judicial são pagas na ordem cronológica de apresentação dos precatórios (arts. 100, caput, da CR), com ressalva das obrigações definidas como de pequeno valor, que também obedecem a procedimento próprio (art. 100, § 3.º, da CF/88; art. 87 do ADCT; art. 17 da lei 10.259/01 e art. 13 da lei 12.153/09). Precatório, por sua vez, é uma requisição judicial dirigida a um ente público para que tome as providências necessárias para pagar determinada quantia ao exequente13. O juízo da execução é o encarregado de elaborar o precatório e de resolver qualquer incidente relacionado, uma vez que a atividade do presidente do tribunal, neste caso, é administrativa (não jurisdicional), nos termos da súmula 311 do STJ. Limita-se o presidente do Tribunal a verificar a regularidade formal do precatório e a realizar a conferência dos valores devidos, com a incidência da correção monetária, na forma estabelecida na Constituição (art. 100, § 5.º, da CF/88). Por isso mesmo, não cabe recurso extraordinário contra decisão do presidente do tribunal proferida no processamento de precatórios (súmula 733 do STF). A citação da Fazenda Pública, nos termos do art. 730 do CPC, possibilita ao ente público opor embargos à execução, quando incorrer divergências no montante a ser executado. Por isso mesmo que a referida citação tem cunho taxativo e, além disso, interrompe a prescrição, conforme art. 617 do CPC. Esta citação deverá ocorrer por meio de Oficial de Justiça ou via portal eletrônico, pois no caso de execução em face do ente público é vedada a citação pelo correio, conforme dispõe o art. 222, “c” e “d” do CPC. A sua citação na execução não se destina a pagar, como ocorre na execução contra particulares, mas apenas para que, querendo, apresente embargos. Ou seja, a intimação tem por objetivo exclusivo a fixação do termo inicial para a apresentação de impugnação, pois não há qualquer possibilidade de que seja efetuado o pagamento sem que sejam observadas as regras de expedição de precatório ou de requisição de pequeno valor fixadas na Constituição Federal14. A Fazenda Pública possui o prazo de 30 dias para apresentar os embargos, e, tratando-se de prazo próprio dos entes públicos, não se cogita de contagem em dobro (art. 183, § 2.º), uma vez que tal circunstância já foi considerada pelo legislador quando estruturou especificamente os embargos da Fazenda Pública. Os embargos da Fazenda Pública, ao contrário do que se verifica na execução contra particulares, possuem efeito suspensivo automático, pois o precatório ou o requisitório de pequeno valor somente será expedido após transitada em julgado a decisão que os rejeitar, na forma do § 1.º (no mesmo sentido, Enunciado 532 do FPPC).
1 GAJARDONI, Fernando da Fonseca [et. al.]. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 476/477
2 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 15ª ed., São Paulo: GEN/Forense, 2018, p. 188-189
3 Cf. Enunciado nº 232 da súmula de jurisprudência dominante do STJ, que diz que “A Fazenda Pública, quando parte no processo, fica sujeita à exigência do depósito prévio dos honorários do perito”
4 Cf. Enunciado nº 190 da súmula de jurisprudência dominante do STJ, que diz: “Na execução fiscal, processada perante a justiça estadual, cumpre à Fazenda Pública antecipar o numerário destinado ao custeio das despesas com o transporte dos oficiais de Justiça”
5 A remessa oficial devolve ao Tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, inclusive dos honorários de advogado.
6 Nesse sentido: STJ, AgRg no AREsp 335.868/CE, 2.ª T., j. 05.11.2013, rel. Min. Herman Benjamin, DJe 09.12.2013
7 GAJARDONI, op. cit. P. 2022
8 CURY, Renato José. In CRUZ E TUCCI [et. al.]. Código de Processo Civil Anotado. ISBN 978-85-86893-00-1. P. 193- 194
9 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. 2ª. ed. São Paulo: JUSPODIVM, 2016., p. 1131/1132
10 ARAKEN DE ASSIS, op. Cit., p. 1023
11 STJ - REsp: 850916 PR 2006/0135408-2, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 17/08/2006, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 14/09/2006 p. 308
12 CUNHA, Leonardo Carneiro da. In CRUZ E TUCCI [et. al.]. Código de Processo Civil Anotado. ISBN 978-85- 86893-00-1. P. 956
13 GAJARDONI, op. Cit. P. 2023
14 ALVIM, Teresa Arruda et. al. (coords). Novo Código de Processo Civil. 3a ed., São Paulo: RT, 2016, p. 1339