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(In)aplicabilidade do CPC ao procedimento arbitral

O STJ decidiu, no REsp 1.851.324/RS, que as regras do CPC não se aplicam à arbitragem, focando na autonomia do sistema arbitral. O caso envolvia alegações de nulidade devido à atuação do tradutor.

27/8/2024

A definição da existência de uma eventual prevalência entre o CPC e as regras consensualmente escolhidas pelas partes para a regência de um dado procedimento arbitral foi, historicamente, objeto de intensa divergência doutrinária. A origem do debate remonta, sobretudo, a dois temas principais: (i) a relação entre o CPC e a lei de arbitragem, no plano da teoria das fontes do direito e (ii) a extensão da autonomia do sistema arbitral de solução de controvérsias em relação ao processo civil estatal.

O STJ, recentemente, proferiu, sobre tais temas, decisão paradigmática, no âmbito do REsp 1.851.324/RS, julgado em 20 de agosto de 2024 e relatado pelo ministro Marco Aurélio Bellizze1. A decisão foi tomada por unanimidade pela 3ª turma, acompanhando o voto do relator os ministros  Moura Ribeiro, Nancy Andrighi, Humberto Martins (presidente) e Ricardo Villas Bôas Cueva.

O litígio base envolvia ação anulatória de sentença arbitral, inicialmente julgada procedente pelo TJ/RS. O ponto central debatido envolveu a aplicabilidade ao procedimento arbitral de dispositivos do CPC/73, especificamente, o art. 138, IV (acerca da imparcialidade do intérprete e do tradutor), que teria sido desrespeitado no procedimento arbitral.

No caso, houve a oitiva de duas testemunhas de nacionalidade chinesa na audiência de instrução. Alegou-se nulidade do procedimento arbitral em razão do preposto da parte ter atuado como tradutor. Na oportunidade, o árbitro responsável pelo procedimento arbitral autorizou expressamente a atuação do presposto como intérprete, após ter colocado a questão para apreciação das partes. Ademais, deixou-se expressamente aberta a possibilidade de as partes revisarem a tradução após a audiência, para certificar a inexistência de incongruências.

Digna de nota é a lapidar condução do procedimento pelo árbitro ao conferir possibilidade para as partes avaliarem posteriormente a tradução feita, respeitando amplamente o contraditório processual. Igualmente, indagou expressamente as partes se, no transcurso do procedimento arbitral, teria havido algum fato ou circunstância que tenha - na visão das partes  - violado prerrogativas processuais essenciais. Na oportunidade, no curso do procedimento, os patronos de ambas as partes anuíram em relação ao modo como a arbitragem havia sido conduzida, caracterizando preclusão em relação à postulação de irregularidades procedimentais. A elogiável condução da fase instrutória pelo árbitro foi fator relevante para a higidez da sentença arbitral proferida2.

Apesar destes cuidados procedimentais, a parte derrotada, irresignada, procurou a anulação da sentença arbitral. O argumento suscitado foi o de que a contraparte não poderia ter o seu preposto erigido à condição de tradutor. Na argumentação elaborada, essa conduta afrontaria norma cogente do CPC, as quais também deveriam ser observadas no procedimento arbitral.

Em voto lapidar, o ministro Bellizze assentou expressamente que o árbitro não se encontra “adstrito ao procedimento estabelecido no Código de Processo Civil, inexistindo regramento legal que determine, genericamente, sua aplicação, nem sequer subsidiária, à arbitragem”. O ponto destacado tem inegável repercussão teórica. Em termos metodológicos, é necessário distinguir a aplicação direta, supletiva, subsidiária e analógica de um diploma legal.

A aplicação direta refere-se à incidência imediata de um diploma legal a uma situação fática concreta, uma vez preenchidos os pressupostos previstos para a sua incidência. Trata-se do resultado da operação de qualificação da relação jurídica, que tem por consequência definir a lei aplicável ao caso concreto. A aplicação supletiva ocorre quando um diploma é utilizado para preencher lacunas, como é o caso da escolha da Lei de Sociedades Anônimas para reger questões de uma sociedade limitada. A aplicação subsidiária se dá quando a norma de um ramo do direito é empregada em outro ramo, diante da ausência de norma específica (e.g previsão da CLT de regência subsidiária do Código Civil). Por fim, a aplicação analógica envolve aplicar uma disposição legal para um caso não inicialmente previsto na fattispecie, mas que apresenta similaridades significativas.

