"Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem
e, assim descobrindo-se, com eles sofrem,
mas, sobretudo, com eles lutam."
Paulo Freire
Dezoito horas da tarde. As portas da unidade Jardim Goiás se fecham. Uma equipe composta por três defensores/as desloca-se em veículo institucional até a Praça Joaquim Lúcio, em Goiânia. A equipe está identificada de colete, munida de pranchetas e é logo reconhecida pelas pessoas em situação de rua1: “são os verdinhos”!
Esse cenário é desenhado quinzenalmente no âmbito da Defensoria Pública do Estado de Goiás, por meio de seu NUDH - Núcleo Especializado de Direitos Humanos. Trata-se do “Defensoria na Rua”.
O “Defensoria na Rua” possui o objetivo de oferecer orientação e assistência jurídica integral e gratuita, bem como a escuta ativa das pessoas em situação de rua, visando garantir seus direitos2, promover a inclusão social, bem como prevenir e enfrentar toda a forma de violência e tratamentos degradantes.
As pessoas em situação de rua, nos termos do decreto 7.053/09, formam um grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados. Não vive em moradia convencional regular, e utiliza os espaços públicos e as áreas degradadas como local de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporária ou como moradia provisória.
Trata-se de um público cuja vulnerabilidade é agravada, também conhecida como hipervulnerabilidade. Assim, a atuação extra-gabinete desenvolvida por defensores e defensoras públicas se mostra necessária. Nessa ordem de ideias, no contraturno, tais defensores/as prestam atendimento em praças, rodoviárias e viadutos. A ideia é ir até o assistido, escutá-lo, coletar a demanda e resolver a questão.
As demandas do “Defensoria na Rua” são diversas: (i) acesso à 2ª via de documentos, como certidão de nascimento, RG, CPF e CTPS3; (ii) consultas processuais cíveis e criminais; (iii) obtenção de passagens de ônibus para retornar ao estado de origem; (iv) denúncias sobre arquitetura hostil, violência policial4 e aporofobia5; (v) acesso aos benefícios socioassistenciais e regularização do CadÚnico; (vi) pedidos de aluguel social; (vii) pleitos de vaga na casa de acolhida/albergue; (viii) acionamento do consultório na rua; (ix) relatos sobre a dificuldade de tomar banho e acessar itens de higiene, como por exemplo, absorventes; (x) denúncias sobre obstáculos no acesso de água potável para consumo; (xi) demandas específicas de pessoas estrangeiras em situação de rua e (xii) demandas sobre insegurança alimentar e nutricional - no bom português - fome!
Com a realização da busca ativa é possível verificar, de perto, as necessidades das pessoas em situação de rua. Trata-se de uma realidade complexa e multifatorial. Nessa linha de raciocínio, o “Defensoria na Rua” é inspirado na experiência exitosa desenvolvida pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro no “Projeto Ronda de Direitos Humanos” há mais de uma década e reconhecido pelo XIII CONADEP - Congresso Nacional de Defensoras e Defensores Públicos, em 20176 e pela 15ª Edição do Prêmio Innovare, em 20187.
A prestação da assistência jurídica no período noturno e fora do gabinete é realizada não só pela DPE-GO e DPE-RJ, mas também pela DPE-SP e DPE-PR. As Defensorias Públicas de outros estados também estão engajadas tendo em vista que, em 2024, a ANADEP - Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos promove a Campanha Nacional “Um novo presente é possível: Defensoria Pública pela superação da situação de rua”.
A Defensoria Pública é a referência para o acesso à justiça8 e a garantia de cidadania às pessoas em situação de rua. Tal público sofre, por exemplo, com a ausência de dados oficiais. Tal cenário dificulta a construção de políticas públicas efetivas e contribui para invisibilizar9 ainda mais essa população. A Defensoria Pública luta, incansavelmente, para reverter esse quadro.10 Ouvi-los é um exemplo disso. Assim, a atuação extra-gabinete, por meio do Defensoria na Rua, nos indica que um novo presente é possível.
1 O termo “morador de rua” e o termo “mendigo” são inadequados e pejorativos. Sugerimos o uso da expressão “pessoa em situação de rua” ou “população em situação de rua” de modo a evidenciar suas potencialidades e trajetórias.
2 Sobre o tema, confira-se: (i) Cartilha da ANADEP: https://anadep.org.br/wtksite/CARTILHA_CAMPANHA_24-DIGITAL.pdf e (ii) Cartilha da DPE-GO: http://www2.defensoria.go.def.br/assets/divulgacao/Cartilha_Direitos_das_Pessoas_em_Situacao_de_Rua.pdf. Ambas acessadas em 06.08.2024.
3 Atualmente, a CTPS é obtida de forma online. Tal formato é um enorme obstáculo à população em situação de rua tendo em vista que a exclusão digital é a regra.
4 A retirada forçada das pessoas em situação de rua de determinados pontos da cidade e o descarte de seus documentos e pertences são práticas proibidas. Contudo, não raras vezes, há denúncias sobre a higienização contra essa população. Esse cenário aumenta sistematicamente a exclusão social.
5 Aporofobia é um termo que significa aversão, medo, ódio ou rejeição aos pobres e acontece quando alguém age com preconceito contra as pessoas pobres e/ou em condições de extrema pobreza, por meio de palavras ou ações. O grupo social que mais sofre é, justamente, a população em situação de rua. São tidos como “indesejados”, tendo em vista a crença de que “se nada tem a nos oferecer, só podem estar aqui para tomar”. A missão da Defensoria é combater todo tipo de preconceito! O termo aporofobia foi criado pela filósofa e pesquisadora Adela Cortina. Veja-se: CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: Editora Contracorrente: 2020.
6 Veja as páginas 267-274: https://www.anadep.org.br/wtksite/Livro_Congresso_2017_alterado.pdf. Acesso em 06.08.2024.
7 Confira-se: https://www.premioinnovare.com.br/pratica/ronda-de-direitos-humanos-(rondadh)/3080. Acesso em 06.08.2024.
8 O protagonismo das Defensorias Públicas na defesa das pessoas em situação de rua - que se dá em razão de seu próprio desenho constitucional - é abordado pela pesquisadora Luciana Martins Ribas em sua dissertação de mestrado em Direito na PUC-SP, defendida em março de 2014, sob o título “Acesso à justiça para a população em situação de rua: um desafio para a Defensoria Pública”. No âmbito do acesso à justiça é essencial destacar que a Resolução CNJ nº 425/2021 institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades.
9 Os estigmas que acompanham as pessoas em situação de rua são evidentes e inegáveis, por exemplo, preconceito, falta de acesso a políticas públicas básicas, criminalização da pobreza. No tocante à gestão dos indesejáveis, veja-se: CASARA, Rubens. Estado Pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
10 Em 2023, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o estado de coisas inconstitucional em relação às pessoas em situação de rua no bojo da APDF nº 976. Assim, a omissão histórica do Poder Público foi reconhecida, bem como foi determinada a adoção de inúmeras medidas para que o Governo execute. Ato contínuo, foi apresentado o “Plano Ruas Visíveis” e é papel da Defensoria Pública fiscalizar a execução de políticas públicas.