Migalhas de Peso

Por que o assédio moral ainda está tão instaurado em nossa sociedade?

Depois de mais de 300 anos de uma cultura escravagista é muito comum observar que o trabalho ainda é sinônimo de exercício de Poder e não do exercício de serviço.

18/8/2024

O assédio moral é um processo multicausal com diferentes abordagens e análises que ora estão focalizadas no indivíduo, ora no contexto ou ainda em ambos. Assim, a abordagem psicológica será mais centrada sobre o indivíduo, enquanto uma abordagem sociológica será mais voltada para as relações sociais e o seu contexto. Mesmo assim, nas pesquisas sobre assédio moral essa distinção muitas vezes é difícil, incorporando o contexto organizacional, a organização do trabalho, não individualizando a questão.

Portanto, iniciemos a reflexão com o contexto histórico e sociológico que demonstrará porque o assédio moral sempre esteve instaurado em nossa sociedade.

(i) Histórico no mundo

A Revolução Industrial foi o período de grande desenvolvimento tecnológico que teve início na Inglaterra a partir da segunda metade do século XVIII e que se espalhou pelo mundo, causando grandes transformações. Ela garantiu o surgimento da indústria e consolidou o processo de formação do capitalismo.

Os operários eram tratados com violência pelos chefes ou capatazes, sendo muitas vezes punidos com castigos físicos. A disciplina exigida nas fábricas era garantida pela vigilância de supervisores. Os patrões também instituíam prêmios para os operários mais disciplinados e multas para os descumpridores de horários e de outras normas.

Surge toda uma nova dinâmica e intensidade de controle sobre o trabalhador, com uma disciplina rígida através do uso dos relógios mecânicos. Assim, o horário de entrada e de saída, o horário de almoço e o tempo gasto para realizar as tarefas produtivas eram controlados pelo relógio, e apenas o supervisor poderia avisar a hora de terminar o trabalho.

As jornadas de trabalho chegavam a 14 ou 16 horas diárias, com pequenas pausas para refeições precárias, salários baixos e nem sempre pagos integralmente, condições de trabalho inseguras e desumanas, em instalações geralmente quentes, úmidas, sujas e escuras.

Muitos trabalhadores adquiriam doenças respiratórias por causa do ar poluído que vinha das máquinas. Os movimentos repetitivos dos braços desgastavam as articulações do corpo e causavam intensas dores. Alguns operários sofriam graves acidentes de trabalho e ficavam incapacitados para o resto da vida.

Os patrões incentivavam o trabalho infantil, pois as crianças recebiam salários mais baixos e eram mais obedientes (o trabalho de crianças a partir de seis anos era comum nas fábricas inglesas). As mulheres e crianças chegavam a receber tão pouco quanto um terço do salário de um homem.

(ii) Histórico no Brasil

No Brasil, quando os portugueses desembarcaram iniciou-se um movimento de aproximação e dominação dos povos indígenas que aqui viviam, com a população indígena sendo subjugada e escravizada intensamente ao longo dos séculos XVI a XVIII. Embora tenha sido substituída aos poucos como principal força de trabalho pelos africanos, a escravidão indígena permaneceu importante em várias regiões secundárias, como São Paulo e o Norte, por exemplo.

Entretanto, diversos fatores contribuíram para que essa força de trabalho fosse substituída. Dentre eles a intensa mortalidade em decorrência de epidemias adquiridas dos brancos e o fato dessas populações terem maior facilidades de fuga, já que conheciam o território e as florestas.

A escravização da população africana foi uma maneira lucrativa que Portugal encontrou de suprir a mão de obra no Brasil. Com isso, indivíduos de diversas etnias foram trazidos ao Brasil através do tráfico negreiro, em navios abarrotados de pessoas em condições desumanas.

Chegando aqui, essas pessoas eram vendidas com o objetivo de trabalharem nas mais variadas funções, tanto nas lavouras de cana-de-açúcar e café, quanto na mineração, construções, serviços domésticos e urbanos. Além disso, os castigos eram frequentes e faziam parte da estrutura de dominação.

A escravidão era tida com o regime de trabalho no qual homens e mulheres eram considerados propriedades de seus senhores, podendo ser vendidas ou trocadas como mercadorias.

As pessoas escravizadas tinham suas liberdades tolhidas, além de forçadas a executar tarefas sem receber qualquer tipo de remuneração.

(iii) Panorama atual

Vejam que por um longo período histórico as relações de trabalho foram desumanas e degradantes, incutindo na sociedade práticas predatórias, que seguem disseminadas até os dias atuais, mesmo que obviamente em menor escala.

Conceitos errôneos e inapropriados nos ambientes de trabalho ainda refletem as premissas de uma época que deveria estar apenas na história. O famoso “eu mando e você faz” é uma prática ultrapassada para forma de gestão contemporânea, vez que o contrato de trabalho é uma relação bilateral onde alguém a serviço de outrem deve ser respeitado e valorizado, não possuindo qualquer distinção. A hierarquia é apenas uma classificação de função, onde todos devem ser tratados de forma isonômica e equânime.

Ou seja, a capacidade de entender que o outro pode estar me servindo, mas não estar subordinado em sua dignidade e sim apenas na entrega do serviço.