Historicamente, houve debate sobre o campo de aplicação do CPC na arbitragem. A questão é dotada de relevância prática já que a arbitragem - como método jurisdicional de solução de controvérsias - está inserida dentro do campo macroscópico da teoria geral do processo. Assim, havia quem entendesse pela aplicação de normas procedimentais previstas no CPC diretamente aos procedimentos arbitrais.

Paulatinamente, sedimentou-se que somente questões atinentes aos princípios processuais gerais poderiam ser diretamente importadas para a via arbitral. É o caso do contraditório, ampla defesa, paridade das partes, dentre outros. Trata-se de posicionamento deferente à independência dos sistemas de solução de disputas e à ampla flexibilidade procedimental reconhecida na arbitragem 

No entanto, ainda restou controvertida a possibilidade de aplicação subsidiária do CPC. Essa corrente se lastreou especialmente em disposições do próprio Código de Processo Civil, que prevê a sua aplicação supletiva e subsidiária a outros ramos processuais, especialmente o artigo 15, que dispõe que “na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”; art. 318, parágrafo único, que contém a previsão de que “o procedimento comum aplica-se subsidiariamente aos demais procedimentos especiais e ao processo de execução”. Inequivocamente, são disposições que conferem caráter expansionista ao campo de incidência do CPC.

Esse argumento é contraposto pela própria estrutura normativa da arbitragem, que a concebe como um sistema processual autônomo de solução de controvérsias. Ainda, os contatos existentes entre a arbitragem e o CPC seriam pontualmente aqueles reconhecidos na própria legislação (e.g. regras de impedimento ou suspeição, expressamente referidos no art. 14 da lei de arbitragem), os indispensáveis a sistemas jurisdicionais de solução de controvérsias e limitações de ordem pública ou que sejam inerentes ao caráter unitário do ordenamento jurídico. Verdadeiros duplos proliferantes, sistemas autônomos de solução de controvérsias, que podem conviver harmonicamente com ambiguidades e contradições legítimas, consideradas as diferentes estruturas normativas.

Foi exatamente nesse sentido que decidiu agora o STJ, no referido julgado, consignando expressamente que “mostra-se sem nenhum respaldo legal ou hermenêutico admitir que, tendo as partes estabelecido que o ‘árbitro deverá decidir o mérito da controvérsia com base no direito brasileiro’, este ajuste, por si, autorizaria a aplicação subsidiária do CPC, tal como compreendeu o Tribunal de origem, a despeito de os contratantes, ao especificarem as normas procedimentais aplicáveis à arbitragem, não terem feito nenhuma menção ao aludido diploma. A prevalecer o raciocínio desenvolvido no acórdão recorrido, a maior parte das arbitragens domésticas (nas quais, em regra, as partes elegem o direito brasileiro para solver o mérito do conflito de interesses submetido à arbitragem) seriam necessariamente disciplinadas pelo CPC, com preferência, inclusive, às normas procedimentais efetivamente eleitas pelas partes, o que se apresenta inconcebível, por desvirtuar completamente o instituto da arbitragem”.

A compreensão do STJ sobre o tema, na lavra do voto do Ministro Bellizze, reconhece e valora a flexibilidade da arbitragem, que tanto permite a sempre desejável adequação do procedimento às peculiaridades do caso concreto, diante do que for conveniente e necessário para as partes e para a melhor solução da disputa.

Especificamente, em relação à fase instrutória, essa é completamente descolada de formalismos próprios do sistema do CPC. A própria lei de arbitragem outorga poderes de determinação procedimental aos árbitros, razão pela qual seria contraditório compreender que haveria outras amarras necessárias no CPC.

Cabe ao árbitro, respeitado o contraditório processual, analisar a necessidade e a pertinência da realização de determinada prova, utilizar meios probatórios atípicos e valorar livremente a prova. Inclusive, muito da flexibilidade procedimental trazida na reforma do CPC foi especificamente inspirada na evolução do direito probatório arbitral, que - até mesmo pela importação de experiências estrangeiras - tanto vem contribuindo para a ressignificação e a reflexão sobre a teoria da prova de modo amplo e abrangente.

A decisão do STJ confere relevante amparo à evolução do sistema arbitral, afastando a aplicação subsidiária automática do CPC, reafirmando a flexibilidade e a potencialidade de produção probatória outorgada pela Lei de Arbitragem. Ressalte-se, porém, que o entendimento do STJ não afasta por completo a relevância de normas inseridas no CPC a procedimentos arbitrais. Essas poderão ser aplicadas: (i) as indicadas na lei de arbitragem como diretamente aplicáveis (art. 14 da LARb que remete a regras de impedimento e suspeição3); (ii) quando expressamente escolhidas pelas partes, a partir da faculdade geral de definição do direito aplicável (art. 2, § 2º da lei de arbitragem) e do corolário da flexibilidade procedimental; (iii) quando refletem princípios gerais do processo; (iv) normas heterotópicas, que não refletem disposições procedimentais, refletindo elementos atrelados ao direito material; (v) aplicação por analogia, quando conveniente e preenchidos os pressupostos para tanto, como guia para eventuais decisões procedimentais.

Em suma, afastou-se categoricamente a tese da aplicação subsidiária, reafirmando a autonomia arbitral para tomar decisões procedimentais adequadas e aderentes às necessidades do caso concreto. Em termos axiológicos, trata-se de racional que valora a flexibilidade e informalidade que devem permear a solução jurisdicional extrajudicial de controvérsias, para o bem do adequado desenvolvimento do instituto.

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1 STJ. REsp 1.851.324/RS. Terceira Turma. Min. Rel. Marco Aurélio Bellizze. J. em: 20.08.2024.

2 No inteiro teor: “Registre-se que, nem por isso, há falar em comprometimento do devido processo legal ou de qualquer outro princípio basilar do processo. Tampouco seria autorizado atribuir à atuação do tradutor, infundadamente, a pecha de "tendenciosa" ou presumir que a tradução elaborada no feito estaria em descompasso com aquilo que foi efetivamente dito e escrito pela testemunha estrangeira. Trata-se de expediente legítimo ajustado pelas partes, conveniente aos seus interesses, destinado, a um só tempo, a propiciar agilidade na consecução do ato procedimental em questão e a otimizar os custos da arbitragem, sem prejuízo de a outra parte, se reputar necessário, promover, às suas expensas, o controle acerca da higidez da tradução levada a efeito e, sendo o caso, questioná-la, no âmbito da própria arbitragem. Na hipótese, nem na arbitragem, com estipulação de prazo específico a esse fim, nem no bojo da presente ação judicial, a recorrida teceu qualquer consideração sobre eventual imprecisão do teor da tradução levada a efeito na arbitragem, o que poderia conferir, apenas em tese, seriedade à sua irresignação. Diz-se em tese, pois, embora tenha sido dado prazo a esse fim, a parte nada aventou, tornando a questão preclusa, indiscutivelmente.”

3 No inteiro teor: “Como se constata, as regras de impedimento e de suspeição do juiz, estabelecidas no CPC, são voltadas, exclusivamente, ao árbitro; aplicáveis, ainda assim, naquilo que lhe for pertinente – ou seja, consideradas as particularidades da arbitragem. Como dito, não se afigura adequada, segundo penso, fazer aplicar regra de extensão contida no CPC (dos auxiliares da justiça – art. 148) à arbitragem, não cogitada na Lei de Arbitragem.”

José Antonio Fichtner
José Antonio Fichtner se destaca como advogado, escritor, mediador, árbitro e professor, sendo reconhecido e listado nas principais instituições jurídicas arbitrais brasileiras.

Rodrigo Salton
Mestrando em Direito Civil (UERJ). Bacharel em Direito pela UFRGS. Especialização em Direito Civil e Processo Civil na FMP. LLM em Advocacia Corporativa na FMP. Advogado. Sócio de Fichtner Advogados.

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