Depois de mais de 300 anos de uma cultura escravagista é muito comum observar que o trabalho ainda é sinônimo de exercício de Poder e não do exercício de Serviço

Assim, nos deparamos recorrentemente com práticas de assédio moral, que é uma violência psicológica, praticada de forma reiterada, prolongada e sistematizada, que pode se dar por atos comissivos ou omissivos, objetivando atingir a dignidade emocional e psíquica do trabalhador, com a finalidade de isolá-lo, diminuí-lo ou eliminá-lo do ambiente de trabalho, forçando-o a pedir demissão ou até mesmo a provocando.

Muitas práticas são de difícil evidenciação, por se tratar de condutas veladas e sutil, por exemplo, quando o empregador ou seus representantes adotam uma série de medidas para tornar a permanência do trabalhador na empresa insustentável, criando dificuldades para um bom desempenho profissional, aplicando “dois pesos e duas medidas” e oferecendo condições de trabalho desmotivadoras para induzir o empregado a desistir do jogo.

Tal conduta repressiva, quando não configurada como institucional e prática naturalizada da empresa, nada mais é do que a falta de preparo por parte da liderança em não saber lidar com conflito, posturas e comportamentos diferentes e, até mesmo, ausência de segurança em sua posição. Mesmo assim, a empresa é responsável e deve prevenir, identificar e corrigir tais situações.

O assédio, além de degradar o ambiente de trabalho e o clima organizacional, é conduta profissional antiética e configura a quebra da fidúcia, que é inerente ao contrato de trabalho e obrigação bilateral das partes.

Dentre as diversas modalidades de assédio moral, estão:

  1. a vertical descendente, quando praticada pelo superior hierárquico;
  1. a institucional, configurada por uma prática naturalizada dentro da própria companhia advinda de sua administração;
  1. a horizontal, quando praticada por pares do mesmo nível hierárquico; e
  1. a vertical ascendente, quando praticada pelos colaboradores em relação aos gestores.

Diferentemente do caso brasileiro, em países signatários da Convenção 190 da OIT, tais como: Argentina, Espanha e Reino Unido, o assédio para ser caracterizado não necessita somente da reiteração de conduta, bastando uma única conduta que gere dano para sua configuração.

(iv) Atitudes caracterizadoras do assédio moral

(v) Atitudes não caracterizadoras do assédio moral

Exigir que o trabalho seja cumprido com eficiência e estimular o cumprimento de metas não é assédio moral. Toda atividade profissional apresenta certo grau de imposição de tarefas e de resultados a serem alcançados. No cotidiano do ambiente de trabalho, é natural existir cobranças, críticas e avaliações sobre o trabalho desempenhado ou comportamento profissional, por esta razão, eventuais reclamações por tarefa não cumprida ou realizada com desídia não configuram assédio moral.

Dependendo do tipo de atividade desenvolvida, pode haver períodos de maior volume de trabalho. A realização de serviço extraordinário é possível, se dentro dos limites da legislação e por necessidade de serviço. A sobrecarga de trabalho só pode ser vista como assédio moral se usada para desqualificar o indivíduo ou se usada como forma de punição.

Para gerir o quadro de pessoal as organizações cada vez mais se utilizam de mecanismos tecnológicos de controle, tais como: ponto eletrônico, controle de produtividade, etc. Essas ferramentas não podem ser consideradas meios de intimidação, pois fazem parte do Poder de Fiscalização do empregador.

Desde que sejam fundamentadas, proporcionais, graduais e respaldadas por Política Interna, sua aplicação não configura o assédio moral, pois isto faz parte do Poder Diretivo do empregador.

Ainda há um longo caminho a percorrer para a efetiva erradicação do assédio em nossa sociedade, mas já é notório o crescente movimento, promovido por  campanhas e normas que demonstram que estamos no caminho para este fim.

Dentre as ações adotadas, verificamos diversas cartilhas e vídeos de conscientização publicados pelos entes públicos, como exemplo do TST e CSJT, bem como entrevistas veiculadas sobre o tema. Em 2022, por meio da Norma MTP 4.219 publicada em dezembro de 2022, a prevenção ao assédio passou a ser função obrigatória da CIPA dentro das empresas.

Muitas empresas passaram a dialogar mais sobre o tema por meio de capacitações, workshops, DDSs entre outras campanhas internas, passando a estruturar seus Códigos de Condutas e Canais de Denúncias e ter menor tolerância disciplinar com tais práticas. O MTE, por sua vez, instaurou comissões internas estruturadas para fiscalizações sobre o assunto e o MPT passou a realizar, quando do recebimento de denúncias, inquéritos investigatórios mais ostensivos sobre práticas discriminatórias, além da ampla atuação dos sindicatos das categorias profissionais.

O combate ao assédio deve ter uma fonte infinita, com engajamento coletivo e  monitoramento constante para que seja eficaz.

Condutas antiéticas, inapropriadas e moralmente discutíveis devem ser denunciadas, pois denunciar não é apenas a prática de um direito, é um dever. Dever de todos que buscam uma sociedade livre de assédio!

Thais Manilha
Pós-graduada em ESG e Compliance pela Universidad Católica Argentina (UCA) .

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Cuidadores de idosos, adicional de insalubridade - Contato com agentes biológicos

16/8/2024

Invalidade da cláusula non cedendo em face da Lei das Duplicatas

16/8/2024

Fui demitida e descobri que estou grávida - Tenho algum direito?

16/8/2024

Juros abusivos e a possibilidade de revisão judicial do contrato de empréstimo ou financiamento

16/8/2024

Da compatibilidade e juridicidade da cláusula de incomunicabilidade de frutos e do regime da comunhão parcial de bens

16/8/2024